Um dos segredos da longa sobrevivência do Funk Carioca é sua incrÃvel capacidade de constante reciclagem. A Cultura Funk (seria pouco aqui reduzi-la a estilo musical) é de fato uma metamorfose ambulante movida exatamente por um turbilhão de modas (as ondas) que promovem a manutenção do interesse do público em assistir, viver e reproduzir este tipo de Cultura.
Falando mais como funkeiro (ouvinte e freqüentador de bailes) do que como estudioso do assunto, me arrisco a apontar alguns dos momentos de mutação desta Cultura:
Bem no comecinho do que hoje entendemos como Baile Funk, em meados dos anos 80, o som que dominava as pistas vinha dos Estados Unidos (vale citar que grande parte destes artistas, como Tony Garcia, tinham origem latina e eram baseados em Miami). Hoje, a trilha sonora do baile é 100% nacional. Produzida, em sua grande maioria, nas favelas e periferias cariocas. Esta mudança é muito bem examinada no livro “O Mundo Funk Carioca†de Hermano Vianna (disponÃvel aqui para livre apreciação).
No inÃcio dos anos 90, já com a chegada das primeiras baterias eletrônicas ao Brasil, inicia-se uma produção nacional que tem como grande marco o lançamento do LP “Funk Brasil Volume 1â€, produzido pelo DJ Marlboro, que conta com Raps clássicos como o “Rap das Aranhasâ€, versão do Rock das Aranhas de Raul Seixas, a “Melô do Bebado†e o “Rap do Arrastãoâ€, de Ademir Lemos, que narrava o fenômeno daquele marcante verão carioca. Há registros de que o disco vendeu consideráveis 250 mil cópias. Com letras divertidas e inocentes o Funk começava a chegar, bem de mansinho.
Foi este momento que criou as bases para o que ficou conhecido como “a época de ouro dos bailesâ€, o filé dos anos 90. Quando os MC´s, que então se apresentavam no formato de duplas, tornaram-se as figuras mais centrais da cena. Quem não se lembra dos versos do “Rap da Felicidadeâ€? de Cidinho & Doca: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasciâ€. O Funk se fazia presente em todos os espaços fÃsicos e midiáticos (estava até no programa da Xuxa!). E os bailes rolavam e bombavam a todo vapor, eram gigantes empreendimentos tocados pelas Equipes de Som (personagens que merecem um texto a parte). Festas onde aconteciam os encontros de galeras, eventos em que jovens de diferentes comunidades ou áreas disputavam amistosamente o tÃtulo de quem “agitava mais o baileâ€, que, nessa época, era sempre “uma uvaâ€.
Depois desta superexposição houve a queda (qual outro caminho possÃvel?). Os MC´s e seus Raps cederam espaço as Montagens (colagens de sons em loops recheados por samplers retirados de fontes diversas, como discos infantis, por exemplo) que já existiam há tempos, mas passaram a ter maior penetração nesta época. Esta tendência só foi resignificada com o surgimento dos Bondes, um tipo de formação de grupo que combinava o ritmo forte das montagens com letras simples e direcionadas aos passos de dança, realizados em movimentos coreografados por quatro ou cinco dançarinos. A grande jogada dos Bondes foi colocar a dança em destaque. Cada novo sucesso vinha acompanhado de sua “dancinhaâ€, de seu “passinhoâ€. Além disso, a popularização das técnicas de produção de vÃdeo digital, a super dinâmica proliferação de DVDs (produzidos e lançados pelas Equipes de Som, das gigantes as novatas) e os modelos alternativos de distribuição (banca de jornais, venda direta nos bailes e os incansáveis camelôs) impulsionavam os sucessos e suas dancinhas.
Mas foi a internet, sim, sempre ela!, que extrapolou os limites geográficos e proporcionou uma popularização ainda mais rápida e maciça de dancinhas e passinhos. Num primeiro momento através de vÃdeos advindos de grandes produções, extraÃdos dos DVDs. Mas não demorou muito pra acontecer uma invasão de vÃdeos caseiros, filmados por câmeras fotográficas ou celulares, onde dançarinos de diferentes localidades, idades e ambos os sexos (mas com prevalência maior de meninos) exibem suas habilidades.
