Há quase dez anos, fazendo pesquisa sobre festas populares em Santarém (certamente uma das cidades mais interessantes que já conheci, com história fabulosa), acabei indo parar na casa de uma pessoa indicada pela prefeitura. No meio da conversa, o anfitrião me mostrou uma pequena pedra polida, encontrada num dos vários sÃtios arqueológicos recém-descobertos no municÃpio: "pode pegar!" Quando já tinha o artefato - aparentemente tão comum - na minha mão, ele acrescentou como se fosse a coisa mais normal do mundo: "tem cerca de 8 mil anos..." Fiquei com a sensação imediata de ter meu braço pegando fogo. Era como se segurasse uma daquelas peças que só contemplamos de longe, com a barreira de vidros blindados e sob os olhares de vários guardas, em lugares como o British Museum. Nem precisei me lembrar que apenas bem recentemente é que ganhamos a certeza de que seres humanos vivem no nosso território esse tempo todo: fiquei foi prisioneiro de outro pensamento: "sempre aprendemos que somos terra e povo jovens, e olha eu aqui conectado subitamente com uma história multimilenar..."
Hoje, tenho em mãos outra peça que também faz minha imaginação pegar fogo, transformando em cinzas velhos e estabelecidos aprendizados, dando uma dimensão bem mais complexa para a saga cultural deste canto do planeta onde não sei há quanto tempo cantam os sabiás. É um livro deslumbrante, bem mais pesado que a pedrinha de Santarém, chamado Brasil Rupestre - Arte pré-histórica brasileira, do artista plástico, fotógrafo e cineasta Marcos Jorge e dos arqueólogos André Prous e Loredana Ribeiro. Nunca houve nada parecido na bibliografia nacional, não com tal qualidade gráfica e apurado senso estético, não com esta quantidade e diversidade de informações recolhidas em tantos lugares de difÃcil acesso paÃs afora, trazendo notÃcias de criações culturais das quais muito poucas vezes ouvimos falar. A equipe percorreu 32 municÃpios, em todas as regiões brasileiras, em um ano e três meses de viagem. Os melhores resultados de tal expedição - que produziu mais de sete mil fotos - podem agora ser conhecidos por todo mundo.
E tomara que as imagens reveladas no livro incentivem novas criações. Imagino por exemplo que possam servir de base para o repertório de tatuadores, webdesigners ou outros artistas visuais... As idéias pré-históricas fazem parte definitivamente do domÃnio público, não só pela sua antiguidade. Os textos do livro dão pistas para (eu disse bem que minha imaginação pegou fogo - os autores do livro certamente não são responsáveis pelas interpretações ciberpsicodélicas que vou fazer a seguir...) uma aproximação do modo de produção da arte rupestre brasileira com o regime colaborativo que a internet fortaleceu e acelerou, gerando novos sÃtios experimentais de criação coletiva como o Overmundo.
MuitÃssimo provavelmente tudo que foi pintado ou gravado em pedras e grutas por todo o Brasil pré-histórico é resultado de trabalhos comunitários, cada imagem feita por muita gente anônima não necessariamente da mesma tribo (portanto há muito de transcultural nesses trabalhos), ao longo de muito tempo, ao longo até de vários séculos ou milênios (portanto são também transhistóricos...) Um cara de 3 mil antes de Cristo "grafita" sobre o desenho feito por uma turma de moças de 5 mil antes de Cristo, e assim por diante, para trás e para frente. Cada criador atua como um sampler de imagens que são constantemente inseridas, como dizem os autores de Brasil Rupestre, "em uma nova semântica, em um novo processo de significação." Por que não dar continuidade ao processo? Gosto especialmente das figuras onde aparecem grupos humanos, cada indivÃduo com mãos e pés colados com os de seus vizinhos, sÃmbolo mais que adequado para a Web 2.0.
Aprendi muita coisa com o livro, coisas das quais não tinha nem a mais vaga idéia antes. Nas primeiras páginas, há várias fotos de estradas, que cruzam o paÃs, muitas vezes de maneira absolutamente precária: são como vestÃgios de estradas, como as artes rupestres fotografadas são também o que restou de muitos outros desenhos e gravuras, apagados pelo tempo ou pelo descaso.
Mesmo assim dá vontade de "viajar", de qualquer jeito. Como fizeram os primeiros portugueses que aqui chegaram e viam nos desenhos das pedras provas da passagem de São Tomé pelo território que ainda seria batizado de Brasil. Como eles, vou embaralhar as coisas. Lá para o Sul, as fotografias me fizeram descobrir que povos pescadores habitaram há milênios as praias de Santa Catarina. Eles pintavam figuras geométricas nas pedras que só podiam ser vistas pelo mar, ou navegando sobre o mar. Indo para o Centro-Oeste, no Pantanal, contemplo gravuras feitas em pisos rochosos e aprendo que a gente que ali morava construÃa morros artificiais imensos, modificando o ambiente (seria land art?) Na Pedra de Ingá, prato cheio e paraibano para divagações ufológicas, fico encantado mesmo é com as notÃcias do trabalho do seu Renato Alves da Silva, que mesmo passando anos sem receber nenhum salário é quem zela com carinho pela conservação do lugar (por falar nisso: gosto de ver no livro muitas fotos onde aparece gente, nossa contemporânea, ao lado dos desenhos milenares). De volta aos arredores de Santarém, fico imaginando a paisagem local tal como era vista pelas pessoas que fizeram aquelas pinturas nas rochas: não a exuberante floresta tropical ainda presente nos dias atuais, mas hiléias entre vastos campos... São muitas informações muito diferentes ao mesmo tempo, que nos deixam entrever uma diversidade cultural e ambiental que por ser tão antiga não precisa ser menos rica que a de hoje.
