Franceses amigos, em Berlim, pouco antes da disputa de pênaltis.
Imaginem agora: você é brasileiro. Você é brasileiro e tem o melhor time de futebol do mundo. Você é brasileiro, tem o melhor time do mundo, é apaixonado por futebol, e sabe que vai estar no dia da final da Copa do Mundo exatamente na cidade onde o jogo ocorrerá. Pois é. Estávamos lá. Berlim, 9 de julho de 2006. A frustração, no entanto, não podia ser maior. Depois de uma euforia de aproximadamente duas semanas, quando descobrimos que verÃamos a partida juntos em solo alemão, veio a frustração atômica da eliminação da nossa seleção. Restou-nos o alento de que, dois dias após a final, embarcarÃamos para Paris e de que, se a França fosse campeã, irÃamos comemorar com eles e acompanharÃamos um 14 de julho histórico na Cidade Luz. Então, dá-lhe França!
Bom. O final da peleja todo mundo já sabe. Gol da França. Gol da Itália. A cabeçada do Zidane. Pênaltis. Itália campeã. Não vamos chorar nossas mágoas. Deu tudo errado mesmo, e isso todo mundo já está cansado de saber. O que talvez nem todo mundo saiba é como foi ser brasileiro em plena Berlim neste dia – o dia em que gritamos "campeão" abraçados com italianos, franceses, alemães, argentinos e com quem mais se juntasse à celebração de um tÃtulo que sabÃamos - de antemão - não iria ser nosso.
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Não iria. Mas foi. Não cederÃamos tão facilmente assim. Fosse o que fosse, o nosso espÃrito estava preparado para comemorar alguma coisa. A tarde começou com um combinado: antes do jogo, passarÃamos pela porta do estádio a fim de ver como estava o clima para a final. No metrô, em direção ao evento, parecia, de modo muito estranho, que estávamos indo assistir a uma partida entre XV de Jaú e Ãbis, dada a ausência absoluta de qualquer torcedor no vagão. "Ok, estamos no primeiro mundo, ninguém precisa sair com antecedência", pensamos.
Chegamos ao estádio. Um pouco mais de movimento. Equivalente talvez a um Madureira e Bangu. "Cadê a turma, meu deus? É final de Copa, minha gente! Não é possÃvel. Estamos mais nervosos que esses europeus que não gostam de futebol. São 20hs e não tem ninguém por aqui".
Opa. São 20hs. Pois é. Vacilamos. No horário alemão, até então, todos os jogos noturnos haviam sido à s 21hs. O caso é que assim, como quem não quer nada, percebemos, pela pequena televisão de um restaurante, que o jogo já havia começado e que, na verdade, erramos por uma hora o horário inicial da partida. Pior. A idéia era que estivéssemos pelo menos 30 minutos antes no Portão de Brandemburgo, lugar em que os "sem-ingresso" feito nós veriam a partida. Ainda pior: diferentemente do Brasil, não tem – realmente não tem! - uma viva alma com uma televisão 10 polegadas antena-de-Bombril vendo o jogo. E aquele restaurante que tinha a TV podÃamos esquecer. Estávamos barradÃssimos, pois o pouco recheio das nossa carteiras não permitia tal desfrute.
Sem saber muito pra onde correr, corremos. No caminho, cruzamos com autênticos franceses e italianos caminhando tranqüilamente pelas ruas, conformados de não terem conseguido ingresso para o jogo. "Meu amigo! O jogo, corre. É a final da Copa", pensamos alto pra ver se eles ouviam. Nada. Parecia que só a gente estava importado com aquele 'detalhe'.
Depois de uma minimaratona de 30 minutos, já a caminho do metrô que nos levaria de volta ao centro da cidade, ouvimos o belÃssimo som de uma TV em sintonia: outro pequeno restaurante, esse, sim, de acesso livre, transmitia a partida. França 1 a 0 já. Comemoramos feito um gol do Ronaldo. Ninguém entendeu nada. Fingimos discrição e fomos sentar nos fundos do local, ao lado da mesa de um sujeito com a camisa da França. "Opa, temos um companheiro para torcer aqui", pensamos.
