Suas mais perfeitas traduções

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André Maleronka · São Paulo, SP
30/4/2007 · 121 · 4
 

Por aqui muitos clamam o cetro da música urbana: um curriculum lattes habilitando o músico ou intérprete a traduzir a cidade em som. Mas SP é policêntrica, difusa e concreta, por ela toda ninguém pode responder: não vai ser um determinado grupo de pessoas que conseguirá traçar o guia, o plano-diretor, planos e metas pra todos.

Em SP há 17 milhões de histórias e contando, e cada uma dessas histórias desdobra contos e pontos. Não há o típico paulistano, só a massa heterogênea, por mais que às vezes algum sabichão desesperadamente agrupe vontades incomuns em momentinhos. No trampo de muita gente traços da cidade colorem, preenchendo as lacunas com signos como adjetivos, a arte encarada como um livro de colorir, desses pra criança. No meio dessa corrida, há os que, com sucesso, congelam um pouco da experiência que é viver aqui, tratando a situação como substantiva – e aí o que importa não é fazer uso de signos que gerem identificação imediata, como referências pra um "job" publicitário, o que importa são as histórias, os pensamentos sobre ela, as reflexões. Lifestyle é uma palavra só apenas em inglês. Ter água suja espirrada na roupa, resultado inevitável do busão sobre os remendos de piche eleitoreiros é coisa que aqui não se xinga: apressa-se o passo pra chegar ao lar. Entre outras coisas, SP é a busca da satisfação individual.

Dentro do grupo desses esforços que trincam, como se essas grandes obras fossem geleiras mesmo, que vão se liquefazer e evaporar, pra então se solidificarem novamente sem evidência da forma anterior, está Itamar Assumpção. Antes de chegarmos a ele, vamos só explanar um pouco melhor a imagem. Por exemplo, é praticamente impossível não pensar em Mano Brown, o maior poeta da cidade em atividade, ao ler o falecido escritor João Antônio vociferar com calma termos como "merduncho" e "classe mérdia". É óbvio que o líder dos Racionais não usa esses mesmos termos já que, como os grandes, Brown tem sua própria linguagem. São obras parecem falar com você, não pra você, como uma conversa na língua corrente na rua ou no bar. Os grandes tão te contando umas coisas, não cagando regras. Dos processos químicos que remontam a Adoniran Barbosa, Germano Mathias, Geraldo Filme, Cascatinha e Inhana, Região Abissal, Patife Band, Cólera, Mano Brown e tantos outros, nada se copia, só a mudança permanece: como conviver – a comunicação é a pedra fundamental do movimento. São algumas histórias de como a gente sobrevive, como anda e como pensa, como vamos "tirar mais de mil por mês" (Adoniran Barbosa). Alguns dos paulistanos mais paulistanos, mais amantes dos pequenos acertos dentro dessa funcionalidade que tenta se impor pra confundir, é gente que vem de fora pra morar aqui . Atônitos e apressados demais pra pensar reto, os imigrantes e seus filhos com sede de bola formam uma seleção, distante do elitismo metido a cosmopolita de tantos outros. E talvez um dos maiores tenha sido Itamar Assumpção, vulgo Nego Dito.

O músico autodidata, falecido em 2003 vítima de um câncer, sempre carregou a pecha de maldito. Vindo de Londrina decidido a ser músico depois de amargar uma injusta temporada na cadeia, Ita aqui chegou e desabrochou. A sua obra é fundamental: exercendo um profundo respeito pela tradição musical brasileira, ele criou uma linguagem própria, integrando novos elementos e dialogando diretamente com o mundo. Sua poética, que fazia uso fino de ironia, sarcasmo, de trocadilhos e sons das palavras, nunca lançou mão de "truques espertos" ou "sacadinhas", muito pelo contrário. Escutar sua música é perceber que ele realmente falava certas coisas porque TINHA que falar, uma necessidade vital, pra viver melhor. Sua carreira, quase que totalmente independente (um disco pela Continental) ainda é pouco conhecida do grande público, mesmo com as recentes regravações feitas por Zélia Duncan (uma entrou até em trilha de novela da Globo).

Eis que surgiu o projeto PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, um compêndio de partituras de Itamar Assumpção, recheado com análises e "causos' sobre sua vida e obra. Organizado por gente muito próxima a ele (como a jornalista Mônica Tarantino, seu ex-guitarrista Luiz Chagas, sua ex-contrabaixista Clara Bastos e sua filha Anelis Assumpção), o songbook consiste na transcrição de 96 músicas gravadas pelo cantor e compositor em partituras cifradas, divididas em dois volumes e organizadas cronologicamente pelas datas de lançamento dos discos. O presente trabalho inclui as melodias, harmonias e os arranjos de Itamar. Segundo os autores, o objetivo da reunião de sua obra em um livro de partituras e letras é preservar o trabalho deste compositor em sua forma básica, uma vez que ele tinha como principal característica retrabalhar os arranjos. As histórias contidas servirão pra contextualizar a obra e esclarecer certos pontos nevrálgicos desse artista que viveu à margem.

O Volume I inclui um ensaio sobre biografia e carreira (pesquisa e texto da especialista em literatura Maria Betânia Amoroso), textos sobre estilo de composição e poética (de autoria de Luiz Tatit e Alice Ruiz) e um estudo de Clara Bastos sobre os critérios usados para produzir as partituras. No II, entrevistas de Itamar sobre sua música e depoimentos de parceiros e pessoas que conviveram com Itamar ou sua obra, entre eles Alzira Espíndola, Jards Macalé e Glauco Mattoso.

Que isso vire o jogo, antes tarde do que nunca.

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isaac_lira
 

muito bem escrito... valeu, andré.

isaac_lira · Natal, RN 2/5/2007 01:03
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André Maleronka
 

valeu vc issac! esse texto é antigo, vale acrescentar a publicação do livro Na Boca do Bode, que trata do período em que Itamar, junto com Arrigo Barnabé & cia moravam e agitavam em Londrina. Ainda não li, mas me disseram que é ótimo. abs, até

André Maleronka · São Paulo, SP 2/5/2007 12:10
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Thiago Ventura
 

puta texto, maleras!
valeu!

Thiago Ventura · São Paulo, SP 3/5/2007 18:38
1 pessoa achou útil · sua opinião: subir
André Maleronka
 

valeu nego!

André Maleronka · São Paulo, SP 3/5/2007 20:09
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