Tenho talvez que mudar muita coisa na maneira como pensava, ou queria pensar, a história pré-Cabral do Brasil. Sempre admirei, nas tribos que aqui "nomadizaram" por milênios, aquilo que para muita gente parecia ser uma desvantagem, uma caracterÃstica que inferiorizava seus modos de vida diante daqueles de povos tidos como mais avançados ou desenvolvidos: gostava muito do fato desses nossos antepassados distantes não terem deixado monumentos, arquivos, numa estratégia que alguns autores chamaram de "contra a história". Por que não apagar nossos passos pelo mundo, por que carregar o fardo - pesadÃssimo - da História, daquilo que deve ser preservado e lembrado para sempre? Por que não termos a chance de começar tudo novamente, em outro lugar, sem "nada" do que era antes?
Era uma visão romântica, com certeza, e "patrimonialmente" incorreta (vocês já repararam como ultimamente a palavra "resgate" ganhou uma conotação militantemente positiva? Onde vamos colocar tudo que estamos "resgatando"? Onde há espaço para tanta coisa?) Agora com este livro de tantas provas fotográficas fico em dúvida quanto ao meu romantismo anterior, mas não exatamente decepcionado. Deparo-me com um longo - muito longo - desejo de tatuar, de maneira permanente, o corpo do planeta. Mas exatamente para quê? Ninguém sabe ao certo... Deixar mensagens para as gerações futuras? Cumprir exigências de rituais mágicos? Adoro pensar que eram apenas brincadeiras. Brincadeiras serÃssimas, como todas as brincadeiras devem ser. Porém, estando ainda sob o impacto de tantas imagens tão antigas mas tão novas para mim (e para a torcida do Flamengo), rendo-me ao desejo de delirar um pouco mais: e se forem ensinamentos, um receituário? VestÃgios que nos iniciam no "caminho" - bem zen - para não deixar nenhum outro vestÃgio? Um documento de estética da desaparição que por isso mesmo devemos guardar para sempre: nunca deve desaparecer...
Legal! Eu já estou remixando imagens do Brasil pré-histórico que captei no Museu EmÃlio Goeldi, em Belém. Fiz uma primeira imagem, que chamei de Ananindeua. Em seguida, fiz um remix, na forma de uma colagem sobre placa de vÃdeo. Adorei a experiência. Senti-me exatamente como um artista gráfico atávico.
Kuja · São Paulo, SP 19/3/2007 09:20
Kuja: excelentes as imagens: era exatamente desse tipo de remix que eu estava falando!
incrivel: fui procurar agora no google: quase nada sobre o livro Brasil Rupestre - quando há alguma coisa é só anúncio do lançamento e resumo do release... depois reclamam de que "não acontece nada"...
Hermano, legais as divagações e as informações propriamente.
Aqui em Santa Catarina (que citas), em Floripa, onde moro, tem vários sÃtios arqueológicos, com discussão sobre as datas das inscrições. Um fica no Costão do Santinho, onde convive (o sÃtio arqueológico) com empreendimentos turÃsticos hoteleiros, que inclusive fagocitaram sÃmbolos e os tornaram marcas. Outro fica na Barra da Lagoa, na prainha à qual se chega atravessando a ponte pênsil, e é um sambaqui -cemitério indÃgena (uma vez bati papo, de manhã cedo, com um pescador que cumpria, lá de cima das pedras, a função de "olheiro", avaliando o movimento dos cardumes pra dar a dica ao pessoal que ia embarcar mais tarde, e me contou que já tinha recebido dinheiro "de um médico paulista" pra desenterrar ossadas que seriam levadas embora -pra coleção pessoal ou museu estrangeiro, não sei)... Bom... outro fica na Ilha do Campeche, e também tem que conviver com uma semi-privatização do sÃtio por uma associação (Couto de Magalhães é o nome) que era de caça e pesca originalmente e hoje administra o turismo das poucas dezenas de "donos" da ilha, grupo no qual só se pode entrar por meio de convite de algum membro... Por último, tem um outro sÃtio arqueológico na Praia Mole (até a Galheta)...
Todos pouco estudados e com preservação pouco eficaz, até onde sei.
Bom... me alonguei verbalmente. Agora vou tentar esticar o corpo.
Abraço.
Hermano,
Engraçado que sempre que via os motivos usados para as tatuagens urbanas me perguntava: porque não usar os motivos indigenas "préhistóricos"? Foi pensando num antigo livro de referencia gráfica da Dover Press que reproduz temas amazônicos....
Felipe, não esquecer a Ilha de Porto Belo...
Muito interessante...
Entre o resgate e o esquecimento, estamos bem ali, em algum espaço-tempo, onde as inscrições se sobrepõem.
Hermano, a matéria e imagens são excelentes. Precisamos conhecer mais da nossa herança cultural.
Obrigada.
Hermano,
Não sei se "viajei", mas quando vi o seu texto há uns dias atrás, achei que tivesse lido algo sobre voce sugerir que artistas se inspirassem nesses rupestres para projetos. Pois não é que o Mawaca, minha banda, começou em 2005 um projeto assim, usando os "sinais" rupestres como partituras musicais contemporaneas e deu certo? É o nosso próximo CD com temas improvisados sobre os rupestres da Serra da Capivara e dos sitios arqueológicos do Pará mesclados com temas indigenas. O projeto chama-se Rupestres Sonoros. Já entramos em estudio e estamos mixando algumas faixas.
que boa sincronicidade! vai ser bom ouvir este novo CD!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 16/5/2007 02:45Excelente, parabéns. Interessante de verdade.
Antonio Hermida · Niterói, RJ 9/7/2007 01:11Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!