Uma noite muito estrelada e sem qualquer nuvem no céu foi um complemento espectacular para um dia em que o azul do céu de brigadeiro era forte e contrastava com as casinhas preservadas do centro histórico da cidade. Que, aliás, estava fechado para a circulação de carros desde a noite anterior. Afinal, além da apresentação de mais uma rodada de filmes do primeiro ano do projeto Revelando os Brasis, São Luis do Paraitinga também exercia o seu lado devoto, preparando as ruas para a tradicional procissão que ocorre, todos os anos, na santa quinta-feira de Corpus Christi.
São Luis é uma cidade pacata, com cerca de 14 mil habitantes. Mas, ao contrário da maioria das cidades pacatas, o povo é empenhado em fazer com que a cidade apareça no mapa. É uma cidade histórica, terra de Oswaldo Cruz, sanitarista que também dá nome à única rodovia estadual que permite que São Luis seja visitada pelos seus turistas. Que não vão lá muito por causa disso, não: também aproveitam para curtir as trilhas ecológicas, já que o eco-turismo é um dos pontos altos da cidade, e também as diversas festas e manifestações culturais que nominam São Luis como um dos carnavais mais alegóricos do interior do Brasil.
No dia 7 de junho de 2006, a cidade amanheceu empenhada em se preparar para as festividades da celebração do Corpo de Cristo. Para os católicos, o evento é considerado uma festa de preceito e todos os que se declaram da religião devem obrigatoriamente assistir à missa nesse dia. Oficializada pelo Papa Urbano IV em 1264, a data no Brasil reflete, com aspectos regionais, a tradição iniciada pelo próprio pontÃfice, enquanto ainda era arcediago na Diocese de Liège, na Bélgica: missa seguida de procissão pelas principais ruas ao redor da igreja em que havia acontecido o culto. No caso de São Luis, estes aspectos incluem, basicamente, o empenho dos moradores da criação de tapetes decorados por todas as ruas por onde passará o cortejo.
Em cada uma dessas ruas, os padrões dos tapetes variavam muito. Todo ano é assim, por um motivo justo: cada uma das ruas do centro histórico pelas quais a procissão passa tem seus próprios moradores como responsáveis pela decoração. Ilza Guimarães de Carvalho, de 65 anos, conta que, desde que se conhece por gente, as ruas são decoradas. Mas, antigamente, era bem diferente: em cada margem da rua eram colocados mastros de bambu, que se arqueavam e, entre eles, eram colocadas sineiras redondas, feitas com arcos de bambu e papel de seda (à moda, por exemplo, das lanternas chinesas). Por baixo delas passavam as pessoas. Mas isso, segundo ela, era no tempo em que as ruas não tinham calçamento. Depois da pavimentação, feita com bloquinhos de concreto e não com asfalto, os tapetes foram criados. No inÃcio, eles cobriam totalmente a rua, lembrando a cidade com chão de terra batida. Atualmente, estes tapetes ocupam apenas a faixa central de cada rua.
Os tapetes são feitos de diversos materiais. No caso da decoração que Dona Ilza preparou, foram utilizados calcário, folhas, flores, serragem, café, trato de gado e flor-de-papagaio. Mas, circulando pela cidade, outros materias eram percebidos, como pedrinhas, tampinhas de garrafa decoradas, terra, areia, outros tipos de serragem e pigmentos coloridos de origens por vezes inusitadas (o azul, por exemplo, era o bom e velho sabão-em-pó). Toda esta diversidade e a criatividade de cada grupo torna o caminho um belo mosaico de cores e temas. Isto sem falar que, neste ano, São Luis comemorou também o 2º Congresso EucarÃstico Diocesano, iniciando as festividades para o centenário de Taubaté.
