Existem pelo menos duas formas de começar a contar essa história. A primeira delas passa por Barra Mansa, cidade do Sul Fluminense, e tem como personagem o grupo de capoeira Abadá (Associação Brasileira de apoio e desenvolvimento da arte). O outro cenário possÃvel é Chambéry, capital do departamento de Sabóia, França, neste caso os protagonistas são os b.boys e as b.girls da companhia Fradness`. Mas a história começa de fato quando as duas cidades se encontram pelas pernas, num intercâmbio cultural que já acontece há pelo menos sete anos.
Tudo começou quando em uma de suas viagens pelo mundo o artista circense Thomas Bodinier passou pelo Rio. Além de cultivar as artes do circo, o francês mantinha firmes relações com a dança de rua. Por aqui Thomas teve contato com a capoeira e rapidamente ficou fascinado com os movimentos utilizados na dança. Apesar de alguns membros das duas culturas se ocuparem em identificar as diferenças, o fato é que a capoeira e o break compartilham não apenas movimentos, mas comungam também certas semelhanças em seus aspectos filosóficos. A própria história da capoeira e do break tem em comum um denso processo de resistência cultural e afirmação racial.
É justamente este processo que envolve a construção de identidades (que torna o break mais do que uma dança, e a capoeira mais do que uma luta) que fez Thomas se aproximar da rapaziada do Abadá Capoeira. Podemos até mesmo dizer que este choque entre o Hip-hop e a Capoeira é uma encontro entre dois elementos de uma grande diáspora negra. Mas acima de qualquer teorização os fatos ainda me parecem mais interessantes para continuar contando essa história.
Do lado de cá, o pessoal do grupo Abadá movimenta Barra Mansa no gingado da capoeira, trazendo grande parte da molecada do bairro Vista Alegre pra dentro das quadras e terreiros. Do lado de lá, além de funcionar como uma companhia de dança, o grupo Fradness´ utiliza o break em um trabalho social com a juventude de Chambéry. É curioso perceber que a proposta dos grupos não é muito diferente, talvez porque (salvo as proporções) os problemas vividos aqui e lá também não sejam tão diferentes quanto se imagina. Como em milhares de cidades espalhadas pelo Brasil, a maior parte da população de Barra Mansa é pobre e vive um cotidiano marcado pela escassez e a dificuldade de acesso aos bens sociais básicos. Chambéry, como tantas outras cidades francesas, tem uma grande colônia de imigrantes argelinos e marroquinos, pessoas que encontram dificuldades de inserção plena na sociedade francesa.
É o contexto de cada cidade e as iniciativas eleitas por cada grupo para interagir com esses contextos que tornam possÃvel o encontro entre os capoeiristas brasileiros e os b.boys franceses. Esses encontros já acontecem há sete anos, quando a primeira turma de dançarinos veio ao Brasil conhecer de perto a experiência do grupo Abadá. Daà em diante o intercâmbio não parou mais, brasileiros foram e franceses voltaram. Parte do grupo Fradness´ veio ao Brasil em agosto para cumprir uma verdadeira maratona: foram mais ou menos quinze dias realizando uma oficina de dança por dia em diferentes bairros de Barra Mansa. Neste perÃodo, os franceses ficaram hospedados nas casas do pessoal do grupo Abadá. B.boys e capoeiristas dormiam, acordavam, comiam e trabalhavam juntos. Vivência que fez o processo de troca ainda mais intenso.
Tive o prazer de presenciar este encontro dia 11 de agosto, quando Abadá Capoeira e Fradness` fizeram juntos uma apresentação no SESC de Barra Mansa. Por puro acaso eu estava cantando em um evento na pista de skate do mesmo SESC. No final do show alguns dos franceses se aproximaram e me convidaram para assistir à apresentação do espetáculo “Eclipseâ€. Fui até o teatro, que estava completamente lotado, e conferi um belo diálogo entre culturas, um diálogo sem palavras, proporcionado apenas pelos movimentos do corpo. A platéia aplaudiu de pé, foi realmente emocionante. Ao final do espetáculo eu e a dupla Beatbass High Tech (produtores locais de hip-hop) fomos trocar uma idéia com os franceses. Nessa conversa conheci Coquinho, um dos idealizadores do Abadá, que me convidou para participar da grande despedida do Fradness`. A festa iria acontecer no dia seguinte na quadra de Vista Alegre.
O domingão chegou com um sol forte, o dia prometia! Logo depois do almoço partimos para Vista Alegre, chegamos na quadra por volta das 15h. O lugar já estava bem cheio, eram famÃlias inteiras ocupando por completo a arquibancada da quadra de esportes que naquele domingo serviria também como palco. Fiquei feliz em saber que já era a segunda edição do evento batizado de “Mostra de culturas urbanas de Barra Mansaâ€, além do break, do rap e da capoeira, chegaram junto também a rapaziada do skate e do basquete de rua. Prova da busca por diálogos entre as diferentes atividades praticadas pela juventude daquela cidade. A mostra é corajosamente organizada por Coquinho que, além de capoeirista do grupo Abadá, tem um programa de rap numa rádio local. Algum apoio foi dado por comerciantes da região e por amigos que correram atrás de arrumar equipamento de som e todo resto necessário para a realização do evento.
