SEM VERGONHA DE SER HOMEM, MULHER OU FLOR

Divulgação
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Ériton Berçaco · Muqui, ES
16/6/2008 · 237 · 28
 

O documentário “Homensâ€, de Lucia Caus e Bertrand Lira, é um retrato da vida áspera por que passam muitos homossexuais no interior do Brasil


Flores Horizontais
flores da vida
flores brancas de papel,
da vida rubra de bordel,
flores da vida
afogadas nas janelas do luar
carbonizadas de remédios, tapas, pontapés,
escuras flores puras, putas, suicidas, sentimentais.
Flores horizontais.
Que rezais?

Com Deus me deito.
Com Deus me levanto.

(Oswald de Andrade)


O belo e tocante poema "Flores Horizontais", de Oswald de Andrade, musicado por José Miguel Wisnik, ganhou força e eco no timbre inconfundível de Elza Soares. E é a eles, ao poema e à música, que recorro como epígrafe deste texto, escrito agora, a poucos minutos de ter assistido ao que eu chamaria de poesia filmada. Falo do documentário “Homensâ€, lançado na última quinta, 12, em Vitória, dirigido pela capixaba Lucia Caus e pelo paraibano Bertrand Lira. O curta, de 22min., mostra de maneira direta, sem rodeios, a vida amarga - às vezes risonha, sempre tocante - de homossexuais de cidades do interior do Nordeste.

Na primeira cena, Bárbara Alice de Mônaco arruma a mesa de sua casa, com uma toalha estampada, castiçais com velas e um vaso de flores. Ela decora a sala, como quem prepara um evento, ou vai receber uma visita. A sala e a mesa estão prontas, para que a câmera revele aos olhos atentos dos espectadores os encontros e dissabores da personagem.

Na seqüência, de forma linear, outras oito personagens contam parte de sua história. Seus conflitos, suas conquistas, suas angústias, são postos sem medo diante da câmera. São gays que se identificam como homem, mulher, como gente. Pessoas que enfrentaram e enfrentam o preconceito em cidades bem pequenas, onde a tolerância parece menor que nos grandes centros. Gente simples, de olhar simples, com sorrisos e lágrimas verdadeiros.

Pessoas de alma grande, de coragem exemplar, que se pintam, se travestem, se embelezam para a vida; sem ter vergonha de ser o que muitos ainda escondem. Homens que assumiram sua verdade, ainda que sob a pena de serem excluídos, mal vistos, ridicularizados. O salto alto de muitos deles – ou delas –, o perfume, o batom, são gostos, cheiros, cores que os encorajam; são toques de penteadeira que ornamentam suas peles, cabelos, suas hastes, corpos cravados de espinhos que se fazem flor. Homens-gays, travestidos ou não, que suportam o sol, a selva social, repleta de feras hipócritas, para preservarem seu mais belo prazer: a vida levada ao estremo, vivida até a última pétala. Sem medo de ser flor, sem medo de ser homem, sem medo de ser.

Bem como as flores de Jean Genet, no seu maravilhoso livro Nossa Senhora das Flores, os "homens" de “Homens†são o reflexo da coragem, da afronta ao mundo idiota dos preconceituosos. Mas, também, são o reflexo da carência de dignidade, de educação, de oportunidades, para quem vive à mercê do acaso na realidade crua de muitas regiões brasileiras. Como a flor, de "A flor e a náusea" de Drummond, muitas vezes a flor se faz espinho para agredir seu agressor, para resistir à aridez do pouco de lugar que lhe resta em meio a tanta falta de respeito e humanidade.

A vida, às vezes, é assim. O curta termina ao som de Marcela Lobo, com a música "Foi Assim" - letra de Renato e Ronaldo Corrêa, sucesso na voz de Wanderléa e de Jane Duboc.


AMAPÔLA EM DUAS SESSÕES
Faltou espaço para tanta gente em uma das salas do Cine Jardins, onde foi lançado o documentário. Tanto que foram necessárias duas sessões, para que todos pudessem assistir ao belo e sensível trabalho de Lucia e Bertrand. E, como se não bastasse o que se pôde ver na tela, uma das personagens veio diretamente de Gurinhém, Paraíba, especialmente para o lançamento.

