(Texto originalmente escrito em 26/04/2006)
O simbolismo dos 50 anos de lançamento de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile amplifica, através de seminários, palestras e reportagens publicadas em revistas literárias e culturais, o interesse pela obra de Guimarães Rosa, autor que possivelmente divide com Machado de Assis a posição de maior escritor brasileiro. Uma das contribuições recentes para compreender o universo "roseano" é o livro Uma Cantiga de se Fechar os Olhos - mito e música em Guimarães Rosa, da pesquisadora cearense Gabriela Reinaldo.
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo, Gabriela propõe ao leitor, em Uma Cantiga ..., o exercÃcio de "olhar" a obra de Rosa a partir da música, das relações entre o signo musical e a construção da memória e do esquecimento, dos mitos que se remodelam no universo sertanejo, da edificação de uma glossolalia. Canções que nos textos do autor são apresentadas como elementos de anunciação, de profecia, de cura. Através de uma fala calma e paciente, ela explica: "Muitas escolhas do Guimarães Rosa eram escolhas sonoras. A terra dele, Cordisburgo, é uma terra de contador de histórias, de encantar, despertar curiosidade através da palavra. Escolha pelo afeto do som, que ative alguma coisa da memória, que está ligado a afetos da gente."
O interesse de Gabriela em estudar a literatura de Guimarães Rosa remonta à percepção de que "a música era presente em toda a obra, pois ele tinha uma preocupação muito grande com a poesia da prosa, com a poesia do dito". Trilhando o caminho da semiótica, enredou-se em estudar, na universidade, o "signo icônico" ou, como ela diz, o "signo que não representa, mas que quer ser a própria coisa que está representando, que não quer ocupar o lugar do objeto e sim ser o próprio objeto". A pesquisadora diz que a presença do signo icônico revela-se na linguagem religiosa, do sagrado, e na linguagem da poesia.
Gabriela busca desvendar por quais caminhos se dá o encontro da música com a linguagem mÃtica nos textos de Rosa. "Ele fala muito de um credo poético, podemos perceber isso não só pelas leituras e interpretações da obra, mas na fala dele, nas entrevistas que ele dava". A autora exemplifica com a obra mais conhecida de Rosa: "No Grande Sertão: Veredas, alguns acontecimentos marcantes são transformados em canção. São coisas que acontecem no sertão e os violeiros ficam com aquilo na cabeça, servem de mote e acabam se eternizando na memória em forma de canção. Coisas que chamam a atenção da comunidade, que eles consideram sobrenatural ou extra-mundano e aÃ, fazem uma canção daquilo. É mais ou menos semelhante com o que a gente tem aqui no cordel. Essas canções têm a ver com a documentação dos fatos, mas muito diferente do que a gente tem como objetividade, verdade, no sentido mais próximo do jornalÃstico". E enfatiza: "No livro, o Riobaldo tá narrando a vida dele, mas não tá documentando nada, não. 'O que eu me esforço de referir nessas memórias e não consigo, eu narro ao senhor com essas fantasias'. Ou seja, nos espaços que as memórias deixam as lacunas, fantasia-se em cima daquilo. Uma memória fantasiada". No livro, ela assinala: "A função do canto, na obra de Guimarães Rosa, parece ser a de tentar de alguma forma nomear o que não pode de outra forma ser tocado, dito, exposto."
Uma Cantiga de se Fechar os Olhos é a publicação da tese de doutorado defendida por Gabriela em 2002. Mas, se ao leitor a idéia de "tese" é sinônimo de escrita pesada, maçante, o livro revela-se uma surpresa: um texto sem "academicismos", em que conceitos e análises dialogam, em idas e vindas, com textos de Guimarães Rosa numa construção que também pode ser poética.
Dúvida?
Pois segue a descrição da viagem feita pela pesquisadora ao sertão mineiro, onde passou "uns 20 dias" na tentativa de encontrar o personagem Siruiz, de Grande sertão: veredas (cuja canção, apresentada no livro, despertou seu interesse em analisar a música na obra de Rosa):
Em 1997, embrenhei-me livros e sertão adentro no rastro de Siruiz, de Grande sertão: veredas. Sertão de Minas Gerais. Cordisburgo, Corinto, Curvelo, Morro da Graça, Andrequicé, Três Marias, faziam parte do itinerário.
Registrou o gravador:
_SiruÃ?
_ SiruÃzi?