- Parlez-vous anglais?
- Oui
- De quem foi o gol (em inglês).
- Do Zidane, de pênalti (em inglês).
- Você é francês? (em inglês).
- Não, sou argentino (em inglês).
- Ah!! A gente é brasileiro! (em portunhol).
- Então somos inimigos (em bom castelhano).
Qué isso, rapaz. Viva a América Latina.
Bom, o caso é que o argentino não era tão mau assim. Era só fachada. Logo, começamos a conversar e entendemos o motivo do aparente aborrecimento. Antes, o susto:
- Quer um ingresso para assistir a este jogo?
- Opa
- Eu tenho. Tá aqui ó... - e abriu uma pequena pochete, de onde tirou, de fato, um ingresso - Uma pena que é falso.
- Ahn?! Como assim?
- É... é falso. Paguei 1.500 euros por esse ingresso. Não percebi que não valia. Bom, "c'est la vie"
Ficamos ‘quase-amigos’. Descobrimos, os três juntos, que a TV da parte mais interna do restaurante estava pelo menos cinco segundos à frente no tempo da que estávamos vendo a partida. Isso porque a Itália fez o gol e a turma de dentro comemorou muito antes da de fora. Ok. Vamos para a parte de dentro.
Barrados. O argentino falou de pronto: "olha, pago o jantar de todo mundo aà dentro se conseguirem uma mesa para mim". Não foi por mesquinharia não, embora estivéssemos com fome, foi mais mesmo pra ver até onde aquele argentino estava falando a verdade que conseguimos uma mesa no restaurante. A essa altura, dois franceses muito bêbados já tinham se juntado ao nosso grupo latino-americano. E o mais engraçado: dos cinco ali, os que menos se importavam com a final eram os franceses.
Sentamos à mesa. O amigo argentino logo perguntou se aceitavam cartão de crédito. "Nein", foi a resposta da garçonete alemã.
- Bom, é uma pena, pois assim não vou poder pagar nada – tratou de avisar o argentino.
Ok. Desconfiamos, mas seguimos em frente. Agora, já tÃnhamos mais dois polonenes somados à nossa turma. Éramos sete. Todos torcendo pela França.
Durante o primeiro tempo, tentamos puxar um "allez les bleus" no restaurante. Não deu muito certo não. Os companheiros franceses estavam mais preocupados em pedir um monte de cerveja e apontar para o copo sugerindo que nós pagássemos.
Sob o risco de termos de sustentar bêbado francês e endividado argentino, pagamos nossa parte das cervejas e corremos, no intervalo do primeiro tempo, em direção ao Portão de Brandemburgo.
Pularemos a parte aqui da confusão que foi pegar o trem, autenticar o ticket, perder o trem, pegar um novo trem e ser enganado pelo policial que disse que a Itália tinha virado o jogo por 2 x 1. Nada disso se compara à nossa felicidade quando, 55 minutos depois, chegamos ao Portão e o jogo ainda estava empatado, no final do segundo tempo, indo para a prorrogação. Festejamos muito. Naquela hora, éramos franceses com muito orgulho e muito amor.
Jogo tenso. Procuramos um grupo simpático de franceses para ver o jogo ao lado. França jogando de branco, né?, e não de azul... Acostumados com os gritos espontâneos das torcidas aqui do Brasil (alguém devia estudar isso, é incrÃvel!), tentamos o infame "allez le blancs" (branco em francês, em substituição ao azul "bleu"). Demorou, mas pegou. IncrÃvel. Puxamos um grito e logo, cinco ou seis, sei lá, noruegueses estavam cantando a mesma coisa que nós. Que sucesso!
Mas foi por pouco tempo, porque logo o nosso ânimo de francês arrefeceu com a cabeçada do Zidane. Foi então que começou um belo coro de ironia ao último jogo de Zinédine: "Au revoir Zinédine Zidane, au revoir Zinédine Zidane", cantava a torcida italiana, parodiando uma melodia muito usada pelos alemães para incentivar a seleção dona-da-casa ao longo do Mundial.