No caso do passinho, o objetivo do dançarino é tornar-se o mais popular, conhecido e imitado possÃvel. Ser copiado pelos outros freqüentadores de bailes é um status, ou o status, de alto valor. Tudo porque dançar ocupa um papel social muito importante na vida destes meninos, em sua maioria na faixa da adolescência, ou recém saÃdos da mesma (aqui caberia ainda uma reflexão sobre a extensão da juventude). Em entrevistas colhidas na internet, muitos dançarinos afirmam que dançam “pra chamar atençãoâ€, pra “ganhar destaque com as meninasâ€. Dançar é existir de forma diferenciada num ambiente socialmente desfavorável. É, em suma, uma alternativa para “ser o caraâ€, galgar a coroa de “Rei da favela†e gozar de todo o capital social que o status concede.
Interessante nessa genealogia do passinho é perceber que o próximo movimento desta onda é a organização de duelos presenciais, em continuidade aos que já acontecem na internet. A proposta é extravasar através da dança a possÃvel rivalidade entre comunidades, e o já natural espÃrito competitivo presente nesta faixa etária. Uma ação que se apresenta em sintonia com o que pretendia Afrika Bambaata, conhecido como pai do Hip-hop, quando nos anos 80 começou a organizar festas de rua nos subúrbios nova-iorquinos. Transformar negativo em positivo, era a proposta da época. E hoje, a molecada carioca pode explorar seu potencial nestes encontros onde os dançarinos apresentam toda sua criatividade e versatilidade na composição e execução de movimentos. Nesse caso, assim como nas batalhas de MCs, se vence na base do grito. Ou seja, leva à melhor aquele que mais contagiar a platéia que, por sua vez, se manifesta na base do “fazer barulhoâ€.
Esteticamente o passinho engloba uma combinação interessante de passos clássicos de frevo, movimentos de break e do próprio funk carioca. Resultando assim numa dança nova, nascida no Rio de Janeiro, mas temperada com traços e sotaques de regiões distintas. O passinho é pop, é nordeste, é Brooklyn. É um encontro da raiz com a contemporaneidade, e por isso, mais tropicalista impossÃvel.
Ótimo artigo, caro João!
Existe algum vÃdeo que possa nos mostrar o que você descreve no último parágrafo sobre o passinho?
Tem sim. E com manual, se vc quiser aprender a dançar também. http://www.youtube.com/watch?v=pOJ0GyTlc6M
Rgralmeida · Rio de Janeiro, RJ 21/9/2011 08:52
Show de bola, cara.
Bem sacado e de cara trouxe à memória vários lembranças engraçadas.
E esse perÃodo que vc aponta na meiúca dos anos 90 coincide com a ida do DJ Marlboro para a rádio RPC, até então uma rádio de playboys do Rio de Janeiro. Foi uma explosão o Big Mix
E lembrei do vÃdeo do passinho da Cidade Alta: http://www.youtube.com/watch?v=WYKaaKvj0O4
Adorei o histórico, João! Só senti falta de links para a variedade de passinhos disponÃveis em vÃdeos na rede. Você podia botar seus preferidos aqui em comentário. :)
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 23/9/2011 14:45Parabéns João, muito bom o seu trabalho. Uma sugestão para completar isso seria você escrever como o tráfico "abraçou" este movimento funk, organizando e dominando hoje no Rio de Janeiro praticamente 100% dos bailes, usando-os para a distribuição de drogas e exploração prostituição, infantil ou não. Se você conseguir vai dar um livro. O Caco Barcellos até que tentou... deu no que deu, todos já sabem. Mas acho que essa "associação funk X tráfico X prostituição" já se disseminou para fora do RJ, indo para outros estados. No começo até freqüentei alguns bailes, hoje não dá mais, está muito perigoso, já vi cenas inenarráveis dentro desses "bailes". Triste para quem gosta de funk e apreciava aqueles bailes do começo do movimento... Abraço.
schildth · Petrópolis, RJ 26/9/2011 10:56
boa idéia, helena!
pra começar vou compartilhar o link do filme novo do emÃlio domingos (diretor do documentário L.A.P.A):
http://www.youtube.com/watch?v=3oktcJN8Roc&feature=player_embedded
um doc sobre a batalha dos passinhos que aconteceu em diferentes favelas cariocas.
no clima da "história do funk" o dj sany pitbull acabou de soltar uma mixtape bem didática, e divertida ,claro: http://soundcloud.com/sanypitbull/sany-pitbull-big-bang-01
joao xavi · São João de Meriti, RJ 6/11/2011 18:02Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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