Há algo a celebrar quando um trabalho pioneiro, difÃcil de ser encontrado em catálogo, é posto à disposição de um novo público interessado na história da música popular produzida no Ceará. É o caso de Terral dos Sonhos - O Cearense na Música Popular Brasileira, da socióloga Mary Pimentel, relançado em 2006 através do programa BNB de Cultura.
Terral dos Sonhos é fruto de uma dupla experiência de Mary no cenário musical cearense dos anos 60 e 70, cuja visibilidade maior acabou traduzindo-se na ascensão dos músicos Belchior, Fagner, Ednardo e, em menores proporções, Téti e Rodger Rogério ao mercado consagrado da MPB na década de 70, geração que ficaria conhecida como "Pessoal do Ceará".
A primeira experiência é a participação ativa, como estudante e como cantora, da cena cultural cearense daquele perÃodo (época do CPC - Centro Popular de Cultura, órgão de cultura da UNE, e dos festivais de música popular, como o Gruta e Aqui no Canto... - tudo muito bem descrito por Mary no livro), concentrada nos cursos universitários da capital, sobretudo os de FÃsica, Matemática e a Faculdade de Arquitetura. A autora integrou os grupos musicais Garotas 70 e Canto do Aboio. Com eles, exibiu-se na antiga TV Ceará, Canal 2, juntamente com outros cantores locais, em programas como Porque Hoje é Sábado e Show do Mercantil (que eu não conheci porque meus 28 anos de sonho e de América do Sul não me permitiram).
"O Garotas 70 era eu, minhas duas irmãs, e outras duas irmãs. Participamos de alguns festivais. Ganhamos um, com a música Gira Rola Mundo. Inclusive ela concorreu com Manera Fru Fru, Manera, do Fagner". De minha parte, imagino a cara do Fagner perdendo e deixo escapar um riso. Ela, uma gargalhada.
A segunda, a transformação dessa vivência em uma pesquisa acadêmica, defendida como dissertação de mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, em 1992. Dois anos depois, o trabalho foi publicado em formato de livro, lançado pela coleção Teses Cearenses, da Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará.
A nova edição preserva o texto original de 1994, sem atualizações – opção da autora –, mas é acrescida de fotos e de uma discografia atualizada dos principais nomes da música cearense do perÃodo analisado por Mary. Opção a ser respeitada, mas passÃvel pelo menos de uma crÃtica. Amarrado em uma estrutura tradicional de análise sociológica, dividida em contexto histórico, de um lado, conceitos de uma "sociologia da arte musical", de outro, e o próprio "objeto de estudo" em uma terceira margem, o livro não corta a carne da música do Pessoal do Ceará; arranha, ao buscar compreender o cenário cultural e polÃtico da época e as transformações de categorias como popular e regional com a expansão da Indústria Cultural no mercado musical do Brasil na Ditadura Militar.
Vejamos: após analisar um conjunto de letras representativas de artistas como Belchior, Ednardo e Fagner, entre outros, associando-as a conceitos como identidade e "cearensidade", Mary afirma que "poderÃamos discernir sobre outros elementos referenciais que aludem à configuração de uma identidade musical cearense. Acreditamos, porém, que nossa exposição fornece subsÃdios para os objetivos a que nos propomos". A constatação da autora não desmerece a relevância do trabalho, mas deixa uma lacuna, uma sensação de que se encerra justamente quando desvendaria esses elementos referenciais.
Lacuna esta que, ao longo dos últimos anos, buscou-se suprimir com um conjunto de pesquisas acadêmicas, nos cursos de História, Letras e Comunicação, abordando desde a história dos festivais de música realizados na cidade (como o histórico Massafeira, realizado em 1979 com a participação de vários artistas locais, materializado em disco duplo) à riqueza lingüÃstica das composições. Para eles, o trabalho de Mary segue como um importante referencial. Para o público, com o relançamento, também.
No livro, você afirma que o termo "Pessoal do Ceará" é portador de uma ambigüidade. Por quê?
Mary Pimentel - Porque quando a gente fala do "Pessoal do Ceará", não é um grupo pequeno e especÃfico de pessoas, é toda uma juventude que se movimentava naquela época aqui em Fortaleza. Pessoas como Augusto Pontes, animador cultural e compositor, Cláudio Pereira, que fazia as caravanas culturais nas cidades do interior, com música e teatro... Agora, o que a gente chama de "Pessoal do Ceará" é o termo que emergiu quando a Téti, o Rodger e o Ednardo foram para o Rio gravar o disco [Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem - Pessoal do Ceará]. Foi uma forma de entrar no mercado e ficar conhecido lá no Sul.
