Era o ano de nosso senhor Jesus Cristo de 1976 quando o Opala cinza metálico recebeu uma fechada insana de ônibus da Viação Cometa, o obrigando a atravessar a pista da Via Dutra no sentido São Paulo-Rio de Janeiro e fazendo com que colidisse de frente com uma carreta de origem catarinense. No Chevrolet ano 1974 – semi-novo – dois passageiros se deslocavam. No emaranhado de ferros retorcidos e vidros estilhaçados, a muito custo se pôde reconhecer os ocupantes do automóvel – eles faleceram instantaneamente e tiveram a anatomia desfigurada pela violência do choque. Tratavam-se, as vÃtimas, do motorista profissional Geraldo Ribeiro e do ex-presidente da República Federativa do Brasil Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Juscelino é figura que praticamente todo brasileiro sabe quem foi. (A Globo tem lá seu papel nisso.) Recentemente, inclusive, foi eleito o presidente mais popular da História PolÃtica nacional – batendo, surpreendentemente um Getúlio Vargas que há de se contentar, onde estiver, com a vice-liderança. Kubitschek, a propósito, foi o primeiro presidente eleito após o suicÃdio varguista. Foi o único governante democraticamente eleito na história republicana, ao lado de Dutra, a completar inteiramente o seu mandato até o advento da octaetéride fernandista. Foi o idealizador do 50 anos em 5, do Plano de Metas que abarcava investimentos em energia, transportes, indústria de base, educação e alimentos, sem contar a meta-sÃntese materializada na construção de BrasÃlia concluÃda em abril de 1960. Foi o presidente corajoso, antecipando em três décadas os lÃderes do colhão roxo, ao decidir em 1959 romper com o Fundo Monetário Internacional pra poder continuar tocando seus projetos que exigiam vultosos investimentos estrangeiros, altos Ãndices inflacionários, alarmantes nÃveis de endividamento externo e interno e pouca ou nenhuma austeridade fiscal. Foi o cara que passou a Revolução de ’30 examinando pinto de soldado. Foi o adúltero que comeu, provavelmente de maneira gutural e sodomita, a carioca Maria Lúcia Pedroso enquanto inventava uma história qualquer pra dona Sarah, que ficava em casa bordando em ponto-e-cruz.
Despertou-me de minha inércia e incitou-me a relembrar estes e outros fatos histórico-polÃticos uma pequena nota em periódico local, bem curtinha, quase um fait divers, a retomar, depois de muito tempo, a polêmica que sempre cercou o acidente automobilÃstico que vitimou o Jusça. O fato é que garantia o periódico que, passados muitos anos, os corpos do ex-presidente e do motorista foram confundidos à ocasião do acidente e, consequentemente, os respectivos restos mortais foram enviados para as localidades erradas. (Em miúdos, o Jusça foi pra onde devia ter ido o Geraldo, e o Geraldo foi parar na cova do Jusça.) Assim, o cadáver que foi velado com toda pompa de chefe-de-Estado era, na verdade, o do discreto Geraldo Ribeiro. A alma do urologista, por sua vez, foi chorada e bebida por meia dúzia de testemunhas e enterrada numa vala rasa e apertada, adquirida à duras penas financeiras, num cemitério modesto de lugar qualquer em Bonsucesso. Descoberta a confusão, nacionalistas exaltados de nossos dias, e como não poderia ser diferente, exigem virilmente sejam os corpos exumados e devidamente trasladados a seus lugares de merecimento, pra que o que restou do ex-presidente seja finalmente enraizado na capital Federal – e, assim, receber as homenagens devidas e alcançar a paz do descanso sempiterno.