Sob aplausos e reverências, a cativante e devidamente maquiada Amapôla agradeceu a todos dizendo que adorou conhecer a cidade e que estava muito feliz com o resultado do filme. Ela e todos ficamos esperando outras flores, com a promessa dos diretores de transformar o material captado num longa. Quem curte os festivais de cinema pelo Brasil, aguarde!

Termino dando-lhes de presente um fragmento do ácido poema de Drummond, A flor e a náusea, que, num certo sentido, dialoga com o curta "Homens":

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


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Ériton Berçaco
 

Leia o texto ao som de "Flores Horizontais", com Elza Soares.

Ériton Berçaco · Muqui, ES 13/6/2008 02:16
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Ilhandarilha
 

Ériton, seu texto e sua sensibilidade traduzem muito bem o filme Homens. Sabe o que mais me tocou no filme? Aquela que trabalha numa fábrica, acho, num determinado momento da sua fala diz do seu desalento e desamparo, na puberdade e adolescência, quando percebeu que não era como os meninos que conhecia, que era outra coisa, mas não sabia como lidar com aquilo. Aprender sozinha a lidar com as situações difíceis da vida de homossexual - travestido ou não - é um mérito de todos os Homens (com H, sim) mostrados no filme.
Vi pelo horário em que postou que o filme te tocou mesmo. Ao ponto de sair da pré-estréia e correr pro computador para escrever essa poesia aqui pra nós...
Beijos

Ilhandarilha · Vitória, ES 13/6/2008 11:51
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Ériton Berçaco
 

rs...
verdade, Claudia. Cheguei em casa e não me contive. Corri para o PC para rabiscar este texto.
Bjs

Ériton Berçaco · Muqui, ES 13/6/2008 11:56
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Andre Pessego
 

Estou abrindo a votação para Bárbara, meu jovem
abraço
andre.

Andre Pessego · São Paulo, SP 15/6/2008 07:37
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MarcilioMedeiros
 

Ériton,
Ótimo seu texto. Lamento apenas saber que provavelmente não verei o filme. Votado.
Abs,

MarcilioMedeiros · Aracaju, SE 15/6/2008 10:41
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Ériton Berçaco
 

Andre, Bárbara Alice de Mônaco agradece. Abs

Marcilio,
é possível que o curta esteja em vários festivais pelo Brasil. Qdo passar por aí, assista a ele. Abs

Ériton Berçaco · Muqui, ES 15/6/2008 11:42
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Cristiano Melo
 

Ériton,
Muito bom, demais, parabéns pela sensibilidade meu camarada.
abção.

Cristiano Melo · Brasília, DF 16/6/2008 19:35
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Ilhandarilha
 

Marcílio, com certeza o filme estará no Curta-SE. Não sei se já aconteceu em 2008, mas em 2009...

Ilhandarilha · Vitória, ES 16/6/2008 21:17
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Candice Gonçalves
 

Lindo e delicado o texto; como merecia ser. Parabéns por tratar o assunto com tanta beleza. Não sei quando conseguirei ver o curta, mas garanto que vou procurar. Suas indicações são geniais. Parabéns, amigo Ériton!

Candice Gonçalves · Crato, CE 16/6/2008 22:18
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Ériton Berçaco
 

Valeu, Cristiano e Candice.
Ilha, certamente o curta será muito divulgado pelos festivais, e talvez veicule em algum site bacana da internet, por q não?
Abçs

Ériton Berçaco · Muqui, ES 16/6/2008 23:03
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Cintia Thome
 

Ériton, estarei a procura deste filme/curta. Parabens pelo rico trabalho. Tratando este tema de maneira limpa, com muita beleza.ab

Cintia Thome · São Paulo, SP 16/6/2008 23:19
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Diego Madih
 

Que maravilha, obrigado por compartilhar essa informação e parabéns pelo texto. Quero ver esse filme, se souber como posta no guia depois.