Deixa estar. Hora dos pênaltis. "Agora nos provocaram", pensamos. Hora de tocar na ferida mais funda e mais viva da história recente do futebol italiano. Olhamos em volta, procuramos a maior concentração de italianos num raio de 50 metros e:
- "Roberto Baggio, Roberto Baggio, olê olê olêêê!!!" - começamos a gritar feito doidos no meio da torcida deles, poucos segundos antes de começar a nervosa disputa de pênaltis. Gritamos sem parar. Repetidamente. Insistentemente.
Ninguém teve coragem de nos acompanhar nesse canto de geração espontânea, o que nos fez crer que, ou nos faltava carisma, ou era aquilo mesmo que já tÃnhamos constatado: só no Brasil esse tipo de criação coletiva inusitada e de momento vai para frente. Ou as duas coisas. Ainda no mesmo esquema, 'homenageamos' Baresi e Massaro - os outros dois que perderam pênaltis na final de 94 - ao pé dos ouvidos dos italianos.
Fim. Perdemos a partida. Perdemos de novo e agora COM a França e não PARA ela. O que fazer? O italiano que assistiu ao jogo perto de nós já cruzava a torcida para nos perturbar. O coro da música Seven Nation Army já era cantado aos brados pela torcida italiana, que tomou emprestada a canção do White Stripes como hino, desde o inÃcio da Copa. Ferrou.
Mas não. A festa ali era nossa, sim. Seria de qualquer jeito! Afinal, sonhávamos desde moleques em estar naquele lugar, naquele momento, gritando e comemorando um tÃtulo in loco. É Itália, meu amigo? Então que seja Itália. "Azzurra, Azzurra!!!!!" Começamos a gritar. Logo aprendemos a falar tetracampeão: "Quattro volte, quattro volte". E todo povo veio festejar conosco, legÃtimos italianos.
"Quattro volte, quattro volte", continuamos, até acalmar a euforia de campeão. Só depois disso, pudemos perceber o óbvio, que aqueles italianos à nossa volta estavam realmente orgulhosos do quarto tÃtulo. Quatro tÃtulos que nós, brasileiros, já tivemos o prazer de comemorar há distantes 12 anos - justo contra eles. Depois, já pudemos comemorar inclusive mais um.
Com a reflexão vem a idéia, e não esperamos muito para começar novamente a idiotice, agora com uma carta a mais na manga: "Quattro volte, quattro volte, Azzurra, Azzurra!!!". E todos os italianos nos abraçavam. Pois bem. No auge da euforia deles, nós então gritávamos mais alto ainda. "Itália, quatto volte!! E Brasil!!! – apontávamos para os pequenos indÃcios de verde-e-amarelo nos nossos trajes - Brasil, cinque volte, cinque volte!!!! Êêê... Roberto Baggio!!! êêê".
Que alÃvio que deu fazer isso. Bom demais! O susto deles quando percebiam que não éramos italianos, que na verdade só estávamos aproveitando o tÃtulo deles para celebrar o Brasil, era o nosso troféu. E o que tornava a nossa alegria ainda maior era a reação amigável de quase todos (fizemos isso feito criança umas mil vezes, adoramos a sensação de ver cada cara amarela dos campeões). "Bravo, bravo", diziam rindo, aprovando a brincadeira e sorrindo ainda mais. Trocadilhos infames surgiam, como quando nos perguntaram nossa cidade natal e dissemos “do Rioâ€. Perguntamos de volta e, com a resposta “Romaâ€, não resistimos a um “Roma, Rio, Roma, Rio, Romário!!! êêêâ€. E emendávamos num novo “Roberto Baggio, Roberto Baggio, olê olê olê!!!†E os risos se multiplicavam, a alegria crescia e só nos restava levantar mais um brinde aos bem humorados e alegres italianos.
