Se fosse bom de versar como é de tocar projetos culturais, o casal Alexandre Pimentel e Joana Corrêa poderia recitar todas as aventuras e percalços que envolveram a produção da obra "Na ponta do verso – poesia de improviso no Brasil". Só falta mesmo a rima farta como a dos personagens do livro que estão lançando, porque a história está na ponta da lÃngua. Tudo começou com um projeto bem sucedido de shows com gêneros musicais baseados no verso livre no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2005. Deu tão certo que eles, junto com outros amigos, começaram a idealizar um livro. A idéia era ambiciosa, com direito a pesquisa de campo e gravação in loco. Com o tempo e os passos necessários para se enquadrar nas exigências (e na verba) do patrocÃnio do Minc, via Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, as coisas foram sendo adaptadas. Arestas foram aparadas ao longo de três anos, mas a essência da idéia se manteve.
"Na ponta do verso" é composto por nove artigos de especialistas sobre tipos de poesia de improviso de várias partes do Brasil. Para complementar, um CD traz 16 faixas com exemplos preciosos dos gêneros analisados, seja em gravações antiqüÃssimas (como algumas das Missões Folclóricas coordenadas por Mário de Andrade em 1938), antigas (como uma faixa do primeiro CD da Clementina de Jesus, dividindo o improviso de um partido-alto com João da Gente) e recentes, feitas pela Associação Cultural Caburé, formada pelo casal e mais alguns pesquisadores apaixonados pela cultura popular. Escolher os autores e definir os artigos foi tarefa tranqüila se comparada com a missão de recolher autorizações e comprar direitos para reunir as faixas num disco. Completam o pacote as imagens de Luciana Carvalho, que abrem os artigos. Inspiradas na xilogravura, elas são atrações à parte.
Nada como ler os artigos ouvindo as faixas correspondentes ao gênero analisado. Muitas vezes, a gravação é até citada no texto, caso de "Barracão é seu" – o tal partido-alto do primeiro disco da Clementina. Nei Lopes, que assina o artigo sobre este subgênero do samba carioca, conta que "a porfia entre os veteranos sambistas traz alguns antológicos momentos de puro improviso", renegando a impressão de que espontaneidade não combina com a frieza de um estúdio.
Nei, que tem no currÃculo um livro sobre partido-alto (e é blogueiro), explica as origens portuárias desta vertente do samba, influenciada pelo samba rural baiano e o calango do sudeste. Mas também por vários outros gêneros que se valem de uma tradição poética popular em comum – vale lembrar de frases que podem ser ouvidas em cantorias de qualquer região, como "Atravessei o rio a nado", "Você diz que é malandro" ou "Era eu e tu e ela"... Com o passar das décadas, o pagode de fundo de quintal chegou a ser aposta das gravadoras. Do partido-alto, seu elemento fundamental, muitas vezes só sobraram os refrões marcantes. Nei aproveita para elogiar partideiros que sempre honraram a criatividade do gênero, como Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz e Dudu Nobre. No disco (e no lançamento do livro, vide fotos), há ainda a participação de dois dos partideiros mais atuantes do Rio, Tantinho e Marquinho China.
Para mim, que vivo no Rio, partido-alto é algo natural. Conheço alguns partideiros e suas histórias – como um figura que diz "dialogar" com William Bonner no Jornal Nacional para treinar as rimas de improviso. Mas confesso que não saberia explicar boa parte dos gêneros destrinchados no livro, e muito menos apontar suas diferenças. A professora de etnomusicologia da UNI-RIO Elizabeth Travassos faz isso muito bem no prefácio, comparando cantoria de viola (analisado no livro em artigo de Braulio Tavares) e coco de embolada (Maria Ignez Ayala):
"[Eles] opõem-se como o cômico ao sério, o espontâneo ao estudado. Cantador de viola que se preza não pega o pandeiro para cantar coco (mesmo que saiba), não gosta de cantoria na rua (só em caso de extrema necessidade), não rima todos os versos em á. Muito menos diria que tem a cabeça oca ou que seu repente "não presta", como ouvi dizer um coquista (...). Cioso de sua reputação de "poeta", o cantador de viola prefere o nome de batismo a apelidos como Rouxinol, Concriz, Treme-terra, Cachimbinho."
