Siriri, Cururu & Software Livre

anselmo parabá
transportando a alegria.
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eduardo ferreira · Cuiabá, MT
2/9/2007 · 348 · 23
 

Sábado, 26 de agosto de 2007. Tórrido sábado, uma névoa cinzenta vai colorindo a lua de um vermelho intenso sob o sagrado manto da noite desse mês soturno que é agosto. Enquanto seguimos pelas vias abertas e metropolitanas da nova Cuiabá, em direção ao Porto de entrada e origem da formação da cidade, penso: Abre aqui a temporada mais quente da história cultural de Cuiabá.

Do palco, cercado por milhares de pessoas nas arquibancadas, o rufar dos tambores, ôpa, digo: o rufar dos mochos prenuncia, como um ritual primal, que as forças (mais diversas) do povo cuiabano se unem em torno de um bem comum. E o centro da questão está aí, na afirmação da capacidade dos coletivos (agrupamentos de indivíduos e ou grupos) se organizarem e ocuparem seu lugar, construir seus próprios espaços de vivência, de produção e de circulação dessa produção. Existe um processo crescente de profissionalização dos grupos que perpetuam essa tradição em Cuiabá.

O 6º Festival Siriri e Cururu propiciou religações com uma ancestralidade latente, dava para sentir isso pelo jeito das pessoas que, por exemplo, ficaram literalmente em transe, numa espécie de comunhão com forças primordais, com a pegada afro do tocador de mocho do grupo Quilombolas, de Mata Cavalo Cima que fica no município de Livramento. Paralelo a essa energia o festival propiciou o contato do público com a telinha azulada dos computadores no telecentro da tenda Casa Brasil, disponibilizando o acesso das pessoas, gratuitamente, sob os auspícios e licença do Linux, software livre, linguagem contemporânea. Contraponto: Siriri & Cururu & Software Livre. Pergunto ao secretário da cultura de Cuiabá, Mário Olímpio: A raiz cabe dentro da internet? Sorrisos. Mário está feliz e, em estado de êxtase, transita no meio da multidão completamente à vontade, sem glamour, sem aquela renca de gente que costuma acompanhar políticos. Aqui, a política é outra.

Essa praça é festeira, onde transborda a alegria simples e contagiante de um povo que está mesmo é afim de dançar e cantar, ao som da viola-de-cocho, do ganzá, do mocho e das vozes que repetem mantras circulares de conteúdo bem humorado. Por vezes, o que ouvimos parecem cânticos que remetem a orações, ladainhas, cantigas de roda. É impressionante a harmonia com que tudo vai acontecendo, muita paz, muita alegria e despojamento no ar.

A estrutura é grandiosa, profissional ao extremo e isso é muito bom, pois dá uma dignidade grandiosa ao evento. Qualidade do som impecável, palco bem colocado, pista de dança apropriada com piso especial, arquibancadas laterais e na entrada, área de exposição de artesanato, comércios diversos, gastronomia (um sucesso!), enfim, é a cultura movimentando cerca de 10 mil pessoas por noite, gerando com isso, conhecimento, contato com a cultura local, diversão e atividade econômica. Dentro e fora. O bairro do Porto estava repleto de pessoas com todos os bares e lanchonetes lotados, vendedores ambulantes gritando alto para oferecer seus produtos, tudo cheio, tudo movimentado. Todo mundo saiu ganhando. O velho Porto parece agora muito mais revigorado.

Fico extasiado e realmente abduzido pelo espetáculo, o siriri e o cururu conquistam o centro da arena onde desfilam toda sua força e brilho. Amparados por uma estrutura que dá a dimensão de sua força expressiva, como espetáculo mesmo, deram um show! Chitas brilhantes no rodopio da dança tecendo novas vestes novos mantos elegendo novos foliões, a alegria reina e se espalha pelos arredores. Não! O Porto não é só violência e marginalidade. O Porto é um lugar carregado de boas energias, é só uma questão de estimular a vivência nesses espaços, as pessoas sairem para suas portas, sentar nas calçadas e contar histórias como o cuiabano gosta de fazer. Ir às festas. Ir para as ruas e espantar o medo de uma violência que é muito mais psicológica, é preciso encarar os espaços públicos com a consciência de que nós é que fazemos as cidades. É nossa responsabilidade também ocupar os espaços e encarar a realidade com a convicção de que podemos construir a cidade tal e qual a queremos.

Na tenda onde estava montado o telecentro da Casa Brasil era muito interessante ver a reação de surpresa da garotada: É de graça? Quanto que paga?. Não paga nada, rapaz! A maioria absoluta dos usuários era de jovens. Uma senhora de 50 e poucos anos me surpreendeu ao pedir acesso para entrar em contato com sua filha que “devia estar no Orkut ou MSNâ€. Ela queria pedir a filha para vir buscá-la. Achei bacana o fato dela utilizar a internet para contatar a filha. Falando em Orkut, foi o campeão absoluto de acesso pela gurizada, pensei logo: site de massa. Pior que a torcida do Flamengo, ou do Corínthians.