E aproveitando o ensejo, acaba de ser traduzido o livro 'Travesti', de Don Kulick: uma etnografia com travestis de Salvador. Eu fui ao lançamento aqui no Rio, semana passada, e - apesar de ainda não ter lido - aconselho a quem se interessa pelo tema.

Diego Madih · Rio de Janeiro, RJ 17/6/2008 02:28
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Poeta Jorge Henrique
 

Ériton, que texto intenso, sensível, claro e direto. Ótima resenha, cumpre bem o seu papel: fiquei louco para assistir ao documentário.
Parabéns pelo ótimo trabalho.

Poeta Jorge Henrique · Nossa Senhora da Glória, SE 17/6/2008 10:10
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MarcilioMedeiros
 

Ilha,
Obrigado. Vou ficar atento. Bjs,

MarcilioMedeiros · Aracaju, SE 17/6/2008 11:02
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Nelson Sena
 

Quero ver esse documentário.
Está disponivel em algum lugar??

Nelson Sena · Fortaleza, CE 17/6/2008 13:40
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fagnrcampello@hotmail.com
 

eriton muito bom o texto
quero ver o filme agora

fagnrcampello@hotmail.com · Salvador, BA 17/6/2008 13:46
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Doroni Hilgenberg
 

Eriton, sensivel e esclarecedor seu texto. A vida dessas flores, tantos os assumidos como os que ainda se encontram no ármario não deve ser nada fácil, pois o preconceituoso não tolera o que foge aos seus preceitos e não enxerga o outro lado da moeda, vê tudo como um grande "pecado". Gostaria muito de assitir o documentario. Bjsss e votos

Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 17/6/2008 14:07
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Náthima Danel
 

Ériton, encantada com sua sensibilidade, sua capacidade de ver o mundo além, além de nós mesmos, de nossas carapuças e véus; Deus abençõe tua alma leve, tua cantiga de ninar as dores. Deus abençõe as diferenças, pois nelas, nos tornamos iguais, humanos, gente.
Os homossexuais são flores sim, belas, de perfumes e cores diferentes, ousadas, para destoar e se fazerem existir.
Abraço forte.
Ansiosa para ver o documentário!

Náthima Danel · Boa Vista, RR 17/6/2008 15:06
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Beto Mathos
 

A riqueza de detalhes de seu texto deixa qualquer um com vontade de correr pra onde for exibido esse sensível e belo curta. Esta semana estarei com a gravação da Marcela...devo postar, ou te mando por qualquer meio eletrônico.
Abraço!

Beto Mathos · Vitória, ES 17/6/2008 20:32
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Thiago Paulino
 

Muito legal Ériton.. realmente teu texto nos deixa com vontade de ver o filme.. espero que ele passe aqui no Curta-SE...em 2009 provavelmente que este ano já rolou o festival..
Houve alguma mesa redonda antes das seções? Esse é um tema que merece debater...
E se houve seria legal algumas informações sobre o que pensa o diretor e até a própria Amapôla..

Ah cara! Muito legal também as inserções de poesias no texto. Além de enrriquecer deram toda uma beleza especial..

Abraço e parabéns (votado)..

Thiago Paulino · Aracaju, SE 17/6/2008 23:15
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Nydia Bonetti
 

Ériton
Lendo esta tua bela resenha me lembrei de um poema meu que fala deste tema:

Flor Menino

Gosto da flor menino
Do cravo amarelo
Do amor perfeito
Do lírio branco

Antúrio
Totalmente masculino
Copo de leite
Requintado, fino

Girassol
Menino maluquinho
Sempre girando
Em busca da luz
Do sol

Crisântemo
Já quase homem feito
Colorido perfeito

Narciso
De todos o mais belo
Refletindo nas águas
Seu olhar amarelo

Quem foi que disse
Que flor
Não pode ser menino

Quem foi que disse
Que menino
Não pode ser flor

São flores!
Das suas dores
Quem saberá...

beijo

Nydia

Nydia Bonetti · Piracaia, SP 18/6/2008 00:04
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Ériton Berçaco
 