Uma estratégia...
Sim, uma estratégia mais de mercado do que um grupo especÃfico bem definido. O Belchior, por exemplo, foi chamado para participar do disco Chão Sagrado com o Rodger Rogério e o Ednardo, mas não pôde participar porque já tinha assinado com uma outra gravadora. Então, era uma cena onde alguns compositores como Rodger, Fagner e Belchior ascenderam no mercado fonográfico, ficando conhecidos como "Pessoal do Ceará". Cada artista tinha uma proposta diferenciada, mas todos expressavam uma identidade do Ceará. O Fagner cantando as velas do Mucuripe, o Ednardo trazendo a figura do Pavão Mysteriozo, a literatura de cordel e o maracatu. Trabalhavam com sÃmbolos de nossa cultura, é isso que eu chamaria de identidade.
O trabalho é centrado nos conceitos de cearensidade, identidades locais e regionais. Belchior, por sua vez, já cantava que "Nordeste é ficção! Nordeste nunca houve!". Como você vê essa contradição?
Não existe música ou criação que seja apenas local ou regional, na medida que ela absorve o consciente individual do próprio criador e um inconsciente coletivo, digamos assim. Era um pessoal super antenado com a época, com a revolução musical que estava acontecendo na época. Não era apenas Luiz Gonzaga ou o Nordeste rural, era "Alegria, Alegria" do Caetano, os Beatles... Eles eram criadores que estavam envolvidos com o universal, e a partir daà procuravam uma forma que mostrasse o Ceará a partir de uma visão mais abrangente, mais multicultural. Claro que o Fagner, que veio de Orós, o Fausto Nilo, de Quixeramobim, o Manassés, de Maranguape, tinham uma origem rural, mas eram universitários, estavam ligados ao cenário nacional. A identidade não é uma questão de ser regional, no sentido restrito, mas a partir do todo, ter uma visão local.
Quando o Fausto Nilo e o Petrúcio Maia fizeram Dorothy Lamour, Dorothy Lamour com ardor, te adorei, Sereia, na areia do cinema (solta a voz, revelando que ainda poderia cantar como nos tempos do Canal 2!), mostravam como eram antenados, era uma música cearense, nossa, mas que contém elementos de uma universalidade incrÃvel, de uma urbanidade. Uma música urbana, apesar da origem rural de alguns daqueles artistas. E todo mundo queria participar de alguma forma das mudanças que estavam acontecendo intensamente naquela época. Essa forma de se colocar, em termos polÃticos, culturais, é o que chamo de "cearensidade", uma forma de pensar sobre si a partir do todo.
A pesquisa identifica duas tendências na "linha evolutiva da música popular cearense", a fase que veio com o "Pessoal" e outra, no final dos anos 70 e inÃcio dos 80, com a emergência de "novos compositores das gerações setenta e oitenta na busca de espaços locais para a produção e divulgação de seu trabalho", fase esta que você classifica como mais autônoma. Quais as principais diferenças?
Na época em que o Fagner, o Belchior e o Ednardo saÃram daqui, eles não tinham condição nenhuma de se lançarem nacionalmente, se ficassem aqui. Só se conseguia quando saÃa. No final da década de 70, a gente viu surgir aqui espaços como bares, casas de espetáculo, estúdios de gravação, local para masterizar, mais espaços de atuação... Mas eu diria que até hoje é difÃcil, quando alguém quer se lançar nacionalmente, talvez precise sair. A [cantora] Kátia Freitas, por exemplo, que foi para São Paulo...
Ao abordar a questão da necessidade dos artistas migrarem para o centro, você ressalta o paradoxo de que "o amor ao lugar de origem não garante a permanência nele", pois "o próprio lugar expulsa aqueles que o ama". Esse dilema não continua? A questão da profissionalização permanece como referencial?
É, apresento a expulsão como uma metáfora. Diria que as condições não são satisfatórias, ainda que na passagem dos anos 70 para os anos 80 elas tenham melhorado com a ampliação daqueles espaços. Mas permanece a necessidade de ganhar visibilidade, de se firmar no mercado nacional. E de construir uma carreira profissional. E o mercado aqui ainda é pequeno. Naquela época, havia uma proposta, de dizer "eu venho do Ceará, das dunas brancas", o que era uma novidade. Hoje é diferente, e penso que a maior dificuldade é entender como funciona o novo mercado fonográfico, cada vez mais segmentado. Por um lado, ele vai segmentando. Por exemplo, o forró hoje dá dinheiro, faz sucesso nacional. Paralelo a ele, existem artistas daqui que não querem entrar em grandes gravadoras, ou aqueles que preferem investir em um trabalho mais autoral. Enfim, buscar a afirmação de um mercado independente. Mas esse mercado independente também exige apoio, grana...