O projeto Casa Brasil é de inclusão digital e está diretamente ligado ao movimento do Software Livre, Cultura Digital, Economia Solidária, Conhecimento Colaborativo, Cultura Livre, enfim, está atuando lá na ponta, atendendo as comunidade que não têm acesso à tecnologia, com a utilização de novos conceitos aliados à cultura. Achei muito bacana esse mix entre a tecnologia e a tradição do povo da Baixada Cuiabana e de Cuiabá.

A noite avançava, junto com os temores de agosto. Nosso carro atravessava a ponte do rio Coxipó quando me lembrei do Nelson Rodrigues, de um personagem que ele sempre recorria quando evocava forças espirituais, o Sobrenatural de Almeida, que parecia sobrevoar insistentemente acompanhando nossa aventura. Ãamos em direção ao Espaço Cultural Silva Freire onde estava rolando uma série de shows de bandas independentes que disputavam para tocar no Festival Calango. Mas isso é outra história.

Nelson Rodrigues certamente diria com sua voz cavernosa: “Essa noite estava escrita há mais de 6 mil anos!â€

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adriana fetter
 

Fantástico, arrepiei!

adriana fetter · Brasília, DF 30/8/2007 18:23
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gutocarvalho
 

Muito bom o artigo amigo poeta, foi uma pena não poder participar deste lindo festival, já estou ansioso pelo próximo ;)

Parabéns pelo trabalho.

gutocarvalho · Campo Grande, MS 31/8/2007 10:26
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Bia Marques
 

Pra variar passo por aí entre os acontecimentos (Festival do Cururu e Siriri semana passada, agora Festival Calango)... Ainda bem que cê narra tudo com uma verve que transporta a gente pra cena. Adelante Ferreira e te cuida muito que tem muita coisa ainda por vir, tudo a ser feito! Abraço forrado de carinho pra ti e as meninas.

Bia Marques · Campo Grande, MS 1/9/2007 15:06
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pixel
 

estou no telecentro Casa Brasil do Calango e acabei de dar meu vto aqui.

pixel · Salvador, BA 1/9/2007 19:15
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eduardo ferreira
 

também estou aqui no telecentro-casa brasil-calango. não tive tempo de colocar os links aqui mas vou (pós calango) fazer isso aqui mesmo nos comentários. a arena agora é roqueira. milhares de pessoas circulando ao som tribal da cena mais atrevida da música brasileira dos últimos tempos. cultura livre, cultura digital cooperação ação ação ação. software livre compartilhamento conhecimento coletivo. animação! precisamos de animação. oswaldiana repercute na contemporânea paisagem: eira eira eira/ o gênio é uma besteira/ viva a rapaziada.

eduardo ferreira · Cuiabá, MT 1/9/2007 21:55
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Roberto A
 

Brilhante artigo amigo! Abraços.

Roberto A · Cuiabá, MT 1/9/2007 22:50
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Diego Medeiros
 

Vamos lá, 43 é pouco.

Parabéns pelo texto Eduardo Overmundo Caximir Ferreira.

obs. Vamos convencer Adriana a publicar os dela também.

Diego Medeiros · Brasília, DF 2/9/2007 13:13
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Claudiocareca
 

o eco ancestral dos tambores,ops mochos, retumbam na sua cabeça branca iluminada,

Um grande abraço, parceiro. Parabéns, mais um texto extasiante...

Claudiocareca · Cuiabá, MT 2/9/2007 19:21
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Rodrigo Teixeira
 

Manu Edu, como sempre, texto-visceral-soco-no-estomago! Fiquei querendo muito ser cuiabano. Cada vez quero mais na verdade. A força vibrante daí me faz pensar em pular a cerca. Mas alguém tem empurrar o barco deste lado do Mato também certo? Quem sabe um dia esta canoa vira só uma embarcação novamente...
Mando o link de uma questão do lado de cá, mas que é de todo mundo!
Força!


Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS 2/9/2007 22:47
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sandra vi
 


linda matéria lindo texto é poetagem poesia com reportagem.
rodrigo rapaz e nóis que ficamos rodopiando daqui de longe entre dois e mais matos

sandra vi · Petrópolis, RJ 2/9/2007 22:54
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Nydia Bonetti
 

Muito bommm!!!

Nydia Bonetti · Piracaia, SP 3/9/2007 08:54
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Tetê Oliveira
 

Olá Eduardo, seu texto é poético e carregado de emoção. A festa parece ter sido mesmo muito bonita. Parabéns!
No entanto, como não conheço a história cultural de Cuiabá, fiquei curiosa sobre o que são "o siriri e o cururu". Qual é a história desses grupos, que como vc diz, perpetuam essa tradição em Cuiabá? Vc já escreveu sobre eles aqui antes (tem algum link pra indicar)? Desconheço até o que é mocho - numa pesquisa no Aurélio, não vi um significado que pudesse aplicar aqui.
Abraços e parabéns a toda a comunidade pela festa.