Depois do grupo Abadá abrir os trabalhos com uma bela exibição de capoeira, Coquinho tomou o microfone e anunciou: “Boa tarde comunidade, vamos fazer uma festa bonita aqui hoje! Eu chamo pra cá um rapaz que veio lá de São João de Meriti pra trazer um rap aqui pra genteâ€. Era a minha deixa. Catei o microfone e acompanhado do meu parceiro Raphael Garcez fiz um dos meus shows mais bacanas. Cantamos no chão da quadra, numa situação onde nós e a platéia estávamos no mesmo plano. O ambiente era ótimo. O cenário abrigava b.boys e capoeiristas que dançavam enquanto, do outro lado da quadra, o basquete de rua e o skate comiam solto.
Na seqüência a atração foi um grupo de dança da comunidade. Os Novinhos requebraram no ritmo pesado do Funk, as meninas foram ao delÃrio! Jessy Rap, outra cria da comunidade de Vista Alegre, chegou junto para lançar seu terceiro CD. Como diz a ficha técnica do álbum: “Todas as músicas idealizadas por Jessy Rapâ€, as 14 faixas do disco foram gravadas pelo rapper em seu próprio estúdio caseiro. O microfone foi passado para as mãos do Fraternidade Rap, a dupla de Volta Redonda chamou atenção com um som que canta a continuidade do negro drama.
A festa corria muito bem, o público aplaudia, dançava e interagia com cada atração, mas a coisa realmente pegou fogo com a apresentação do Fradness`. Foi aà que o povo desceu da arquibancada e invadiu a quadra sem menor cerimônia. Tudo que acontecia ali foi feito em função da comunidade, as pessoas sabiam disso e não deixaram por menos. B.boys, capoeiristas e o povo de Vista Alegre formaram um corpo só, uma grande roda de break onde os mais corajosos puderam se aventurar a apresentar suas habilidades na dança. Dentro ou fora da roda todos dançaram, riram e viveram um dia especial. Era de fato a comemoração por todo processo vivido naqueles quinze dias em que franceses e brasileiros deram um passo maior que qualquer perna. Um passo que só é possÃvel quando é dado de forma coletiva. Que atravessa fronteiras geográficas e culturais e nos faz perceber que somos todos formados por pés, quadril e coração. Não somos assim tão diferentes quanto se pensa.
Muito bom, muito oportuno. Texto, imagens conteudo, vou voltar pra reler, um abraço andre;
Andre Pessego · São Paulo, SP 18/8/2007 14:33
Beleza de matéria, João!
Que matéria bacana João. Muito bem sacada. Excelente união e iniciativa não é mesmo. Duas realixdades e contextos aparentemente diferentes, mas que, na verdade comungam de uma mesma subjetividade, ou seja, de contextos, de certo modo, muito próximos. Um abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 22/8/2007 13:09
valeu felipe, eu acho que o grande lance é esse mesmo.
eu particularmente gosto de pensar como a dança, acima da lÃngua por exemplo, mediou esse contato.
Muito Bom João Xavi.
"Me passa o microfone que eu faço logo o improviso"
Um abraço.
João:
Bacana o teu relato, chega a ser comovente. Acessei o blog tambem, tudo muito dez. As gurias do Fradness dançam bem à beça, ao que parece (legal as imagens, também).
E não tenha nenhum pudor de teorizar, não, brother. Alguem já disse que nada como uma boa teoria para intervirmos e transformarmos a realidade. Sem ela somos arrastados pelos fatos como poeira levada. Até porque vc tem um texto bem legal, que prende a atenção.
O Overmundo parou para olhar, e dançar junto.
Um abraço.
Aà João,
Está acontecendo aqui em Salvador o Festival Internacional de Capoeira 2007, do Abadá Capoeira... Evento IncrÃvel...
A programação e algumas fotos vc vê em: www.fortedacapoeira.org.br.
Vlw"!!!
alô João: muito boas essas conexões que estão sendo estabelecidas entre periferias do mundo todo, sem passar pelo "centro", sem que o tal do "centro" nem perceba direito o que está acontecendo - e isso está acontecendo no mundo todo, o que é melhor ainda
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 25/8/2007 21:14que venha essa idéia...as relações entre as pessoas do mundo todo dessa forma coletiva e sem os holofotes da "cultura" posta ou "mÃdia" posta.................nossa mesa é posta..............aposto deliciado.......
Balbino · Cuiabá, MT 9/12/2007 13:59Caro João, você conhece já soube sobre o Censo da Capoeira? www.soucapoeira.org. Por favor, divulgue. Grande abraço
Robson Araujo · Campina Grande, PB 31/1/2008 10:14
Parabéns pelo artigo!
Meu voto está dado, abçs
Rose
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