No primeiro dia da edição do Festival Tangolomango da Diversidade Cultural em Fortaleza, realizado nos dias 11, 12 e 13 de outubro, já se deu pra ter uma idéia do que seria aquela mistura. Em uma roda com mais de 60 pessoas, grupos do Ceará, Rio de Janeiro, BrasÃlia e Recife entravam na ciranda e apresentavam uma palhinha do que traziam para o escambo artÃstico dos próximos dias. A proposta seria criar um espetáculo coletivo depois de dois dias de intenso intercâmbio em que a apresentação de cada grupo seria desconstruida para ser remodelada conjuntamente.
Mestre Cachoeira acompanhou tudo com olhos atentos e mãos inquietas. Seus dedos não paravam de chafurdar o pandeiro, sempre a tira colo. Integrante do Grupo de Bacamarteiros de Beato José Lourenço, grupo de tradição popular de Juazeiro do Norte (Ceará), Mestre Cachoeira era o mais antigo da roda. Os 76 anos de vida na roça e briga com o gado lhe deram força para cantar e tocar feito menino danado. “Depois de 76 anos, agora que eu tô vivendo a mocidade. Pra trás eu não gozava nada, só vivia só em casa trabalhando, lutando com o gado, e hoje em dia eu tô conhecendo o mundo. Agora, eu tô viajando, vendo a beira da praiaâ€, fala sobre o grupo de Juazeiro em que brinca de danças como Maneiro Pau e o Bacamarte. Foram essas brincadeiras da cultura tradicional do Cariri cearense que Mestre Cachoeira e os mais de 10 integrantes do grupo de bacamarteiros trouxeram para a ciranda Tangolomango desses dias.
Na outra ponta etária está Antônio Neto, 13 anos, integrante da Banda de Lata de Todas as Cores. A banda, de Fortaleza, é um projeto da Associação Curumins e faz parte do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Neto, antes de se apresentar, ficou nervoso, sem saber o que iam achar do som de seus instrumentos reciclados e preparados pelos próprios meninos e meninas da banda. Dois dias antes, o companheiro de Neto e também músico, Gutemberg de Matos, 14 anos, havia previsto: “A gente vai ficar é perdido, porque vamos ouvir cada coisa massa, vamo ficar encabulado, ficar impressionado, mas também tomara que eles fiquem impressionados com a nossa cultura tambémâ€.
Entre as latas coloridas e os bacamartes, outros tantos grupos se entrelaçavam ao longo das dinâmicas que logo viraram ensaios coordenados pelos curadores do festival João Artigos e Sidnei Cruz. Além do Grupo de Bacamarteiros e da Banda de Lata, vieram do próprio Ceará: Dona Zefinha (Itapipoca), Tambores de Guaramiranga (Guaramiranga), Dr. Raiz (Juazeiro do Norte). Também desembarcaram por aqui de outros estados, Cia. Aplauso (Rio de Janeiro), Irmãos Saúde (BrasÃlia) e Media Sana (Recife).
No meio de tudo, Neto parecia viver a mocidade de Mestre Cachoeira. “Não sou muito de falar, mas quando é pra brincar, eu brinco, eu esqueço que sou tÃmido. Eu me esqueço de mim, dos dias que eu era menino de rua, vivia trabalhando. Eu esqueço disso e boto pra frenteâ€, fala do alto de suas canelas finas, lembrando da sensação de tocar.
A brincadeira logo se tornou termo corrente para se referir aos momentos de diversão artÃstica na preparação do espetáculo. A idéia de “brincadeiraâ€, aliada ao conceito, fundamental na concepção do festival, de “generosidade intelectual†começou a revelar a postura que o espaço exigia. “A generosidade não é só dar, é saber receber. A gente vai trabalhando pra que esse lugar da generosidade se instaure. E aà a brincadeira tá nesse lugar. Se você gosta de jogar bola, você pode jogar bola em qualquer lugar do mundo, você só tem que chegar ali e entender qual é o código, trazer o que você tem de material da sua mala e jogar uma pelada em qualquer lugar do mundo. Isso é generosidade, ver o que tem de igual e botar na roda o seu tesouro, a tua habilidadeâ€, fala João Artigos.
Orlângelo Leal, membro da banda cênica Dona Zefinha, aproveitou o mote que lhe dei e resumiu: “Se você chegar para Mestre Raimundo Aniceto, se você chegar pra Mestre Aldenir ou Mestre Miguel ou outro grande Mestre do Cariri, no Ceará, e perguntar se ele é artista, ele vai dizer que ele é um brincador. As pessoas que fazem tradição popular, na verdade elas se divertem, elas brincam e o que eles fazem é um brinquedo, por isso que se diz brincantes. E a maioria das pessoas que brincam é pessoas de terceira idade. E nós trazemos isso pra dentro do nosso trabalho, essa energia do brincar, porque se eu me divirto, eu contagio as outras pessoas que é o que no teatro vai chamar de energia, estar intenso, estar todo em cena, é brincando, porque se você emana energia, essa energia chega nas pessoas e essas pessoas brincam contigo. Essa é a melhor brincadeira, é quando todos se divertem. Se nós conseguirmos brincar juntos no Tangolomango e essa energia chegar no público no sábado, isso completou o ciclo da brincadeira, essa brincadeira sériaâ€.
O festival encarna esse espÃrito para Marina Vieira, diretora do evento. “Existe um prazer de trocar, um prazer muito grande de você descobrir o outro que é realmente o sentido de festival, de reunião de pessoas pra dançar, cantar, apresentar-se. Isso é a coisa mais forte que eu vejo. É um festival de fato, é um festival como seriam aqueles festivais medievais. Não é um festival com premiação. No final, o resultado é uma grande festa, porque é a festa que mostra que é possÃvel que as pessoas troquem e mostrem as coisas juntasâ€, explica Marina.