A exacerbação dos reformistas, sei lá, me parece meio inócua. Por mais que tenham, eventualmente, suas reivindicações atendidas, os corpos sejam devidamente desenterrados e a transumância realizada, os repousos jazentes sejam intercambiados, não se poderá em nenhuma hipótese retroceder, tampouco apagar, os atos desencadeados no passado. Não se poderá reincidir o sentimento de comoção generalizada que preencheu todo um povo ao ribombar da notÃcia do desaparecimento de um de seus mais carismáticos lÃderes. Nem se poderá fazer com que rolem novamente as lágrimas sinceras ou proceda-se à s homenagens sinceras ao pé da caixa fúnebre. Poder-se-ia argumentar, contudo, que seria em contrapartida possÃvel repetir a salva de 21 tiros de canhão, a veiculação de discurso do presidente em reverência ao falecido (“nunca na história deste paÃs...â€), a bandeira hasteada a meio pau, a decretação de luto por três dias, etc e tal. Tais atos, no entanto, ainda que honrados, restariam vazios de legitimidade. (E esta só a concede o povo.) Restariam atos burocráticos. Monótonos. Insignificantes. Sem qualquer relação ou vÃnculo com a população em geral, que apesar de conhecê-lo, desconhece a essência daquele homem que se apelidou JK e fica dando tchauzinho dentro da mão naquela escultura em BrasÃlia. Restariam atos protocolares e tão-só.
Jazigos são substituÃveis. Ossadas podem trocar de sÃtio. Mas não obstará o fato de que, naquele dia do ano de 1976, o corpo velado e chorado e homenageado por milhões e milhões de brasileiros de todas as castas foi o do motorista. O do humilde choffeur Geraldo Ribeiro. E isto, leitor, não é de todo ruim. Ou equivocado. Não, não é. Senão, o que haveria de errado em incontável número de conterrâneos enfrentando quilométrica fila para render seus préstimos a, esse sim, verdadeiro herói nacional? Sim, herói nacional. Um brasileiro trabalhador e honesto, que sobreviveu em uma sociedade que o execrou, que o massacrou, que não lhe teve a menor consideração ou por quem não nutriu o menor afeto. Alguém sobre quem incidiu todas as conseqüências nefastas dos devaneios dos polÃticos que ele elegeu, não porque lhes acreditou ou lhes teve confiança, mas sim porque não foi moldados para entender o que quer dizer o vocábulo “discernimentoâ€. Um brasileiro lutador, e como quase todo brasileiro de origens humildes, sofredor; que provavelmente teria uns cinco filhos pra criar sem contar o sustento da esposa e da mãe doente que ainda deveria prover; que sempre honrou seus compromissos e saldou suas pequenas dÃvidas e pagou altivamente todos os seus impostos – mesmo sem entender o porquê de ter que fazê-lo. Pergunto então a você, leitor, o que há de ilegÃtimo ou equivocado em saudar a tiros de canhão ou endereçar uma salva de palmas a mais este brasileiro guerreiro, excluÃdo pelo sistema, a quem não foram concedidas oportunidades para se capacitar e se educar – e quem sabe ele, se as houvesse tido, não fosse um governante, dos mais admiráveis, legitimamente eleito pelos seus iguais? (Por outro lado, também poderia tornar-se mais um pária dessa choldra de corruptos que polui o nosso paÃs. Ao menos, aÃ, ser-lhe-ia concedida a possibilidade suprema da “escolhaâ€.)
Não acredito que há aà vÃcio de qualquer sorte. O destino, sem querer querendo, pregou uma peça na estrutura autofágica que nos governa e homenageou, ou fez homenagear, quem de fato e de direito é o maior merecedor de qualquer homenagem nesse nosso paÃs esquecido de Deus: o brasileiro comum. Brasileiro que tinha como única opção para sua subsistência a condução automotiva. Brasileiro que jamais reinou em parte alguma que não no aconchego do seu lar (e existe paragem onde rei se sinta mais confortável?), que jamais presidiu um paÃs, que jamais o endividou sobejamente por perseguir sonhos vaidosos e irresponsáveis de grandiosidade. As saudações, o cortejo fúnebre, a bandeira da pátria ornando o caixão, as orações em unÃssono de todo um povo: não, nada disso poderia ter tido melhor destinatário e nada disso poderia ter sido mais legÃtimo naquele longÃnquo 1976.
Ao Juscelino, jazendo em paz lá nos confins de Bonsucesso, resta o consolo de saber que as lágrimas e a reza daquela meia dúzia de pessoas que provavelmente lhe acompanhou a última procissão, eram sinceras – porque remetidas a outro. É que à s vezes, esse sentimento honesto de apenas um par de indivÃduos, é capaz de substituir à altura a homenagem vacilante de toda uma população. Mas isto já o sabem bem os milhões de brasileiros guerreiros e comuns, desse meu paÃs varonil, feito o Geraldo Ribeiro.
*originalmente publicado n'A Confraria das Ovelhas Negras.