Enquanto os tapetes eram preparados e o pessoal que cuida da parte técnica do projeto Revelando os Brasis armava tudo na praça principal, algumas pessoas com instrumentos musicais foram se aproximando. Será que tocariam no coreto? Na verdade, Flávio e Léo esclareceram tudo. Eles fazem parte da Corporação Musical São Luiz de Tolosa (santo nascido em Toulouse, na França, que é o padroeiro da cidade e do qual o nome da mesma deriva), que todos os anos tocam durante as estações da procissão. Na verdade, tocam em todas as procissões da cidade. E não apenas as religiosas. O que muda de uma para a outra, para eles, é o repertório: enquanto nas católicas eles tocam hinos, nas outras fazem dobrados. Atualmente, além de um regente, 35 pessoas fazem parte da corporação, a maioria jovens como os dois. Flávio Soares Ribeiro Jr., 17 anos, toca trombone, enquanto Leonardo de Campos Couto, 18, maneja um sax. Os dois estão tocando com o conjunto há quatro anos. Mas todos, além da música, possuem em comum o vestuário uniforme e impecável: calça e ternos cinza, sapatos sociais de cor preta, camisa branca e gravata branca acetinada – roupa que serve tanto para os homens como para as mulheres desta banda mista.
Após a missa, que terminou por volta das seis e meia da tarde, a procissão começou e, enquanto isso, a gurizada tomava as primeiras cadeiras da improvisada sala de exibição de cinema ao ar livre. Improvisada, mas não por isso ruim: mais de duzentos lugares sentados, tela grande, embalados por uma noite bonita. Tão bonita que, por lá, até apareceu Ernesto Paglia e uma equipe do Jornal Nacional, preparando uma matéria especial para a edição do sábado seguinte sobre o projeto e o evento. Enquanto tudo se ajeitava, Chinica (ou Xinica, para os que não perguntam a grafia de seu nome artÃstico), fotógrafo de 39 anos e funcionário da Sabesp conta histórias de arrepiar. E de rir também.
Ao ver a equipe da Globo, lembrou-se de uma história tão absurda como verÃdica. Tudo veio da crença secular da cidade na existência de lobisomens por aquelas terras. Muitas casas tinham (e algumas ainda têm) cruzes incrustadas em suas fachadas para espantar estes espÃritos malignos. Uma cidade devota como São Luis do Paraitinga tinha mesmo o que temer décadas atrás. Mas, com o tempo, a eletricidade e a desmistificação do mundo que acontece em tempos recentes, o mito do lobisomem hoje é apenas uma lenda local. Só que, em São Luis, como rapidamente se descobre, tudo é motivo para se fazer uma festa. Foi daà que inventaram, em 2001, de se fazer um festival na localidade chamado Uivo do Lobisomem. O vencedor seria, claro, o que produzisse o melhor uivo da besta fera, numa eleição popular. O inusitado da proposta fez com que a afiliada regional da Globo em São José dos Campos, a TV Vanguarda, enviasse para lá uma repórter para entrevistar o campeão. Hoje não se fala o nome do rapaz, para preservá-lo, mas a verdade é que, em plena transmissão ao vivo para o telejornal regional, a jornalista pergunta como é que foi para o homem vencer o concurso de uivos. E ele começa a soltar sons guturais pela boca, diante de uma mulher perplexa que, com cara de ué e microfone na mão, nem havia se dado ao trabalho de perceber que o vencedor, na verdade, era uma pessoa muda. Dizem que foi motivo de piada na emissora por um bom tempo.
Ainda assim, Chinica conta que o famoso Lobisomem não foi páreo para o Saci. Graças a uma lei municipal recente, de autoria do então vereador Marcelo Toledo, hoje com 43 anos, o dia 31 de outubro é conhecido como o Dia do Saci. Neste dia, claro, a cidade comemora novamente. A data municipal, que tem o intuito de ser a versão nacional do Dia das Bruxas norte-americano, foi posteriormente adotada pela cidade e pelo estado de São Paulo e, em 2005, se tornou uma data nacional, graças a um projeto de Aldo Rebelo e Ângela Guadagnin. Sim, a mesma deputada da “Dança da Pizza†– e também dos direitos a salário-famÃlia e salário-maternidade para empregados domésticos.
Enquanto o papo rola solto, a procissão começa a se fazer ouvida ao longe, retornando à Matriz, de onde partiu. Todo mundo que passa por ela, é claro, vai pisando nos tapetes, destruindo o trabalho de um dia inteiro. Imagine a sujeirada que vai ficar. Imaginou? Pois não é nada disso: logo que as pessoas passam, uma escavadeira adaptada e uma equipe de limpeza recolhem toda a sujeira, varrem e lavam todas as ruas. Quando terminar o cortejo religioso, a cidade estará praticamente nova (ou preservadamente antiga) em folha. E já dá para ouvir com mais clareza os instrumentos da corporação musical quando a cineasta da cidade, Vanessa Cristina de Oliveira, chega à praça acompanhada do noivo, Carlos Peixoto.