Ou seja: mesmo tendo muito em comum, cada tipo de improvisação cantada encontra sua própria vocação. Usa número de versos diferentes, "porfias" e desafios com regras diversas e lida cada um a sua maneira com a influência das músicas da moda, da televisão e da tecnologia. Vejamos:
Braulio Tavares conta como a cantoria de viola migrou do desafio para a estrutura de parceria, em que dois poetas se intercalam (mas não duelam) no versejar. Ainda que o formato de dupla passe a ser o padrão, não há necessidade de fidelidade. "Não existem duplas fixas, como ocorre, por exemplo, na música sertaneja paulista, na qual Chitãozinho sempre canta com Xororó e Tonico sempre canta com Tinoco. Ao longo dos anos um cantador pode trabalhar com dezenas de parceiros."
Já o cururu, comum na região do Médio-Tietê – interior de São Paulo – segue funcionando como um verdadeiro embate poético-musical, realizado exclusivamente para a diversão do público. Um dos sÃmbolos da cultura caipira, ele é o único que se desenvolve em desafios com mais de dois participantes. Em geral, "são quatro cantadores, em duas duplas que normalmente se compõem por sorteio, antes do inÃcio do evento", explica Alberto Ikeda em seu artigo.
O aboio pode classificar dois tipos de improviso: o do canto de trabalho do vaqueiro e o gênero poético que celebra a profissão do vaqueiro. O segundo ainda é bastante popular nas festas de vaquejada. O primeiro é cada vez mais raro, já que "hoje os espaços rurais já não são tão ermos, sendo raras as localidades não servidas por rodovias", explica Maria Ignez Ayala. Assim, reduz-se "a quantidade de vaqueiros que aceitam o registro de suas vozes entoando esses cantos de trabalho, porque a memória do canto depende do corpo em exercÃcio".
Não foi só o aboio que se influenciou de jeito pelos novos tempos. O maracatu de baque solto passou por várias transformações e, segundo Siba e Astier BasÃlio, é na poesia que têm se dado as mudanças mais significativas da tradição nos últimos 30 anos. Normalmente entoados por poetas analfabetos, os versos do maracatu acabaram influenciados pela cantoria de viola e pelo coco de embolada, que têm mais regras e são feitos por poetas letrados. Seja como for, mantém-se a sambada, nome para a disputa de rimas entre dois mestres de maracatu. Para além da cantoria, o maracatu viu suas roupas ficarem mais extravagantes e o transporte passar a fazer parte dos percursos, antes percorridos a pé. Além de descrever detalhes preciosos – como o "azougue", bebida à base de cachaça, limão e pólvora (!), que fica enterrada por sete dias antes de ser consumida – os autores contam como a rivalidade entre grupos, que resultava em brigas no passado, foi substituÃda por uma certa profissionalização.
Se o aboio se mantém nas vaquejadas e o maracatu sobretudo no carnaval, o calango, gênero tÃpico do interior fluminense, não depende de lugares especÃficos, não tem horário certo nem se vincula a calendário. Cáscia Frade explica que ele precisa apenas do acompanhamento de uma sanfona de oito baixos e gente disposta a versar sobre temas diversos. A simplicidade do calango contrasta com os mil e um elementos da folia de reis. Nesta manifestação, tradicional em várias partes do paÃs e do mundo, um grupo distribui bênçãos em troca de ofertas, reafirmando, assim, importantes laços sociais e remetendo à mÃtica viagem dos três magos a Belém. Com diversos personagens, rituais e roupas, a folia tem sua parcela de improviso por conta do palhaço, que usa máscara e roupas grotescas e declama "chulas" gaiatas, a fim de atrair doações, como conta o artigo de Daniel Bitter.
Para concluir, a pajada. Gênero sulista do qual, confesso, nunca tinha ouvido falar. Paulo de Freitas Mendonça a descreve bem, traçando de cara a diferença para o outro estilo tÃpico dos movimentos tradicionalistas gaúchos: a trova. Segundo ele, o trovador canta sua poesia oral em sextilhas, com acordeão, enquanto o pajador improvisa no estilo recitado, acompanhado por uma milonga ao violão. É um gênero com poucos participantes e escassa renovação, a ponto de parte da imprensa anunciar a morte do estilo junto com seu principal pajador, Jayme Caetano Braun, em 1999 (no CD, é possÃvel ouvir sua bela voz). Mas, ainda que discreta, a pajada sobrevive.
