Uma alegria infernal!

Helena Aragão
Quer chegar nesta idade alegre assim? Bola Preta na veia, meu amigo!
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Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ
24/2/2007 · 165 · 9
 

Primeiro dia: marchinhas e sambas de enredo. Segundo: bailão a céu (e sol) aberto. Terceiro: marchas-rancho, maxixes e afins. Quarto (ufa!): frevo comendo solto. Resumindo bastante, esta foi a trilha sonora do meu carnaval. Este ano peguei leve. Fui a no máximo dois blocos por dia (e estou mesmo ficando velha, pois mesmo assim fiquei exausta). Perdi vários bons, pelo que me disseram, mas a vida é assim. Como rolou a pilha de se fazer pauta nacional sobre a festança, resolvi colocar aqui o meu roteiro básico. Que não tem nada demais, de diferente, mas foi muito bom. Pode ser divertido para quem esteve nos mesmos lugares, pode ser útil para quem quer passar o carnaval no Rio nos próximos anos, pode saciar uma curiosidade distante para os que querem saber de carnaval só assim, pelas linhas de um texto. E pode ser apenas uma leitura na ressaca da quarta-feira de cinzas. Então, aí vai:

Sábado: Cordão do(a) Bola Preta ou Caótico Maravilhoso!

É possível que você já tenha ouvido falar nele. E tenha, inclusive, ouvido as mais diversas opiniões sobre ele. Então dou a minha: é muvucado. É caótico. É maravilhoso. Sou daquela turma que acha que o Cordão do Bola Preta (ou dA Bola Preta, como dizem que é o certo mas eu não consigo falar de jeito nenhum) deveria ser considerado Patrimônio da Humanidade. Há 89 anos, ele transforma Cinelândia e adjacências em um imenso tapete em branco e preto. Às 9h do sábado de carnaval, milhares de pessoas estão por ali abrindo a primeira cerveja.

É um festival de roupas engraçadas e – o que acho mais lindo – camisas feitas exclusivamente para o Bola daquele ano. Então você vai andando e vê uma família inteira com a blusa “Comunidade do Irajá – Bola Preta 2007†ou vizinhos em grupo como uma ala identificada como “Turma do Funil de Cascaduraâ€. O Bola é sinônimo de festa democrática e me parece que em nenhuma outra manifestação popular se reúne gente de tantos cantos da cidade (e de Niterói, e de Nova Iguaçu, e de Nilópolis etc etc) num mesmo lugar - talvez no desfile do Cacique de Ramos, que infelizmente perdi.

Tudo isso, ao som das marchinhas mais clássicas e dos sambas de enredo mais consagrados de todos os tempos. É verdade que isso tem em quase todo bloco do Rio, mas nenhum tem naipe de metais e cantores mais figuras que o Bola.

Mas peraí. Se você não é do Rio, está lendo este texto, ficou empolgado e já pegou o calendário para se programar para vir no ano que vem, calma. É preciso explicar. A alegria e a diversidade é proporcional ao caos que se forma. É gente que não acaba mais. É um calor que não acaba mais. Tem que comer muito arroz com feijão (combinação gastronômica que se alinha às cores do Bola) para ter saúde e entrar na muvuca. Ou então ser phD em folia como as velhinhas da foto que abrem esse texto (não são a coisa mais linda??? Podem acreditar: elas estavam na parte mais cheia). Minha dica é a seguinte: fique na periferia do bloco. Ele vai pela Rio Branco, então ande pela paralela (a Rua México) e vá entrando nas transversais que conseguir. Quem não chora não mama e, se o objetivo é se divertir com a “fauna†local, os figuraças do Bola estão no raio de uns cinco quarteirões para todos os lados da Cinelândia.

Foi na Nilo Peçanha, por exemplo, que encontrei os dois figuras da foto 3. Nunca tínhamos nos visto na vida mas viramos amigos de infância depois do clique. Descobrimos que aquele que fez pose de bailarino era realmente bailarino (!), pelo menos de carnaval. Ora, ora, ora, quando acho que não tem nada mais que possa me surpreender no Bola... Rouco de tanto gritar no ensaio, Zen (calma, este é apenas o apelido de capoeira que ele usa como nome artístico) contou que à noite estaria no Sambódromo, liderando uma ala coreografada do Arranco do Engenho de Dentro, escola do Grupo de Acesso. (Pausa, corre o filme para frente: por acaso fui assistir ao grupo de acesso à noite e pude registrar Zen em seu momento de glória. Confira no foto 4. No mesmo desfile pude testemunhar a beleza da Império da Tijuca, escola que visitei – contei aqui – e adorei).

Voltando ao Bola: nem só as fantasias causam gargalhadas por lá. Comprar uma cerveja no camelô da Evaristo da Veiga, por exemplo, rendeu bons momentos:

- Tem cerveja?
- Tem. E você ainda concorre a um carro e à casa própria. Sorteio na quarta.
- Ahn... Tá gelada, moço?
- Vê aí. Reclamações só em horário comercial e no departamento pessoal.