Fazia certo frio àquela hora. Vanessa, uma bonita mulher de 26 anos, trajava um sapato com salto baixo, calça jeans, uma blusa de tricô branca, uma jaqueta de couro marrom e, muito bem articulada, conversou com o Overmundo sobre o seu filme e a importância de sua exibição em uma cidade que, hoje, não possui mais nenhum cinema – a antiga sala de exibição, o Cine Teatro São Luis, agora é apenas mais uma agência do Banco do Brasil.
Ela sabe da sua responsabilidade. Jornalista formada, trabalhando como produtora na afiliada da TV Bandeirantes em Taubaté, soube em 2004 do projeto pela TV Cultura, se inscreveu e decidiu que queria contar a história do padre italiano que, por mais de 50 anos, proibiu o carnaval em São Luis. Ao ser aprovada para fazer parte do grupo de cineastas iniciantes, ela disse que sua principal dificuldade foi se soltar mais, por causa das amarras e vÃcios jornalÃsticos. Também houve um trabalho intenso de pesquisa, que, em sua maioria, foi resgatada pela memória oral dos moradores mais antigos, visto que há pouco registro documentado da empreitada do monsenhor Ignácio Gióia em terminar com a festa profana e suas repercussões ao longo das décadas. Misturando a narrativa jornalÃstica com a reconstituição da história oral com atores, ela levou aproximadamente um mês e meio para produzir sua obra e uma semana para as filmagens.
Em minutos, a procissão chega à praça e, pouco depois, ela se encerra com uma salva de fogos de artifÃcio e a execução do Hino Nacional, atos sincronizado com a gravação de uma passagem da matéria pelo repórter global, que trabalhava numa boa: afinal, para quem venceu o Prêmio Comunique-se de melhor repórter de mÃdia eletrônica e cobriu a guerra Irã-Iraque, seis copas e duas olimpÃadas, uma matéria como essa certamente era algo pra se tirar de letra. E o profissionalismo se fazia presente também com a organização do Revelando os Brasis, que iniciou a exibição com mais de 700 pessoas na praça pontualmente à s sete e meia da noite, como confirmou mais tarde o Diretor de Cultura da cidade, Galvão Frade, de 48 anos.
O primeiro filme foi o de Vanessa, intitulado “São Luis de Rabo e Chifreâ€. O tÃtulo, inusitado para a exibição em um feriado religioso, explicava muito sobre o motivo daquela cidade ser tão festeira: era uma questão de brio. Afinal, após meio século sem carnaval, uma jornalista da Globo (identificada por Paglia como Maria Christina Pinheiro) foi à cidade, em fevereiro de 1980, fazer uma reportagem sobre a cidade sem carnaval. Por causa desta matéria é que, a partir de 1981, não tinha mais rabo nem chifre: São Luis do Paraitinga foi crescendo com aquela que talvez seja a folia de momo mais original de São Paulo. Hoje conta com mais de 1.500 marchinhas de carnaval da própria cidade, sendo apenas elas tocadas durante os dias de festança. Muita participação popular, sufocando os chamados bailes de salão e dando lugar a uma nova página na história da cidade, que, a partir daÃ, não parou mais de criar, como já se disse por aqui.
A autora? Visivelmente feliz, apesar do pouquinho de nervosismo, e sempre amparada pelo noivo. Já o público aplaudiu bastante a história, que atraiu a atenção de todos. Os bares ao lado também montaram cadeiras e tanto eles como os sobrados viraram inusitados camarotes para a exibição. Mas também teve gente como a Dona Dita, proprietária de uma pousada localizada bem atrás do telão, que não ligou muito para aquilo e ficou na sua, vendo a sua novela e servindo o jantar para os seus hóspedes.