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Nos sentimos realmente pentacampeões naquele dia. Nós éramos, sim, campeões do mundo naquela noite. Os maiores campeões. De certa forma, entendemos um pouco mais que todo brasileiro é pentacampeão de futebol – independente daquele papo chato de que os jogadores é que são, que ganham milhões para isso e que, na verdade, nós não somos nada. E também deixamos de lado a mágoa de pensar no futebol como ópio do povo e nos permitimos nos entregar ao simples fato de que tÃnhamos um motivo para sorrirmos e nos confraternizarmos com quem estava ao nosso lado. E esse motivo era o mais simples possÃvel: aquele momento. Aquele momento era único para nós, era único para eles. Ninguém se conhecia, ninguém se reconheceria no dia seguinte, mas a importância de momentos e instantes como aqueles pelo resto de nossas vidas era enorme. E isso bastava para sermos felizes. Bastava para sermos campeões do mundo, seja lá o que isso, de fato, signifique.
Brasileiros felizes da vida perdidos no meio do mundo. Numa noite, falamos castelhano, francês, inglês, alemão e português. Por fim, gritamos o nosso "Brasil pentacampeão" na lÃngua dos vencedores da Copa do Mundo de 2006. Os sem-pátria mais brasileiros da Alemanha.
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Ah! E o Bruno que, no inÃcio do texto usava a camisa número 10 do Zidane, a essa altura, já estava vestido com o seu casaco da Itália. Já o Thiago, que quando chegou à Alemanha receava se arrepender de ter ido para Berlim sem o Brasil na final, cantarolava feliz da vida Seven Nation Army com os italianos campeões.
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A colaboração acima é a segunda de uma pequena série de textos que pretendemos escrever a respeito da nossa estadia na Europa. Durante duas semanas viajamos juntos por França e Alemanha. As experiências vividas são descritas com o olhar de quem já estava no velho continente há dois meses - o Bruno Maia - e de quem tinha acabado de chegar por lá – o Thiago Camelo. Conhecemos pessoas e vivemos situações que, ao menos para nós, parecem de interessante relato aqui no Overmundo. Nada mais do que uma descrição despretensiosa da visão compartilhada de dois amigos brasileiros. Para encontrar mais textos sobre a nossa viagem, por favor, pesquisar pela tag viagem-europa.
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O texto que você acabou de ler também faz parte de uma série sugerida e organizada pela comunidade do Overmundo. A proposta é construir um panorama da participação do Brasil na Copa da Alemanha, sob a ótica de colaboradores espalhados por todo o paÃs. Para ler mais relatos sobre o assunto busque pela tag Especial_Copa, no sistema de busca do Overmundo.
po, ninguem comentou? heheh
Bruno Maia (sobremusica.com.br) · Rio de Janeiro, RJ 10/9/2006 14:54Achei por acaso o texto, e não podia deixar de comentá-lo nem de votar nele, mesmo que com atraso (e não é por conta de seu comentário, Bruno). Adorei a forma da escrita, e a história em si. Bom humor em todas as situações, que me fizeram rir e me imaginar no lugar de vocês!
Tati Magalhães · Maceió, AL 12/9/2006 15:21
Eu vi a final em Londres. E, como vocês, também me enganei em relação ao horário. Marquei de ver com um amigo brasileiro em uma universidade, cheio de estudantes do mundo todo.
Cheguei lá achando que estava adiantado. Mas logo descobri que o jogo estava no intervalo, 1x1, e pegando fogo! A frustração logo passou, depois do 3o pint de Guinness.
Foi uma coisa muito doida ver uma final em outro paÃs, com o Leonardo (isso, o da cotovelada no Tab Ramos) comentando na tv local, junto de dezenas de estudantes de várias nacionalidades.
Quando cheguei lá, torcia pela França. Mas minhas origens italianas, a empolgação da torcida azurra e, confesso, um certo sentimento de vingança contra os Les Bleus, me converteram um pouco antes de começar a disputa de pênaltis.
No fim do jogo, festejei abraçado com os italianos. E depois saà pelas ruas de Londres junto a uns 10 brasileiros, pra comemorar. Comemorar o quê? Ora, a festa do futebol e essa maravilhosa integração que ele é capaz de fazer.
Putz, que inveja me causou essa história...hehe
Mas valeu pela afirmação no exterior de que somos Penta. Sim, somos todos!
Abraços!
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