Obrigado a todos que comentaram: Cintia Thome, Poeta Jorge, Nhátima
. Nydia, adorei o poema, que tem tudo a ver com o texto e com o vídeo. Diego, interessante este livro sobre as "Travestis" de Salvador. É preciso abrir espaço para a diversidade e suas riquesas.
Nelson, FagnrCampello, Doroni, o documentário percorrerá os festivais de cinema e vídeo do Brasil. E imagino q, no tempo oportuno, será vinculado em algum site, como o Porta Curtas, ou mesmo aqui, no Overmundo, por q não? Podemos agitar isso com os queridos do site e com os diretores do curta. O meu documentário Brilhantino, por exemplo, pode ser visto aqui no site, no Banco de Cultura. Aproveito para convidá-los a assistir a ele.
Beto, quero ouvir a música da Marcela Lobo, sim.
Thiago Paulino, não houve mesa-redonda sobre o curta, mas acho que ali há um material excelente para debates, inclusive com os personagens e diretores. Penso que os estudiosos dedicados terão um bom objeto de pesquisa. Sem falar, q há a promessa de um longa, com cerca de 20 depoimentos.

Abraço a todos.

Ériton Berçaco · Muqui, ES 18/6/2008 11:40
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Ériton Berçaco
 

* Para vinculado, no comentário acima, leia: VEICULADO.

Ériton Berçaco · Muqui, ES 18/6/2008 11:50
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FILIPE MAMEDE
 

Ériton, texto sério e, sobretudo, sensível. Se assumir num mundo cão como esses deve ser uma tarefa muito difícil. Sua construção é excelente, assim como deve ser esse documentário.
Um abraço.

FILIPE MAMEDE · Natal, RN 18/6/2008 12:46
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Paulo Gois Bastos
 

Ériton e demais autores dos comentários. Também estive na sessão de estréia de "Homens" e tive impressões e percepções que divergem das do Ériton. Por isso, para enriquecer a compreensão do documenário sugiro a leitura da minha crítica.
http://www.overmundo.com.br/overblog/ha-homens-em-homens

Paulo Gois Bastos · Vitória, ES 22/6/2008 23:41
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Nic NIlson
 

Opa, Eriton, este texto acabei de enviar para este amigo ai de cima, Paulo Gois.
Aeh, me permitam entrar nesta. Quando o título sugerido foi Homem, pensamos em "ser" ou vc acha que homem só serve para identificar vc e eu? Entao qdo a bíblia diz homem ela exclue a salvação a todas as mulheres? E tem mais. Claramente, o q se discute não é aceito, é discutivel, como diz André. Vc ja fez filme? Nem que for um de aniversário? Conhece a estrutura do docudrama? Amargo, claro crú... assim é o que se apresenta. Com flores de plástico, perucas de plástico, seres nem homens nem mulheres. O Nordeste é diferente? Ja foi tomar café na caneca de plástico ou de lata de extrato de tomate, enferrujada, na casa da beira de estrada? Tá pensando q ser gay, traveco, homo, e qualquer outro adjetivo q vc gosta de nomear, cada um, cada um, tem o glamour de hollywood?
Aqueles seres, q vc nao quer q chamemos homem, podem ser chamados de veados, serve? Acho q ficariam mais contentes com esta alcunha do que serem "homem" no gênero, número e grau dos hipócritas. E esta equipe ruim, que nada sabe de filme, q tem uma camera na cabeça e uma ideia na mão, são seres q filmam tudo, de qualquer jeito, como fotos sem focos, mas realizam e mandam um recado: Sorria, Paulo, vc está sendo filmado!

Nic NIlson · Campinas, SP 25/6/2008 17:08
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Fabrício Costa
 

Muito bom! Eu li seu seu texto por indicação de um amigo meu quando ainda não fazia parte do overmundo, mas agora que faço, retorno aqui por meio da janela de favoritos do meu computador para dizer que achei ótimo e parabeniza-lo. Abraço.

Fabrício Costa · Vitória, ES 6/8/2008 00:43
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Ériton Berçaco
 

Valeu, Fabrício. Q bom que gostou do texto. Vc assistiu ao curta em Vitória?

Ériton Berçaco · Muqui, ES 6/8/2008 09:50
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