O ready made de Marcel Duchamp, a antropofagia de Oswald de Andrade e a construção de uma identidade artÃstica brasileira.
Não há dúvidas que Duchamp é um dos maiores artistas do séc. XX. Suas atitudes e gestos desmistificaram a arte e provaram que arte e vida podem se relacionar antecipando o conceito de bricolagem que chegou até a música pop na forma de “do it yourself†que é a origem da verve do punk rock. O ready made pressupõe uma incorporação de algo não artÃstico que é trazido para a esfera do artÃstico pelo simples gesto do artista, que escolhe e delibera sobre o que é e o que não é arte, mas o próprio ready made não é arte, já que seu objetivo é a ironia e a crÃtica.
Quando Duchamp desce a arte de seu pedestal etéreo para o chão da vida, a arte se “democratiza†como previu Walter Benjamin e, o que veio a se chamar música pop, de um jeito ou de outro, legou o espÃrito duchampiniano e nos chegou com as vantagens e desvantagens da reprodutibilidade técnica.
Esta incorporação de elementos não artÃsticos se desdobrou, na arte contemporânea, em incorporação de elementos de outras obras para comporem as novas obras, promovendo um rico diálogo entre os artistas e caracterizando a arte moderna e contemporânea pelo meta-discurso.
Quando, no final da década de vinte, Oswald de Andrade propõe uma antropofagia artÃstica, há uma desmistificação da idéia segundo a qual construir uma identidade nacional seria retomarmos apenas os primeiros habitantes dessa terra: os Ãndios. Partindo desta proposta, Oswald cria o conceito de antropofagia, no qual nossa cultura devora o estrangeiro e, a partir dessa incorporação (um corpo que devora o outro), há uma constituição artÃstica autêntica.
Os Ãndios brasileiros nunca praticavam antropofagia para se alimentarem, mas sim com a intenção de incorporar o inimigo, reconhecendo suas virtudes e desejando obtê-las por meio deste ato. Este seria o principal traço de uma cultura tipicamente brasileira, o colonizado devora o colonizador: na arte os papéis se invertem. Como disse Tom Zé, “a bossa nova inventou o Brasil e teve que fazer direitoâ€.
É esta a grande inovação que a geração da ditadura nos legou: No auge da repressão, o espÃrito da modernidade artÃstica chega à música pop/popular brasileira e, desprovido de bons modos, devora os estrangeiros, incorporando suas virtudes do modo mais brasileiro. Oswald tinha razão: a brasilidade sempre esteve no canibalismo, o Brasil é junção, mistura, incorporação, em uma palavra: antropofagia. Do mesmo modo que, por exemplo, o congado mineiro tem ritmos africanos para louvar Nossa Senhora do Rosário [os santos europeus convivem com orixás africanos] Gilberto Gil e Os Mutantes utilizaram guitarras elétricas para os puristas da M.P.B no Domingo no Parque: chuva do mesmo bom sobre os caretas. Sempre fomos miscigenação, sempre fomos inclassificáveis como disseram Arnaldo Antunes e Chico Science.
O tropicalismo traz a antropofagia da esfera da literatura/filosofia para a cultura de massa, incorporando elementos da música pop do hemisfério norte, e traduzindo-os em uma nova linguagem. A partir daà a música pop/popular brasileira aprendeu a devorar. A tropicália, no final dos anos sessenta, inicia o banquete proposto por Oswald de Andrade. Já a década de oitenta quase não devorou, apenas engoliu e, nos anos noventa, temos uma retomada da antropofagia.
E assim o tropicalismo ensinou: decifra-me, ou te devoro. Incorporação de tudo o que pulsa, que vive, do rock aos regionalismos, da inovação absoluta da bossa nova de João Gilberto, até o iê iê iê romântico mal deglutido da jovem guarda.
O Virna Lisi, grupo mineiro, pioneira e magistralmente propôs um rico diálogo entre rock , samba e experimentações fonéticas, o que antecipou e, sem dúvidas, influenciou propostas artÃsticas bem sucedidas comercialmente, como os Raimundos, e bem sucedidas artisticamente, como o movimento Manguebeat. Chico Sciense emblematicamente simbolizou o movimento com a parabólica fincada na lama do manguezal. E os pernambucanos do Manguebeat reinventaram a música pop/popular do Brasil devorando os estrangeiros e divulgando a cultura do mangue para o mundo.
Essa marca da modernidade deixada por Duchamp nos legou a atitude caracterÃstica do contemporâneo: a paródia, a apropriação, o diálogo, a arte que fala de si mesma. O Brasil soube incorporar estes elementos de forma única e podemos senti-la por toda parte. Desde, por exemplo, as experiências de djs que utilizam trechos de canções da black music norte americana até Adriana Calcanhoto, que confeccionou uma música utilizando somente fragmentos de canções de Caetano Veloso para criar uma nova canção intitulada “vamos comer caetanoâ€.