Querido Mangabeira, são tantos equivocos e injustiças em nossa história, que o nosso povo já está até de couro grosso.
Parabéns pelo resgate.
abraços
Pedro: e a couraça não cessa de engrossar! Obrigado pelo prestÃgio ao texto. Abçs.
EG: Valeu os elogios. Quanto ao Francenildo, só o saberemos depois de sua morte. Abçs, irmão!
Pois é, um excelente trabalho jornalÃstico investigativo, coisa que faz muita falta hoje, volto pro seu voto, sem dúvida, parabéns !
Alcanu
Bela homenagem ao nosso estadista mineiro meu caro Mangabeira! O destino prega peças e os acontencimentos são trancedentais. Manobras do insólito. Beleza de texto. Abraços.
raphaelreys · Montes Claros, MG 3/3/2008 07:34Muito bom o artigo! compartilho com a idéia de que o simples motorista, que representa o nosso povo brasileiro, merecidamente recebeu todas as honras e pompas, e como corpos são matérias, que a terra se encarrega de eliminar os espÃritos desses homens estavam, cada um nos lugares que lhe pertenciam, o Jusça com certeza deve ter adorado a troca, homem que sempre lutou por algo melhor pro povo da nossa terra.poebeijos.
soninha porto · Porto Alegre, RS 3/3/2008 09:06
O povo brasileiro homenageou merecidamente o presidente que modernizou esse paÃs. Um artigo que nos dá mais uma oportunidade de meditarmos sobre o estadista que tivemos e que são tão raros em nossa História.
abraços.
Alcanu: espero, pois, o seu retorno.
RpahelReys: obrigado pelas belas palavras.
Soninha: O Jusça, talvez; os que tecem as filigranas da história do Brasil, certamente não. Daà a sedição em torno do transplante dos restos mortais do urologista à capital federal -- logo ele, já tão bem acomodado na covinha apertada lá em Bonsucesso...
Marco Bastos: Obrigado pela passada! Abçs!
Belo texto. Ontem andava nas ruas de Brasilia e lembrava Juscelino: Será o que ele diria se visse hoje sua criação?
Um grande homem, um texto informativo, parabens
votado
sinvaline
Mangabeira,
O teu texto com a mestria e maestria como é escrito, não fosse a minha idade ia pensar que era uma crônica. Uma crônia bem pensada. Mas quero me reportar lá nas falas do velório.
E não houve engano, não, não houve. Para a natureza todo defunto é igual - já dizia minha mãe
eu vou dar uma relida. Agora vou drumi,
um abraço, andre.
Belo texto, Mangabeira. Não sei porque lembrou-me as crônicas de João Ubaldo. Mas isso é vÃcio meu, procurar no escaninho mental...
Mas como diria Luiz Carlos da Vila: "você tem estilo próprio..."
Sinvaline: não sei o que ele diria, mas faço cá uma idéia, viu...
André Pessego: sabia, a senhora sua mãe. o erro está na cabeça dessa camarilha de reaças.
Egeu: obrigado: não sabes como me sinto elogiado com a mera lembrança que possa remeter a João Ubaldo -- dele, sou, ainda que decepcione ou surpreenda a muitos, grande fã.
Juscelino foi o enfant terrible que o seu tempo permitiu, graças a Deus.
Deu uma sacudida naquela morna e hipócrita sociedade, mas de leve que não era bobo. E, de visionário, renovou o paÃs, de leve também, que não viveu em anos ricos (nem naquela época e nem nunca mais).
O que me comoveu, porém, foi essa sua bela visão do carpir que ele certamente merecia, de dor verdadeira, ainda que alheia.
Das lágrimas de crocodilo, molhou-se todo o Geraldo, que nem culpa tinha, obrigado pelo trabalho, a viver entre polÃticos. Coitado.
Gostei imensamente.
beijos
Mangabeira, meu querido!
Grato pelo resgate histórico esclarecedor...
Amiúdes... E o Ulisses Guimarães?
E os Raimundos, os Pedros, os Josés, os tantos outros que se foram sem deixar vestÃgios nos porões da ditadura?
Os que outrora combatiam (LULA),hoje se valem do poder, e os Raimundos, os Pedros, os Josés vão continuar sombrios...
A ciranda do poder...
A qualquer preço.
Abs
Beto
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