Vejo que alguns artistas ainda precisam sair daqui para tentar o reconhecimento e viver profissionalmente da música. O mercado independente cria novos nichos, mas é preciso buscar público, espaços, batalhar para tentar viver exclusivamente da música. Vejo trajetórias individuais, de artistas diferentes, como o Cidadão Instigado, a Kátia Freitas, o Soulzé, Jumenta Parida, entre outros. Eles querem seguir suas trajetórias.
BelÃssima pauta e entrevista Ricardo. Por sinal, ela está amputada? Quero mais.
Fiquei sedento por mais informações históricas e um aprofundamento no que seria essa cearensidade em termo estilÃstico, coisa que foi apenas pincelada. Coisa de exigente exagerado chato.
Fazendo um link, o Marcelo Cabral está fazendo uma discussão sobre o "nordestino" aqui.
Valeu!
Oi Pedro,
Sua "chatice" é muito bem-vinda! Rapaz, tá amputada não, a idéia era fazer uma resenha do livro e discutir algumas questões essenciais que nortearam a pesquisa.
Duas coisas:
1- Acho que tu (ou qualquer um que se interesse a partir daqui) pode encontrar no próprio livro um aprofundamento dessa reflexão sobre as ambigüidades da "cearensidade". A Mary analisa essencialmente, como referencial, as letras do Pessoal do Ceará e as tensões entre "propostas estético-artÃsticas" e o mercado musical. Também há um capÃtulo bem interessante sobre os conceitos de região, regionalismo e identidade musical cearense (esta problematizada, diga-se).
2- Particularmente, acho que seria até mais interessante ver que algumas destas questões permanecem bem atuais, nessas trajetórias dos artistas que a Mary cita (não faz muito que estavam falando na mÃdia do Rio e de SP de uma nova "cena cearense", algo que boa parte desses artistas não reconhecem, mas seguem "expulsos" daqui em busca, não?). Até gostaria de fazê-lo, mas não me considero o mais capacitado pra tal (Cadê o Felipe Gurgel, que saca de música muito mais do que eu, se ele fizesse mataria a pau!)
Abraço!
Ricardo, vc gravou esta entrevista? Se vc tem a gravação, poderia render uma ótima matéria para o programa de rádio... A fim de colaborar? Se não se sentir apto a fazer você mesmo, poderÃamos trechos do áudio. Entre em contato!Abraço!
Marcelo Rangel · Aracaju, SE 2/2/2007 12:57
Oi Marcelo,
mandei uma mensagem pra ti. Confere lá!
Não recebi, Ricardo. Será que é algum problema com os mecanismos do site?
Marcelo Rangel · Aracaju, SE 2/2/2007 18:52
Alô, Ricardo!
Excelente essa entrevista. E deve ser melhor ainda o livro da Mary.
Sem dúvida que as dificuldades e agruras vêm de setenta, atravessaram tudo e chegam até hoje. Sei na pele porque fui do finado Soulzé, que saiu do Ceará de carro pra vir morar em SP. E cá estamos todos até hoje, 5 anos depois, mesmo com o fim da banda, trabalhando cada um nos seus esquemas.
Imagino que a cena cearense que se fala hoje nas meios de comunicação só tende a crescer, tanto pela qualidade dos artistas quanto pela persistência inerente aos da nossa terra. Por outro lado não há como negar que falta uma certa união, no sentido de alavancar a chamada "música cearense", revelando talvez, olhando por uma perspectiva mais otimista, a universalidade do cearense, com um bairrismo mais lúdico que verdadeiramente sentimental. Como diria um cearense músico dia desses: "não sei pra que esse negócio de andar encangado!!". Eu, como músico e produtor, ando fazendo o que dá pra fazer no sentido de encurtar essas distâncias. Aos poucos vamos fazendo uma rede de contatos, de shows, de divulgação. E muitas bandas cearenses estão vindo pra SP, seja pra morar, seja pra passar temporadas, grandes e pequenas.
E entender como funcionou na época do Rdger, da Téti, da Ednardo e de todos os outros nos ajuda a resolver nossos problemas hoje.
Mais uma vez parabéns.
Um abraço.
PS: dá uma sacada nesses links abaixo
www.cearaoutropessoal.palcomp3.com.br
www.coletivosupernova.zip.net
www.terralnordeste.blogspot.com
www.marcosmaia.zip.net
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