Se a música baiana tem como caracterÃstica principal, além das percussões, a guitarra elétrica; se os músicos do clube da esquina dizem amar os Beatles e se a bossa nova incorporou elementos do jazz e vice versa, isto significa que o Brasil dialoga de igual para igual com o hemisfério norte, ao menos em termos artÃsticos e, no século vinte, acompanhou plenamente as vanguardas mundiais. O manifesto da poesia pau-brasil de Oswald de Andrade foi escrito no mesmo ano do manifesto surrealista de Breton, 1924.
O movimento tropicalista delineou os caminhos da música brasileira e abriu portas para experimentações abalando os pilares da conservadora cultura de massa. Essas ousadias nos proporcionaram incrÃveis propostas artÃsticas, desde bandas como Secos & Molhados que até mesmo inspiraram o que veio a ser o grupo Kiss, a partir da famosa recusa de Ney Mato Grosso em participar, até a pulsante atmosfera contemporânea de bandas e artistas independentes que optam pelo risco, pela autenticidade, pela independência eminentemente criativa, devorando o que lhes interessa da cultura de massa e transformando isso em boa música pop/popular. Para exemplificar cito artistas que estou ouvindo ultimamente e que endossam meu argumento: O Vanguart de Cuiabá, O Seychelles de São Paulo, o borTam, Pedro Morais e Batucanto de Belo Horizonte, entre tantas outras...
texto publicado originalmente no jornal "O Cometa Itabirano" em Julho de 2008.
Olá, meu caro, tudo beleza?
Olha, em primeira instância gostria de parabenizá-lo pelo texto. Muito bem escrito, com referências relevantes e, sobretudo, de linguagem pragmática.
Sobre a piada de Duchamp, em minha opinião, mesmo o surrealismo, com seu projeto de libertar a criação de qualquer controle racional, só foi possÃvel num contexto de consolidação da idéia freudiana de inconsciente; mesmo assim, numa segunda etapa, foi associado por André Breton a um projeto polÃtico de esquerda -o que é uma contradição em termos, mas confirma o papel do contexto histórico na arte de cada época. Quando Marcel Duchamp expôs um urinol ou desenhou um bigode na Mona Lisa, fez um gesto revolucionário, que rompia com as convenções e abria possibilidades infinitas para a arte. Mas, como todos os gestos fundadores, é irrepetÃvel, porque o contexto já passou: fazer um bigode na Mona Lisa hoje seria apenas ridÃculo. Abolidos os cânones, qualquer adolescente é capaz de transgressões parecidas, e as fronteiras entre a criação artÃstica e a empulhação pura e simples se tornam muito tênues. A falência da crÃtica como fator relevante agrava esse quadro, já que quem legitima o artista hoje é o sucesso em si: se faz sucesso, é bom. Nada mais capitalista. Mas talvez seja mesmo este o destino de todas as artes (a literatura, a música etc), isto é, enquadrar-se numa lógica de mercado ou morrer. Mais grave que a repetição anódina de fórmulas que fizeram sentido na primeira metade do século passado é o esforço, igualmente ultrapassado, de épater a qualquer custo. Como é cada vez mais difÃcil chocar as pessoas, alguns artistas caem no ridÃculo, numa tentativa desesperada de ganhar projeção num mercado (pois é) cada vez mais competitivo. Duas obras que nos últimos meses apareceram na mÃdia são bem representativas desse fenômeno:
1) Numa exposição em Manágua, em agosto passado, onde o artista plástico costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc amarrou um cachorro num canto da galeria e o deixou lá sem comida, até morrer de fome, diante dos olhos perplexos dos visitantes. E justificou: "O importante para mim era constatar a hipocrisia alheia. Um animal torna-se foco de atenção quando o ponho em um local onde pessoas esperam ver arte, mas não quando está no meio da rua morto de fome".
2) Em outubro, o artista plástico cipriota Stelarc convocou a imprensa para mostrar sua obra mais recente: ele implantou uma orelha no próprio braço. Não satisfeito, ele anunciou que quer implantar um microfone próximo à orelha, para captar o que estiver sendo "escutado".
Será arte?
Agora, penso eu; por que o Habacuc não vestiu uma camiseta vermelha e foi brigar contra a fome na Etiópia?! Isso não é apenas extremismo, mas também demagogia. Não creio que ele possua tamanha responsabilidade para isso, haja vista sua postura com um ser vivo; um pobre cão mal tratado exposto em condições deploráveis para alimentar um ego narcisista. Isso é nada mais que estratégia de projeção, não arte. Como já dizia o grande Antunes filho: "Se quer realmente aparecer, enfia uma flecha entre as nádegas e sai pelado pelas ruas. Pois assim feito, na manhã seguinte será primeira página dos jornais!" (risos).
