Não há consenso sobre minha criação. Isto, talvez, seja esperado – ou mesmo desejado, porque não quero, seguindo os sábios conselhos de Nelson Rodrigues, ser pauta exclusiva da burrice. Há quem diga, embora a maior parte dos estudiosos questione, que o Brasil é minha pátria, mas que não fui patenteado aqui por falta de apoio do governo ao padre que me inventou. Polêmicas à parte, com o que (quase) todos os pesquisadores concordam é que meu passado, no paÃs do futuro, está intimamente ligado à história da união entre educação e comunicação. Idos tempos de Roquette Pinto, do Movimento de Educação de Base (MEB), da crença de que a rádio combateria o analfabetismo!
Meu presente, no entanto, cada vez mais tem se afastado desses ideais pedagógicos. É verdade que a Constituição Federal estabelece, desde 1988, que sou uma concessão pública, que meu uso deve atender a valores éticos e de cidadania, respeitando a diversidade cultural brasileira. Mas, caros leitores, estimados ouvintes, vocês hão de concordar que minha programação, com raras e honrosas exceções, está pasteurizada, mercantilizada, com formatos e conteúdos que ainda não se deram conta da notÃcia que há tempos chega lá do Maranhão, anunciada por Milton Nascimento: o Brasil não é só litoral, é muito mais, muito mais do que qualquer zona sul.
Neste inÃcio de século XXI, os cidadãos mais crÃticos (que alguns acusariam de puristas) respiram aliviados quando eu valorizo o Português, tal é a quantidade de expressões e músicas norte-americanas que invadem minha programação. “Ah, salve nossa lÃngua!â€, comemoram. E eu, que tanto já ouvi e falei nesses últimos oitenta anos, permaneço vÃtima da minha indagação sem eco: nós quem, cara pálida? Mesmo com os 500 anos de massacre e catequização, os indÃgenas do Brasil conseguiram preservar, de acordo com o lingüista Wilmar D´Angelis, da Universidade de Campinas (Unicamp), 200 lÃnguas diferenciadas. Cada uma delas expressa o cotidiano de resistência de um povo, um modo singular de ver e de sentir o mundo. Mas eu, infelizmente, tenho me portado como surdo-mudo diante dessa riqueza sócio-cultural.
Em Roraima, em abril de 2005, noticiei a homologação da Terra IndÃgena Raposa Serra do Sol, com 1,74 milhões de hectares. Lembro-me dos protestos em praça pública, das bandeiras pretas pregadas nos carros, do luto oficial de sete dias decretado pelo finado governador Ottomar Pinto (que morreu no mês passado, reeleito). Nas aldeias, como era de se esperar, a reação majoritária foi de comemoração pelo fim de um lento e conturbado processo de 30 anos de reconquista do território tradicional dos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Patamona. Mas essa festa eu pouco pude divulgar, silenciado por polÃticos e comunicadores a serviço dos interesses dos produtores de arroz do sul do estado.
Dos transmissores locais, porém, há dois anos se erguia uma voz alternativa, distoante do tom geral de lamentos, ameaças e segregação. Em abril de 2003, o Ministério das Comunicações concedeu à Diocese de Roraima um espaço no espectro eletromagnético: nascia, assim, a Rádio Monte Roraima. Foi lá, na 107,9 FM, em Boa Vista, em meio às disputas concretas e simbólicas que dividiam a população, que eu aprendi a falar Macuxi! E desde então, venho repetindo, de segunda a sexta-feira, durante 15 minutos diários, o convite que me seduziu: Makusi pe esenupam painîkon?. Ou seja: vamos aprender Macuxi?
Roraima tinha em 2007 cerca de 392,7 mil habitantes, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e EstatÃstica (IBGE). Aproximadamente 250 mil estavam concentrados na capital. Dados do Instituto SócioAmbiental (ISA) apontam que no estado vivem 40 mil indÃgenas, sendo os Macuxi a etnia mais numerosa, com 16,5 mil representantes. O Conselho IndÃgena de Roraima (CIR) acredita que boa parte dessas pessoas (algo em torno de 10 mil) more em Boa Vista, longe das aldeias, em meio a uma cultura urbana que contesta e muitas vezes ridiculariza sua identidade cultural. São esses indÃgenas o público alvo do programa Vamos aprender Macuxi!, idealizado pela Pastoral IndÃgena da Diocese de Roraima e produzido por um grupo de professores indÃgenas.