Tetê Oliveira · Nova Iguaçu, RJ 3/9/2007 12:43
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Edmundo Nascimento
 

.. Inspirado !!

Edmundo Nascimento · João Pessoa, PB 3/9/2007 15:28
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Fábio Fernandes
 

Faço minhas as palavras do Rodrigo! Que vontade louca de ser matogrossense quando leio os teus textos, Edu!!

Fábio Fernandes · São Paulo, SP 4/9/2007 08:23
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Natacha Maranhão
 

a-do-ro teus textos, Edu!!!
deu a maior vontade de participar da festa!
beijo

Natacha Maranhão · Teresina, PI 4/9/2007 09:10
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eduardo ferreira
 

http://201.45.57.3:6060/festivalsiriri/web/site.html
site oficial do festival
contém algumas referências ao siriri e ao cururu

galera toda - naulôca - OVER CONHECIMENTO - dos mais de mil e quinhentos brasis.

beijos gerais - de minas a porto velho de porto a porto de sol a sol.

eduardo ferreira · Cuiabá, MT 4/9/2007 11:03
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Elaine Santos
 

Eu estava lá sou testemunha do quanto foi importante a parceria entre o siriri e cururu e o sopware livre.

Mas o seu texto mai uma vez me mostrou o que meus olhos não puderam ver.

Elaine Santos

Elaine Santos · Cuiabá, MT 4/9/2007 11:19
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Zezito de Oliveira
 

Que bom se puder postar algumas imagens e/ou áudio.

Abraço,

Zezito de Oliveira · Aracaju, SE 4/9/2007 17:43
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Assum Preto
 

Rapaz... eu estive lá e não sentí arrepio nenhum na espinha... =) [...] mas também não vou mais criticar, ser chato tem limite... mas vou continuar a chamar boi de boi e não de parintins... =)

Assum Preto · Campo Grande, MS 11/9/2007 20:41
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Marcos Paulo Carlito
 

Votado com mérito!

Nada mais digno de voto do que a inclusão digital de nossa cultura!!!

Me diz uma coisa, em Santo Antônio do Leverger também tem esse patrimônio?

Marcos Paulo Carlito · , MS 13/10/2007 13:30
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ayruman
 

É justamente o caráter não verbal da comunicação artística que constitui o motivo concreto da Arte ser tão acessível e não exigir a erudição das pessoas para ser entendida. Exige inteligência sim, e sempre sensibilidade... Fayga Ostrower*

Tudo por amor e reverência à Arte!!!
Estouno: 1 - http://www.overmundo.com.br/banco/nao-existe-arte-so-na-cabeca-1

2 -http://www.overmundo.com.br/banco/vovo-viu-a-criacao-do-universo

Se gostar deixe seu comentário. Sou grato. JBConrado

ayruman · Cuiabá, MT 17/5/2008 01:11
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adan arr.
 

ah, tenho que voltar pra terrinha.
saudades de cuiabá.

adan arr. · Maringá, PR 23/9/2008 08:09
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MERIREU
 

CUIABÃ SEMPRE CIDADE VERDE
Eduardo, navegando no OVERMUNDO no \"Hemisfério Cuiabá\", foi um prazer ler \"Siriri, Cururu & Software Livre\". Nasci no Bairro do Porto, ali na Rua Caetano Santana, antiga Travessa das Brotas, uma Rua Caçula, pois começa na esquina do antigo Abrigo dos Velhos (hoje FIENTEC) e termina no pontilhão do Córrego da Prainha (córrego onde catávamos ouro logo após uma grande chuva, hoje principal esgoto de Cuiabá) dando acesso ao Bairro do Barcelo, e se estirar um pouquinho chegaremos a Várzea Ana Poupino, Terceiro e subindo ao Morro do Tambor. Vivi os momentos dos Blocos e Cordões carnavalescos, de Festivais de Cururu e Siriri, dos eventos do Clube Náutico promovido por Rabelo Leite. E acima de tudo quando essas belezas culturais eram espontâneas e presentes, das Festas de Santo que ocorriam em vários bairros de Cuiabá. Saí de Cuiabá para implantar e administrar uma Unidade da FUNAI em Araguaina (antes Goiás, hoje Tocantins), deixei uma Cuiabá entregue ao lixo e quando retornei vi uma cidade realmente verde, exuberante e com suas tradições pulsando com muito êxtase. Senti no Cururu e no Siriri uma pujança desmedida e praticada com muito amor, saindo da Casa da Domingas do Bairro São Gonçalo Beira Rio - Berço de Cuiabá. Então acreditei: \"essa nossa Cuiabá está viva e enraizada nas suas tradições\". Foi um prazer ler \"Siriri, Cururu & Software Livre\". Parabéns companheiro, vamos continuar e sempre recolorir essa CUIABà SEMPRE CIDADE VERDE...

MERIREU · Cuiabá, MT 16/10/2012 00:54
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