***

Domingo: Cordão do Boitatá ou Sem fantasia não dá (rima rica de matá)

Não deu outra: domingo às 10h já estava no centro rodeada por gente fantasiada. Arrisco dizer que o Cordão do Boitatá é o bloco que coloca mais gente fantasiada por metro quadrado – mas é no risco mesmo, porque é impossível conhecer todos os blocos desta cidade. É daquele tipo em que você se sente deslocada se está à paisana (foi o meu caso). Como o Bola Preta, ele era um cordão que vivia a andar pelas ruas do centro, só que numa formação mais radical: sem carro de som, aparelhagem ou corda. Acontece que, a cada ano, foi ficando mais cheio. Passar pelas ruelas do trajeto original começou a ser tarefa de risco. Passaram então a desfilar de manhã cedo, mas mesmo assim o tumulto se formava. Há uns anos, a turma do Boitatá resolveu fazer mistério sobre dia e hora do desfile. A atitude gerou críticas de muita gente. Ano passado, então, eles encontraram uma solução intermediária: montaram um grande palco na Praça XV. Isso não significa que tenham aberto mão do desfile: ele acontece às 8h da manhã, quando só os guerreiros e as crianças estão por lá. Depois, é bailão em praça pública. E uma alegria só, embalada a marchinha, samba de enredo e de terreiro e tudo mais.

***
Segunda: Rancho Flor do Sereno, eu te dou grau dez!

É segunda-feira de carnaval. A esta altura você já está exausto. E olha que só passou metade da festa. Tem um monte de bloco por aí, mas você não consegue se mexer. Como se recusa a ficar em casa, vai pegar uma praia. Mas guarde as energias restantes, porque à noite tem rancho. E não estou falando do carnaval do começo do século XX, quando esse tipo de manifestação popular era comum na cidade. Rancho é uma espécie de pai dos blocos e avô das escolas de samba. Mistura a espontaneidade dos primeiros com as alas e fantasias das segundas.

Do Rancho que se apresenta às segundas de carnaval, posso falar de camarote. Meus irmãos fazem parte do grupo que fundou a brincadeira. Um deles, o Pedro, é o regente da Orquestra Flor do Sereno, que reúne excelentes instrumentistas e cantores da cidade. A idéia surgiu em 2000 da cabeça de Elton Medeiros, provavelmente no meio de alguma roda no Bip-Bip, bar do coração de sambistas e chorões cariocas. O pé-sujo de Copacabana abrigou as primeiras reuniões para a criação do grupo. Freqüentei algumas e lembro do discurso muito mais para o lado de reavivar e compor no gênero marcha-rancho do que para a nostalgia dos carnavais que passaram.

Nos primeiros anos, o Rancho saiu na praia de Copacabana com carro de som, fantasias, alas, marcha-rancho, samba e marcha-regresso, compostas especialmente por nomes como Elton e Aldir Blanc. Foi bonito. Com o passar do tempo, ficou difícil conseguir dinheiro para tudo isso. Primeiro porque pré-carnaval é uma das épocas em que esses músicos mais trabalham em bailes e também porque, cá pra nós, é dureza para eles fazer a parte burocrática do negócio – mesmo com a ajuda incansável do Alfredinho, dono do Bip. A saída foi improvisar um baile em frente ao bar. Assim tem sido o rancho nos últimos anos: sem alas nem desfile, mas com toda a variedade musical que lhe cabe.

Tem as marchas todas, inclusive as clássicas. Mas convenhamos: a esta altura ninguém agüenta mais ouvir A Cabeleira do Zezé e Mulata Bossa Nova. Então eles salpicam algumas consagradas, ao lado de outras meio esquecidas e outras tantas composições inéditas, feitas para o primeiro disco do Rancho, que vai sair em abril. Este baile de 2007, como tudo no carnaval carioca, estava lotadíssimo. Tinha os velhinhos típicos de Copacabana, mas tinha também muito mais jovens que as edições anteriores e diversas caras conhecidas: consegui identificar o violonista Yamandú Costa, o sambista Moacyr Luz e o compositor Paulo César Pinheiro que nem pinto no lixo na multidão.

Terça: Bloco da Ansiedade ou Pãrãrãrãrãrãrã

Cem anos de frevo, né. Por conta disso, TODOS os blocos trataram de fazer sua homenagem ao som saltitante de Pernambuco. E como o objetivo é alegrar a galera e não ser original, pôde-se ouvir Vassourinha (ou Pãrãrãrãrãrãrã, para os menos íntimos) quase – eu disse QUASE – com a mesma freqüência que Cabeleira do Zezé nos blocos cariocas. E mesmo no Bloco da Ansiedade – que faz o bairro de Laranjeiras ‘frever’ todo ano – lá estava a fatídica marcha instrumental intercalada a cada quatro ou cinco frevos. Sempre fazendo as pessoas pirarem.

Peloamordedeus, não interpretem com isso que não gosto de Vassourinha. É o máximo, claro. Ainda mais com a maravilhosa orquestra do Ansiedade, que capricha nos improvisos e faz a música ficar ainda melhor. Eu e os bonecões de Olinda freqüentamos este bloco há algumas edições e ficamos embasbacados, pois ele nunca esteve tão cheio como neste ano – sei que essa frase já está virando chavão deste texto, mas é verdade! Sei não, mas apesar de achar que todo mundo fica muito feliz com samba e marcha, a alegria ao som do frevo parecia ainda mais contagiante. E olha que ali a maioria era sem letra. Quem disse que o pessoal hoje em dia não gosta de música instrumental?