Os nove gêneros estão bem representados em artigo e músicas. Mas, se a idéia é refletir sobre como o Brasil improvisa, senti falta daquela que hoje talvez seja uma das mais populares formas de versar no Brasil e no mundo – o rap. Ainda que seja compreensÃvel a opção de não incluir na obra por não se tratar de um gênero originariamente brasileiro, achei que alguma referência poderia ter sido feita, mesmo sem se contemplar com um artigo especÃfico. Afinal, como se vê numa Batalha do Conhecimento da vida, sejam quais forem o ritmo, as regras e a origem, a criatividade dos versos sempre está a ponto de bala para aflorar.
Mas isso nem de longe tira o mérito do livro que, de modo conciso e eficaz, chama atenção para a variedade de gêneros de verso livre no Brasil. Pensando bem, é até irônico - no bom sentido - que o brasileiro, conhecido por seu "jeitinho", mostre toda sua criatividade justamente no improviso, palavra que define bem seu estilo de vida (se formos levar o estereótipo ao pé da letra). Mas verso livre não é privilégio do paÃs, é claro. Sonhando alto, quem sabe um volume 2 possa ser feito reunindo os formatos latino-americanos de verso livre - que não são poucos.
A obra está sendo distribuÃdas para instituições ligadas à cultura popular e bibliotecas. Para mais informações, o email da Associação Cultural Caburé é cabure@cabure.org.br.
Arte de escrever, cantar, recitar, interpretar e de viver...
Artes.
Abraços
Nossa, isso é tudo de bom! Eu particularmente, sou fascinada pelo verso improvisado, cantado ou declamado! Adorei!
Abraços daqui e depois volto.
O improviso está presente, como você bem destaca, em vários gêneros musicais brasileiros e parece ser uma caracterÃstica ligada a criatividade espontânea do nosso povo. Boa a dica da publicação. Aliás, por falar no poeta e ensaÃsta Braúlio Tavares, veja texto que postei no overmundo sobre a música dele e de Lenine: "La vem a Cidade"
Gyothobat · BrasÃlia, DF 27/12/2008 17:56
Votando com muita alegria! Feliz 2009!
Abraços daqui,
Depois volto, votando.Beijos.Feliz Ano Novo
Claudia Almeida · Niterói, RJ 28/12/2008 22:04
além do rap, também existe muito (e cada vez mais) improvisso no funk.
fica a dica para uma próxima edição.
bjs
Estou arquivando para reler. Reler e mante-lo arquivado. Muito
rico e interessante.
Feliz 2009
Helena, que bom que é ler seus escritos.
Estou também muito feliz por saber do livro de Joana e Alexandre. Essa série Na Ponta do Verso foi maravilhosa, assim como tantas outras tão bacanas, como A PolÃtica da Palavra e a Arte Ãfrica Brasil. Fico feliz por ter curtido de perto, e mais ainda por saber dos desdobramentos. Viva a querida Fulô Projetos de Cultura, e vida longa à Associação Cultural Caburé.
Feliz novo ano pra vocês.
Oi Helena.
Muito pertinente a matéria e bem esclarecedora. Só um pinguingo. Na parte que diz sobre o rap, acho certo a forma que fizeram em não coloca-lo e você explica bem o porque disso.
Será que o canto dos Ãndios não seria bacana resgatar ? Talvez tenha versos interessantes, bem mais também...
Obrigada pelos comentários, gente! Paula, para saber como ter acesso ao livro o ideal é entrar em contato via o email que passei na matéria. Higor, pois é, sem problemas, só quis registrar porque acho mesmo que é uma forma de improviso muito popular hoje em dia. Sobre os Ãndios, caramba... não faço idéia, mas é bem possÃvel que tenha alguma coisa, pois a cultura deles é tão vasta... Abraços!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 30/12/2008 11:17
Pensou em um samba indigena ? que bacana seria.
Talvez a sinvaline ou o pessoal mais próximo, que sempre por aqui nos tras textos sobre a cultura indigena poderia investigar.
Valeu pelo aprendizado. (e o carnaval esta chegando, usaremos a tag carnaval-2009)
Maravilha de informação. Bem o que preciso pra seguir minha inspiração, na trilha da inspiração dos múltiplos seres da caatinga.
Beijos!
vou procurar. Fico feliz que dois belissimos partideiros e improvisadores, Tantinho e Marquinho China tenham participado. Pena que Xango da Mangueira tenha ido no dia 07 jan
cimples ocio · Curitiba, PR 12/1/2009 14:04Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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