Uma colcha livre de retalhos
“A proposta é de criar, fazer uma criação colaborativa, como se fosse um software mesmo, um código aberto, abre-se seu espetáculo e transforma aquilo numa criação colaborativa pra criar uma única coisa feita de vários pedaços como se fosse uma colcha de retalhos que se encaixasseâ€, diz Marina. A fala dela dá uma idéia do espÃrito tangolomango em que universos distintos se entrecruzam. A metáfora do código aberto, do software livre, alia-se a artesanal colcha de retalhos. A própria produtora do festival, 1001 imagens, é também responsável pela mostra Criei, Tive Como.
Na roda do Tangolomango, mais que compartilhar palco e formar duetos nas composições alheias, é preciso entregar-se ao outro, desconstruir seu espetáculo e criar algo novo, coletivo. “O povo chega querendo saber qual é, essa é nossa cultura. ‘Calma gente. Vamos ver o que que tem o outro e abrir um pouco a escuta, deixar essa parada te influenciar pra saber a partir dessa coisa que você ver, que você sente o cheiro, o que isso vai te produzir, porque isso é riqueza’â€, diz João.
De Recife, Igor Medeiros veio com seu grupo Media Sana. Na mochila, um aparato tecnológico com notebooks e datashow para as apresentações que misturam áudio e vÃdeo. Diante da diversidade, não se encabulou. “A gente usa tecnologia pra poder fazer nossa crÃtica sobre TV e outros aspectos como economia e ecologia. É interessante você ver que o tipo de postura, atitude da gente, eu pelo menos encaro como um tipo de manifestação mais na linha desses grupos que estão trabalhando aqui também. Tem um lado de arte resistência, tem um lado de crÃtica e uma vontade de interagir entre siâ€, disse em meio ao ensaio final.
Esse ano o festival deixou pela primeira vez o Rio, deu uma esticada até Fortaleza e também chegou em Recife (26-28/10), antes de seguir de volta ao Rio, onde se encerra com espetáculo no Circo Voador, dia 4 de novembro. Essa vinda ao Nordeste tem o objetivo de ampliar ainda mais o diálogo entre experiências diversas no campo da cultura popular. Campo este que ganha no próprio festival o questionamento de suas fronteiras, colocando lado a lado grupos diversos como o Grupo de Bacamarteiros de Beato José Lourenço e o Media Sana. Bacamartes e pifes ao lado (ou dentro como melhor define o nome do festival) de notebooks e datashow.
Apesar de não dar as mãos na roda, entro na ciranda: observo, ouço e escrevo. Em parceria com o Tangolomango, o Overmundo cobrirá as três fases do festival, trazendo uma visão particular de cada evento, compartilhado as experiências. E, quem sabe!, cobrindo o show final em alguma cidade, já que este pobre overmano não pôde comparecer à festa no sábado, justamente o momento ápice do festival. Fico devendo essa. Por enquanto, fica a informação de que por aqui o Anfiteatro do Centro Cultural Dragão do Mar lotou até a tampa.
Esse enlace de todos, fazendo e refazendo o produto de própria arte, própria de cada um, é algo muito belo, meio arquéptico, meio coisa divina por ensinar todos mundo a trocar, cortar, somar, intercalar tantas e belas combinações artÃsticas.
O retrato de Mestre Cachoeira, que você desenhou com soberba beleza, foi o que mais me emocionou.
Obrigada.
beijos
Oi Saramar,
A experiência realmente vale muitos registros sob diversos olhares. Obrigado pelos comentários.
Quanto a Mestre Cachoeira, não pude falar o quanto queria com ele, mas quem sabe não faça algo maior sobre ele mais a frente.
um abraço,
Pedro,
Que beleza de imagens, e grande za de texto,
estou arquivando para reler. adoro estas coisas do
mue ceará,. um abraço, andre.
opa! participei do tangalomango aqui no rio, com exibição de vÃdeos... uma pena que esse ano não pude matar as saudades de fortaleza e levar um pouquinho do meu som até ai.
mas pelo que vi, a coisa pegou fogo!
parabens pelo texto
abraços
Pedro,
Já ouvi falar do Tangolomango no Rio de Janeiro e acompanhei algumas ações on-line.
Em Fortaleza é bom demais. Quem sabe não poderá chegar até Recife, Salvador e Aracaju.
Outro encontro realizado em Fortaleza e que deixou muito feliz e do qual um amigo artista e ativista social comentou comigo foi o Vozes de Nuestra América, este de caráter politico, acadêmico e cultural também.
Parabéns!!!
Abs
Um mar de cultura nordestina! mto bom.. quando vai acontecer no rio novamente? abs..
sititem: www.versoeprosa.com.br
PAZ..
Me deu foi uma saudade danada do tempo que vivia de Festival em Festival. O conhecimento era muito importante mas a farra é que valia.
E assim vamos conhecendo as culturas e disseminando o saber.
Um abraço.
Muito bom, Pedro. Fico feliz que o Tangolomango comece a chegar a outras cidades e a promover a troca de conhecimentos/experiências/idéias entre grupos tão ricos e diferentes de nosso paÃs.
Abraço.
Que vontade eu fiquei de conhecer Metre Cachoeira e Dr. Raiz.... Dona Zefinha eu tive o prazer de assistir aqui no Tangolomango Recife, no último domingo. Pra quem quiser saber como foi, acabei de postar minha cobertura aqui.
Abraços,
Quanta riqueza cultural por este Brasil afora!
Pedro, é legal você divulgar mais o grupo TR-E-M-A.
Abraços
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