Para a música nacional, estou agradecido pelas dicas citadas em seu texto, mas ressalto que, até ouvir suas sugestões, afirmo que desde o surgimento de Chico Sciense que não ouço nada plausÃvel revelado na musicalidade brasileira. Espero que entenda isso, de certa forma, não como uma exclamação ao que defende, mas como um suplicar para mais qualidade musical. Caso possua maiores dicas, estarei realmente grato pela colaboração.
Grande abraço!
Abs.
Percepção requer envolvimento jah dizia Muntadas !!!
A mÃ(r)dia, a industria e o long tail.
Oi Talo verde! Finalmente pude ler seu recado em meu texto sobre Duchamp e antropofagia com o esmero que ele merecia. Desculpe a demora para me manifestar sobre seu riquÃssimo comentário, mas é que sempre estou muito atarefado! De fato na arte contemporânea presenciamos bizarrices como as que você citou, mas ao mesmo tempo é possÃvel encontrar coisas muito interessantes em Tunga, Cildo Meirelles, Adriana Varejão e em performadores como Marcelo Dolabela e Ricardo Aleixo.
Não que eu queria amenizar sua crÃtica, pois concordo com ela! Uma das caracterÃsticas da pós-modernidade informatizada é justamente a possibilidade de multiplicidade artÃstica e um certo grau de independência que os artistas podem conquistar por meio da tecnologia. A internet, por conter essa faceta anárquica, gera frutos positivos, ainda que a grande maioria de coisas acessadas na rede seja uma continuação da grande mÃdia, ela abre a possibilidade de nós, por exemplo, estarmos aqui agora trocando informações e ressaltando afinidades.
Continuemos perscrutando o que de melhor encontramos nesse mar virtual!
mantemos contatos!
abraço!
Oi Duda! Obrigado pelo comentário! quem é Muntadas?
Abraço!
http://en.wikipedia.org/wiki/Antoni_Muntadas
dudavalle · Rio de Janeiro, RJ 12/10/2008 23:10
Olá, meu caro; tudo beleza?
Veja, não sou refratário à arte contemporânea ou conceitual, pois sou também artista plástico e meus trabalhos percorrem por esse viés. Sou, coincidentemente, apreciador do Tunga e do Cildo Meirelles, entre outros... Fico feliz em saber que compartilha desse estimar. O que questiono é o mau hábito da nova geração de artistas - sobretudo os apadrinhados por crÃticos que camuflam expressões pueris através de verborragias textuais -, em confundir arte com parque de diversões e/ou industrializações imagéticas sem critérios, enaltecendo o poderio hermético do carreirismo imposto por galeristas e instituições públicas. Nada contra a se conceber criações artÃsticas como produtos, essa é a linguagem do mercado atual, contra vontades ou não. No entanto, devemos nos opor ao desespero para a projeção e prevalecermos pelo bon senso.
Lastimável!
Abs.
Oi talo verde,
Agora compreendo os meandros de sua crÃtica e concordo com ela!
Abraço!
Menos mal que você postou links para o texto do meu blog. Eu insisto que a "famosa recusa de Ney Matogrosso em participar" não tem nada a ver com o Kiss. Sim, Ney foi procurado por dois empresários americanos no México. Mas o Kiss nunca teve nada a ver com isso. Foi apenas uma conclusão errada de Ney que acabou virando uma espécie de dogma. É como se eu, por ser brasileiro, tivesse a obrigação de acreditar num mito que eu tenho certeza que não procede. Quem conhece a cronologia das duas bandas sabe que não existe a menor chance de o Kiss ter-se inspirado nos Secos e Molhados para criar seu visual. Está tudo bem explicado no meu blog.
Emilio Pacheco · Porto Alegre, RS 9/9/2009 11:56
gosto dessa polêmica! Mas de fato o secos é uma proposta bem mais madura, poética e artÃstica do que o kiss e essa relação sempre me soou um tanto estranha...
Estarei no Rio Grande do Sul no dia 05 de outubro, em bento gonçalves, para um congresso de poesia!
abraço!
MUSICALMENTE eles não têm nada a ver um com ou outro, nem é relevante para essa polêmica discutir qual dos dois é melhor. Mas VISUALMENTE existe uma semelhança. E como os Secos e Molhados estouraram bem antes, é de se entender que alguns pensem que o Kiss os copiou. Mas basta pesquisar a história das duas bandas para ver que isso não aconteceu. Alguns fãs insistem que "Ney não iria mentir", sem entender que não é questão de mentira ou verdade. Ele está falando a verdade, com certeza, mas as CONCLUSÕES a que ele chega é que estão erradas.
Emilio Pacheco · Porto Alegre, RS 9/9/2009 17:22Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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