Desde o tempo em que o tempo não era contado homens e mulheres inventam diferentes formas de organizar os afazeres da vida. Relógios e calendários fazem hoje a intermediação na relação das pessoas com o tempo, mas nem sempre foi assim. Alguns organismos sociais já tiveram suas dinâmicas ditadas pelo tempo da natureza. Tempo que com as variações da temperatura, por exemplo, indica quando se deve plantar e colher.
Com a percepção de uma temporalidade linear e a invenção da História a idéia de tempo cÃclico foi perdendo força. Mas engana-se quem acredita que o domÃnio da técnica sobre a natureza tenha extinguido todas práticas relacionadas ao tempo cÃclico. Digo isso apoiado no que observo aqui onde moro, São João de Meriti, cidade localizada na Baixada Fluminense, RJ.
A molecada daqui organiza parte de suas atividades recreativas em ciclos que os próprios chamam de temporada. As temporadas se dividem basicamente em quarto: bola de gude, pique, peão e pipa. Não estou muitos anos distante da minha infância, mas mesmo quando era criança não compreendia muito bem quando, como e por que se decretava o inÃcio e o fim de determinada temporada. Lembro apenas que um belo dia se chegava na rua e cada um dos moleques portava sua lata repleta de bolas de gude. Em minutos os triângulos eram riscados no chão e as gudes postas em jogo. Curiosamente, no final da temporada, as bolas de vidro eram colocadas em recipientes fechados – garrafas, latas – que deviam ser enterrados em algum terreno baldio. As bolinhas se tornavam uma espécie de tesouro que, após enterrado, voltaria a tona apenas na próxima temporada.
A temporada de pique era a menos marcante. Talvez por ser a única das brincadeiras que não dependia de nenhum equipamento em especial. Os piques, em todas as suas variações (pique-pega, pique-alto, pique-tá) consistiam basicamente em uma correria desenfreada. Essa caracterÃstica pode explicar também o porque dos piques ganharem maior adesão no inverno.
Quando era a vez do peão reinar no mundo das brincadeiras vinha acompanhado da rainha que, certamente, se chamava nostalgia. Era o perÃodo onde mais se ouviam histórias dos mais velhos. Era um tal de “as brincadeiras do meu tempo eram assim, essas crianças de hoje em dia não sabem de nadaâ€. Minha geração, nasci em 1982, não tinha lá muita intimidade com a cordinha que girava o peão. Acredito que o grande fascÃnio da molecada nos anos oitenta girava em torno do fliperama. Eu sonhava com centenas de fichas que alimentavam as máquinas, que por sua vez, realimentavam meus sonhos. O primeiro brinquedo que ganhei foi o clássico vÃdeo-game Atari, me sinto filho legÃtimo de toda essa (re)evolução dos games.
Curioso é observar como vinte e poucos anos depois da chegada do Atari (com seus humildes 8 bits) no Brasil, até o mais moderno PlayStation (80GB) a molecada ainda se rende a mais concorrida das temporadas: a das pipas. De fato, entre todas as outras brincadeiras que citei até então, a pipa é a que exige uma dedicação maior. Vejamos: tudo começa com a preparação das varas, a fabricação da cola de arroz, o corte do papel fino. Esses elementos formam a estrutura da pipa. Na seqüência, um pedaço de linha recebe algumas fitas de papel, formando a rabiola; outro pedaço de linha é usado para fazer o cabresto. Para o moleque disposto a não perder sua pipa no cruzamento com outras pipas oponentes falta um elemento fundamental: o cerol. A perigosa mistura é conseguida quando certa quantidade de cacos de vidro, embrulhados em um saco plástico, é colocada na linha do trem. O choque do trem mói o vidro que, adicionado a cola, é passado na linha da pipa, dando a mesma um aspecto cortante.
Só mesmo durante as férias escolares que a molecada tem tempo pra se dedicar a um processo que de tão demorado e trabalhoso beira um ritual. O momento máximo desta experiência ocorre quando várias pipas sobem ao céu e se enfrentam num bailado que visa cortar a linha do adversário. O pipeiro mais habilidoso não só corta como também apara e trás para si a pipa que, depois de cortada, é chamada de avoada.
A paisagem que normalmente varia do cinza da poeira, para o avermelhado do barro e das paredes de tijolo, de tempos em tempos ganha novas tonalidades que invariavelmente continuam deslumbrando a molecada de São João de Meriti.
Oi João, muito bacana seu relato. De temporada em temporada, o que importa é que sempre é tempo de brincar.
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 23/7/2007 12:29
João essa espécie de etnografia que vc faz das brincadeiras em São João está maravilhosa e é importantÃssima. Vou ler com mais tempo (infelizmente meu tempo é contado pelo ponteiro implacável do relógio) seus outros textos. O trailer foi suficiente pra ver que vc é um overmano e tanto.
Gde abrç
Rapaz, bem lembrado! Estas temporadas são uma lembrança de minha infância que graças à você voltam à tona! O lance da pipa, também é muito interessante. Quando eu morava no Morro do Rio Branco, a galera soltava suas pipas entre os fios elétricos, perto dos barrancos ou no meio da rua, com um cerol arrumado pra pegar as pipas das galeras vizinhas! rsrs
Bom texto, parabéns.
Abraço!
nostalgia.
eu já tive pipas. a maioria era rosa e sempre se dava um jeito de colocar um "b" nela.
mas mais me lembro de fazê-las do que de soltá-las. infância em são paulo.
parabéns demais!
cara, tá rolando uma temporada mesmo! nesse domingo, no caminho da minha casa pra praia (em nikiti) vi milhares de pipas colorindo o céu!
Guilherme Mattoso · Niterói, RJ 25/7/2007 08:12Nunca fui de soltar Pipa, mas lembro de ter que ficar esperando por horas vários amigos meus 'cruzarem' suas Pipas no céu até cansar. Só aà começava as peladas no meio da rua, com 'Gols' feitos de chinelo. Texto de uma simpatia... nostálgico. Um abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 25/7/2007 10:43Aqui no meu bairro parece que é sempre a temporada de pipa. Bateu um ventinho favorável e lá vão elas pro céu. Na minha infância, a gente chamava elas de "raias", mas esse termo local já se perdeu no tempo. Tem um vÃdeo lindo do overmano Vitor Lopes sobre a pipa aqui. É poesia pura, vale conferir.
Ilhandarilha · Vitória, ES 25/7/2007 11:57Aqui em BH também estamos na temporada! Ao mesmo tempo que é uma delÃcia ver os quadradinhos coloridos no céu, dá uma angústia vê-los tão perto dos fios de energia, assim como na sua foto!...
Mi [de Camila] Cortielha · Belo Horizonte, MG 25/7/2007 13:49
João,
muito saboroso esse texto.
ah, muléqui!
viajei no tempo até Chacrinha e a Vila São Luis lá em Caxias...
valeu, cara.
grande hb!
todos esses lugares são um só
cada um do seu jeitinho, mas são um só
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