***

E cá estou eu, na quarta-feira de cinzas e ressacas, encerrando essas linhas e ensaiando uma constatação. Ou melhor, duas. A primeira é sobre repertório. Todo mundo adora as marchinhas consagradas, mas há um consenso de que não dá para ouvir o mesmo setlist em todos os blocos (os que cantam marchinhas, claro, porque há muitos que cantam samba-de-bloco. O que não resolve muito, porque aí é o mesmo samba bloco inteiro...) Acho que esse foi o estímulo para se criar o Concurso de Marchinhas de Carnaval da Fundição Progresso, que teve segunda edição bem sucedida este ano mas, ao mesmo tempo, ainda está longe de conseguir levar as novas composições para as ruas. Parece que a solução passa mais pelos próprios organizadores dos blocos que, ao meu ver, podiam criar e ousar mais.

A segunda constatação é mais para o lado estrutural: o gigantismo e a falta de apoio são os dois maiores problemas desses blocos bacanas hoje em dia. O Boitatá teve alguma ajuda privada para montar o palcão, mas só. O Rancho este ano saiu sem patrocínio algum. Há alguns anos fiz uma matéria sobre o Bloco da Ansiedade e fiquei impressionada com o esquema - o pessoal produz e vende máscaras de carnaval em todos os blocos pré-folia para pagar os músicos.

Boa parte dos organizadores que conheço até se chateia com a escassez de patrocínio, mas me parece que isso é até menos grave, dado a empolgação que faz o bonde sair mesmo sem dinheiro. O pior é não conseguir contar com o poder público: há uns policias por ali (ou seria gente fantasiada?), há uns banheiros químicos acolá... Mas se sai uma confusão, uma briga, um arrastão, a culpa é de quem? A pergunta é complexa, mas não é difícil imaginar que vá sobrar para quem idealizou a festa, mesmo sem poder adivinhar quem vai aparecer. Por tudo isso, tiro o chapéu para os bravos foliões-chefes que comandam essa farra mesmo com alguma adversidade. E nos vemos nos blocos de 2008!

***

O texto que você acabou de ler faz parte de uma série sugerida e organizada pela comunidade do Overmundo. A proposta é construir um panorama do Carnaval do Brasil, sob a ótica de colaboradores espalhados por todo o país. Para ler mais relatos sobre o assunto busque pela tag carnaval-2007, no sistema de busca do Overmundo.

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Egeu Laus
 

Sensacional, Helena! Você é a minha repórter Overmundo para o Carnaval 2008. Só que vai ter que ir a pelo menos 3 blocos por dia! :)))

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 22/2/2007 09:23
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Helena Aragão
 

Fala, Egeu! Bem que estranhei não te encontrar em nenhum bloco! Só lendo seu relato percebi que fomos a blocos diferentes. Em comum só o Bola, mas fui cedinho e você mais tarde. Aliás, essa é outra dica importante: só consigo ir ao Bola bem cedinho mesmo. Depois me perco e o calor não permite mais nada. Dizem que ele acaba na Praça TIradentes, mas nunca nem cogitei ir até o fim. :)

Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 22/2/2007 09:36
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Gabi Almeida
 

Helenita, adorei todas as suas farras. Pena que não compartilhamos nenhuma delas... desencontro total. Mas virão outros carnavais... Bjs, gabi

Gabi Almeida · Rio de Janeiro, RJ 22/2/2007 16:04
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Leo Lima
 

eu compartilhei alguns desses momentos e foi pra lá de bom. Viva o carnaval! Viva a espontaneidade da rua, das pessoas, das fantasias!

Leo Lima · Rio de Janeiro, RJ 22/2/2007 17:15
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dudavalle
 

Mas quem disse que acabou o carnaval 2007 ? :-))))
http://www.samba-choro.com.br/carnaval/2007

dudavalle · Rio de Janeiro, RJ 23/2/2007 00:44
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SILVASSA
 

sua abordagem é, com certeza, melhor que a minha. menos triste, mais cheia de vida

enquanto você cuerte, eu meio que intelectualizo

SILVASSA · Salvador, BA 24/2/2007 08:39
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Guilherme Mattoso
 

muito bom seu roteiro helena! o meu foi mais light... coloco aqui em breve.

Guilherme Mattoso · Niterói, RJ 26/2/2007 13:35
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toinho.castro
 

olá, helena... feliz em saber que você esteve lá pelo bloco da ansiedade. tamb[ém escrevi minha crônica de momo, que passa pela minha terça-feira de carnaval, cheia de alegria.

toinho.castro · Rio de Janeiro, RJ 27/2/2007 16:54
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Marcelo Rangel
 

Helena, você foi muito feliz no relato, curti muito!!!!

Marcelo Rangel · Aracaju, SE 4/3/2007 00:58
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