_ Não sei não. Nunca desse ouvi dizer não.
_ SiruÃno?
_ Siruim?Como é, como é?
_ É bonito...
_É bonito, bonito é, mas não sei não.
Havia um descompasso enorme entre aquele livro, livro grande – "é uma BÃblia?", arriscou (na minha opinião quase acertadamente) alguém –, livro sem figuras, e os meus entrevistados. Havia um desarranjo entre a palavra impressa, silente, imóvel e a força do verbo oral, da palavra cantada, cheia de graça, de vida. Como é que eu ia saber cantar? Mas, eles exigiam. Mais: impunham. – "Ler, assim com as palavras? Uma música? Do SiruÃsse? Assim eu não sei não, ninguém conhece, não".
(...) o retorno a São Paulo foi desalentador. Nenhuma pista de Siruiz ou de seus versos.
Mas o sertão se encarregou de plantar, pequenas, invisÃveis, sementinhas. Os pássaros que cantam são os mesmos que são responsáveis por essa função orgânica da natureza. Encontrei não o Siruiz do livro. Mas muitos outros, no sertão.
Tese estruturada apenas em quatro capÃtulos, praticamente toda em texto corrido, sem um sub-capÃtulo sequer. Pergunto como se deu fazer isso. Gabriela responde com uma crÃtica à "academia" e uma confissão que nos faz lembrar que o maior rigor que um pesquisador pode dedicar ao seu "objeto" é respeitá-lo, não enquadrá-lo a modelos viciados: "Eu fiz porque eu não sabia fazer de outro jeito. Porque o próprio tema obriga. São muitas músicas, até tentei agrupar algumas delas em termos de função, ou outras categorias, mas mesmo assim elas escapam. Acho que a gente tem que ter lealdade com aquilo que está estudando. Não adianta a gente pôr dentro de um molde acadêmico, e é difÃcil querer continuar num academicismo quando ele é infértil. Eu não teria como falar desse tema de outra forma". Quando eu falo de recortes, objetivos, Gabriela contrapõe com "inquietações". "O Rosa tem várias coisas que inquietam a gente. E a gente sempre estuda aquilo que nos intriga. Sabe que vai estudar aquilo, mas sabe que não vai resolver. Esse tema, escolhi por falta de respostas."
É nesse jeito de não saber, nesse não-resolver, que Uma Cantiga de se Fechar os Olhos acaba oferecendo novas possibilidades não só para saber, mas para sentir um pouco do mundo de Guimarães Rosa.
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Uma Cantiga de se Fechar os Olhos - Mito e música em Guimarães Rosa
Annablume/Fapesp, 241 p.
Ricardo,
atentei, atentei e já perdi o fio da meada. Pensei: vou ler o texto e ajudar o colega, caso precise editar algo. Que nada. Rosa é tão intrigante (e, agora, sua interlocutora) que li teu artigo como se estivesse lendo o próprio Rosa. Que bom que não deixam a obra dele 'descançar em paz'. Muito obrigado por me permitires ler-te.
Abraço.
Ricardo, muito bom ter compartilhado aqui a informação e suas impressões personalÃssimas sobre a tese (livro) da professora Gabriela. Guimarães Rosa e, especificamente, Grande Sertão: Veredas, é um dos meus encantamentos literários. Até já publiquei dois textos aqui sobre ele (Na varanda de Riobaldo e Varanda LÃrica). Reli recentemente Grande Sertão e alguns estudos sobre a obra. E estou muito curiosa em relação ao livro de Gabriela. Parabéns pelo encantador e bonito texto.
Abraços.
Ricardo Sáboia, não tenho como compartilhar informações com você. Mais lhe faço o convite, para ir a Cordisgurgo e conhecer o Museu Guimarães Rosa. É maravilhoso e a cidade com aquele clima de interior uma delicia.
Walesson Gomes · Belo Horizonte, MG 14/4/2007 11:36Oi, pessoa! Parabens pelo excelente artigo. Saudades imensas dos bons tempos em Salvador!
Paula Góes · Salvador, BA 14/4/2007 13:32
Walleson,
Seu convite só aumentou minha vontade de conhecer a cidade, deve ser mesmo encantadora;
Paula,
ótimo receber um elogio seu! Bons tempos mesmo!
Que prazer sentir o mundo de Guimarâes Rosa nessa leitura, parabens Ricardo!
Sinvaline · Uruaçu, GO 26/6/2010 11:58Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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