A arte na sua mais pura expressão pode ser também facilmente identificada no trabalho de pessoas comuns que buscam no seu dia-a-dia a satisfação de criar... simplesmente criar! Foi assim que pensei logo que conheci um pequeno grupo de artesãs em Santana do Cariri, cidade localizada na Chapada do Araripe, com pouco mais de 17 mil habitantes e que fica a 550 km da capital cearense.
A arte a que me refiro é a renda de bilro, trabalho artesanal que também é marca registrada no estado do Ceará.
Não me cabe aqui discursar sobre a origem da renda, ainda porque já é sabido que ela chegou no Brasil através da colonização portuguesa, e já existia em Portugal desde o século XV, onde somente as pessoas de alto poder aquisitivo tinham meios de adquirir uma peça bem confeccionada. Além disso, e há de se ressaltar tal observação, a nossa renda cearense também tem a sua herança indígena.
Mas voltando às artesãs santanenses, antes de adentrar um pouco acerca da peculiaridade do seu trabalho, o que um forte diferencial das demais rendas cearenses, é importante frisar um pouco a história delas.
O grupo é composto apenas por 06 mulheres: Dona Gertrudes, Joana D’arc, Toilza, Givanilde, Maria do Carmo e Luíza Lacerda. Elas contam que na década de 50 uma mulher chamada Dona Nair fazia redes através da renda de bilro utilizando uma linha diferente daquelas usadas nas rendas tradicionais e que muito tempo depois, já na década de 70, esse trabalho era desenvolvido na cidade por Dona Cesarina, que através de alguns cursos que ministrava passou tal conhecimento a outras pessoas, dentre elas, a sua própria filha, Luíza Lacerda. Contam ainda que uma mulher, na vizinha cidade de Pontengi-CE, também faz esse tipo de artesanato.
Juntamente com as demais 05 componentes do grupo de artesãs santanenses, Luíza Lacerda hoje já diversifica o conhecimento adquirido por Dona Nair e por Dona Cesarina fabricando outras peças, além das redes, como bolsas, toalhas e acessórios.
A renda que estas artesãs aprenderam, confeccionada com linhas mais grossas (próprias para crochê) ou com barbante natural de algodão, ganhou novas formas e novas cores. Elas jogam com a diversidade de tons que dão vida à peça ali fabricada. O resultado é nitidamente diferente das rendas que conhecemos do litoral cearense, até porque o material utilizado e os pontos que dão forma às peças não são os mesmos, e por isso elas são mais pesadas e menos maleáveis do que as outras rendas. Nada é jogado fora, tudo é aproveitado, até mesmo o resto da matéria-prima usada na fabricação de uma determinada peça é utilizado para a criação de outra!
Também ao contrário das demais rendeiras, na confecção das suas peças essas artesãs utilizam um papelão grande e quadriculado de modo que não seja preciso limitar o tamanho das peças a serem feitas na almofada que fica sobre um suporte de madeira e que é feita de tecido (geralmente de algodão) e recheada com palha de bananeira. Os bilros são feitos da macaúba e com uma madeira leve, já as linhas são presas no papelão com espinhos de mandacaru.
É um trabalho que requer muita dedicação e perseverança, desenvolvido principalmente porque essas mulheres sentem prazer no que fazem. Dependendo da peça a ser fabricada uma só artesã leva cerca de 03 meses para concluí-la e o retorno financeiro muitas vezes não é compensador, eis que a peça mais cara gira em torno de R$ 700,00 e o lucro obtido é rateado entre elas. Uma peça pequena leva em média 06h para ser confeccionada.
Por ser um trabalho tão minucioso e realizado por poucas pessoas a produção é pequena, mas as artesãs já vendem as peças fabricadas para o Centro de Artesanato do Ceará – CEART, em Fortaleza, e contam com o apoio da Prefeitura de Santana do Cariri, que reconhece a necessidade de não deixar que essa herança artística tenha um fim.
Talvez a única coisa realmente em comum que essas artesãs tenham com as demais rendeiras é que elas são mulheres simples, mães, donas de casa... Os seus maridos trabalham no campo e a maioria delas sonha em também poder tirar o sustento da família através do seu talento em tecer peças tão belas. Elas também têm o desejo de serem reconhecidas, que as pessoas respeitem o seu trabalho e vejam que ali, além de muita habilidade artística também tem muito amor ao que fazem. E isso não tem preço! Pude concluir claramente que o valor pago por cada peça acaba sendo simbólico em face do que ela realmente vale quando ouvi Luíza Lacerda dizer: “quando alguém compra uma peça e leva, é como se estivesse também levando um pouquinho de mim.”
Elas formularam um projeto – Projeto Bilro – que tem como finalidade exatamente abrir um leque de possibilidades para que esta tradição tenha continuidade nas futuras gerações e para que chegue em outras localidades além da cidade de Santana do Cariri.
A iniciativa é válida e merecedora de um resultado positivo. Sendo uma renda tão diferenciada, que chega a lembrar um pouco o crochê, e cuja fabricação seja, digamos, “sustentável”, evidentemente é uma arte que não deve morrer aqui, e que deve sim se expandir e até mesmo ganhar outras formas e técnicas através de outros artistas. E porque não?
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Em notas:
A sede onde as artesãs santanenses trabalham é provisória, em breve se fixará na Casa Grande, ponto turístico da cidade onde também está a Secretaria de Cultura do município. Qualquer contato com elas pode ser feito através de Luíza Lacerda, pelo telefone (88) 9913-4534 ou pelo e-mail projetobilrosc@hotmail.com
Bilro: haste de madeira com cerca de 15 cm, onde fica enrolada a linha, com coco catolé na ponta para a rendeira segurá-lo e trocá-lo.
Almofada: cilindro de tecido de algodão ou estopa, cheio de capim ou palha de bananeira. No caso deste tipo de renda, a almofada utilizada é maior do que aquela em que as rendeiras do litoral usam.
Espinhos: fixam o papelão na almofada, seguram a linha e a renda.
Linha: hoje é industrializada, mas antigamente era também artesanal.
Renda: tem acabamento nos dois lados.
desejo longa vida para o Projeto Bilro - bela iniciativa!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 10/1/2010 20:20
Oi Jack. Bela contribuição. Divulgar esta arte nobre destas mulheres de Santana do Cariri é valorizar nossas riquezas culturais. Sucessos a Todas elas!
Abraço fraterno...
é sempre bom tomar conhecimento da arte que surge da inventividade desse nosso povo brasileiro. adorei a frase de Luíza Lacerda: “quando alguém compra uma peça e leva, é como se estivesse também levando um pouquinho de mim”. esse senimento de pertencimento que a obra tem para a artista é lindo, delicado, finíssimo...
parabéns Jack!!! vida longa às mulheres rendeiras da Chapado do Araripe!!!
Bilro é uma arte brasileira que não pode desaparecer.
Muito bom esse projeto.ab
Jack parabéns pelo texto, iniciativas como a sua ajudam a divulgar e preservar uma tradição de enorme valor imaterial.
Tenho um amor sincero pelo artesanal, e me orgulho muitíssimo do nosso artesanato cearence, que resiste em tempos de planificação do mundo, de supervalorização do tecnológico.
Conheço e apóio trabalho das rendeiras de Santana do Cariri.
Cada peça tecida com amor, por mãos habilidosas dias a fio, pouco a pouco vai adquirindo cores, formas e significados, e sendo passadas de geração para geração.
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