Apesar das reações variadas da macharada, das carolas e das crianças quando apareceu uma mulher nua no quinto e último vÃdeo (chamado “O Quadroâ€, de um autor de Itiquira/MT), o saldo foi altamente positivo. Principalmente para os pequenos, que nunca tinham visto uma tela grande na vida. Muitos deles não conseguiam entender o que estava acontecendo e, em uma cidade modesta, uma mãe tentava explicar ao seu filho de quatro anos, de um jeito que este entendesse, a experiência de um cinema em uma cidade privada das sensações da sétima arte: “Ó lá, fio, é a televisãoâ€. É o mais perto que o menino vai, por um tempo, chegar perto de ver as grandes imagens que estão à sua frente. Isto mostra a grande importância de uma iniciativa como esta, que passará por dezenas de cidades com menos de 20 mil habitantes e terá, ao seu final, dado ao menos uma noite com um brilho diferente para populações sem acesso a este tipo de produção cultural.
Acho que está faltando um pedaço do texto no inÃcio.
Ilhandarilha · Vitória, ES 17/6/2007 22:53Tava mesmo, ilha! Valeu pelo toque, já tá ok.
Delfin · São Paulo, SP 18/6/2007 14:20Poxa, que coincidência boa a exibição do feriado de Corpus Christi ter sido em São Luis, cidade que alimenta a tradição das procissões e ainda por cima parece bem bonita nas fotos. Programaço. Adorei a história do concurso de uivos, merecia uma cobertura especial do Ernesto Paglia. :) Quem sabe a própria Vanessa não se anima a nos contar mais coisas por aqui? Valeu, Delfin!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 18/6/2007 14:43Muito legal, Delfin, um monte de história boa de uma cidade que parece ser divertida de se estar. Vi a matéria do jornal nacional, que, juntando à sua, ajudou a fazer um bom recorte de São LuÃs do Paraitinga.
Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 18/6/2007 14:44Pois é, não? Lá é um lugar que eu (e todos com quem falei que eram de fora) prometi que visitaria novamente com mais cama. Duro só é pra quem vem da BR-116, pq a Oswaldo Cruz, vindo de baixo, é uma conhecida tortura. Ainda assim, vale a pena.
Delfin · São Paulo, SP 18/6/2007 20:33
Que bacana...
as fotos são muito boas tbm...
um abraço.
Cortesia do Chinica, um grande cara com um arquivo de grandes histórias da cidade.
Delfin · São Paulo, SP 20/6/2007 13:44
Delfin, cara.. que cidade interessante. Gostei muito do relato principalmente pela boa quantidade de informações... curioso esse fato: parece que a vida religiosa intensa contrastando com um carnaval extremamente criativo é um traço de certas cidades que fazem um belo carnaval... lembrei de Olinda e seus frevos que só na parte da cidade alta tem mais de 22 igrejas. Imagino como deve ser colorido e musical o carnaval de São LuÃs da Paraitinga, pois se tomarmos como exemplo a beleza dos tapetes...
A história do concursos de uivos também é muito boa (heheheh imagino a cara da repórter).. Também fiz um texto sobre a passagem do Revelando os Braiss em Canindé (SE) aparece por lá ... ela ainda está na sala de edição junto com outra (Forró em Canindé) que tenta passar um pouco do clima de São João nesta época do ano nos arraiais da cidade..
Abraço e parabéns pelo texto.
Adorei, Delfin!!
Achei ótimas as histórias de lobisomem,haha. E o Dia do Saci!
Por aqui temos o Dia do Cabeça de Cuia, o monstro desalmado que matou a mãe e precisa comer sete Marias Virgens pra sair do fundo do rio.
beijo pra você
Natacha, como é que é?? hahaha, sete Marias Virgens foi demais. Conte melhor isso...
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 21/6/2007 11:37Helena, o dia do cabeça de cuia é na última sexta-feira de abril, mas como a lenda é a mais famosa daqui, dá pra fazer uma matéria atemporal!! Me aguarde, hahahahaha.
Natacha Maranhão · Teresina, PI 21/6/2007 12:08
Ih, lembrei que já falei do Cabeça de Cuia aqui, Helena.
beijo
Naty, o link ficou com o http dobrado. Aqui tá o certo.
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 21/6/2007 13:17valeu, chefinha! :-)
Natacha Maranhão · Teresina, PI 21/6/2007 13:18
delfin, esta rolando um projeto aqui em são luÃs ,que une são luÃs do paraitinga, com são luÃs do maranhão, sua cultura e seus costumes vale a pena dar uma olhada, qual quer coisa entre em contato comigo.
chinica medeiroa
Parabéns pelo POST! by Ser Univertário
Rodrigo Siqueira O. · São Paulo, SP 9/5/2011 14:04Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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