Nas cidades da Amazônia, as pessoas costumam se referir à s lÃnguas indÃgenas como “gÃriasâ€. O termo pejorativo revela traços de um histórico de dominação, permeado por perÃodos no qual os karaiwá (termo Macuxi para se referir ao chamado homem branco) puniam o não-uso exclusivo do Português com severos castigos fÃsicos. Não me surpreendeu, portanto, que a reação da maior parte dos ouvintes diante do novo programa tenha sido de negação. A jornalista e professora de Comunicação da Universidade Federal de Roraima, Antônia Costa da Silva, também apresentadora do Monte Roraima Show, programa que antecedia o Vamos aprender Macuxi!, cansou de atender ligações de pessoas ofendidas com as estranhas aulas radiofônicas. “Tinha gente que perguntava, com desdém, se o Macuxi existia mesmo. Outros afirmavam que em Boa Vista não havia Ãndios, só caboclos, porque as pessoas não andavam nuas nas ruas da cidadeâ€, contou-me Antônia, que fez do programa indÃgena o objeto da pesquisa de mestrado que está desenvolvendo no Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Ainda é cedo para saber se estou contribuindo para aumentar o número de falantes do Macuxi em Boa Vista. Minha experiência me mostra que o processo de ensino-aprendizagem vai além da produção e difusão de mensagens, passando também pelo complexo universo da recepção. O fato é que, a despeito da resistência dos não-indÃgenas, o Vamos aprender Macuxi! já é um sucesso. As lições diárias de 15 minutos (que se repetem durante a semana, completando um conjunto de quatro programas diferentes por mês) mudaram de horário: a pedido dos ouvintes indÃgenas, passaram de 9h00 para 19h00, para que pudessem ser acompanhadas à noite, ao balanço da rede. E, o mais importante, a iniciativa chamou a atenção de outros povos indÃgenas de Roraima: agora, eu também estou aprendendo (e ensinando) Wapichana!
Texto bárbaro, informação preciosa! A parcela indÃgena do meu DNA vibra e a verve que me faz acreditar na diversidade incrÃvel desse pedaço do planeta aplaude a iniciativa, torcendo pra que se estenda pelas etnias todas, propagando esse saber que, com tudo e apesar de nada, permanece.
Bia Marques · Campo Grande, MS 18/1/2008 12:17Oi, Bia! Que bacana que você gostou do texto e da pauta. Também fico muito feliz a cada vez que "descubro" uma iniciativa que ajuda a democratizar nossa comunicação, a mostrar outras vozes e caras da nossa cultura.
ThaÃs Brianezi · Manaus, AM 18/1/2008 17:41
Que belo texto, parabéns, vou enviar a alguns da tribo macuxi!
Parabens
Sinvaline
Muito bom teu texto. Há muita coisa para se conhecer nesse Brasil Imenso...
Lu&Arte · Porto Alegre, RS 21/1/2008 10:04
Vida longa ao programa e espero mais noticais da Amazônia por aqui e.... gostei do texto.
Abraços,
incrÃvel essa iniciativa, muito bem fundamentado o texto. esse brasil é rico demais pra ser apenas um replicador de "mais do mesmo". inté!
Ludmila Ribeiro · Belo Horizonte, MG 21/1/2008 12:30Gente, obrigada pelos comentários carinhosos! Quem nos dera ouvir nas rádios (e na TV) muitas lÃnguas indÃgenas (afinal, só o Brasil tem 200!). Mas nós, em geral, sequer conseguimos escutar a diversidade de sotaques.
ThaÃs Brianezi · Manaus, AM 21/1/2008 12:39
Excelente contribuição. Muito bem informado. Realmente o Brasil conhece muito pouco de si mesmo. Uma pena.
Um abraço.
São exemplos como este que nos fazem erguer a cabeça e seguir em frente. Parabéns e sucesso !
www.vortexproject.blogspot.com
thais? o tema e o texto continuam ótimos, mas os seus cabelos... quanta diferença!
Cristiano Navarro · Dourados, MS 21/1/2008 15:54
Mais um grito de resistência que ecoa dentro do Brasil.
Salve, salve!
De fato, a questão indÃgena no Braisl é um desrespeito total ao povo que originou estas terras, não só por isso, mas pela própria questão humana mesmo. Aqui em Roraima o preconceito é grande e pessoas 'esclarecidas' ainda mantém o discurso do colonizador. Afinal, para que tanta terra? É o que ouço e me dano a responder, sem ao menos ser compreendida, acho. Vejo que o indÃgena precisa se desvencilhar dos seus representantes de tribo que só buscam interesses próprios, chega das amarras polÃticas, que lutem pelo bem estar das crianças, das mulheres, dos idosos, de todo um grupo já cançado da hipocrisia branca, aliás, brancura que não vejo superior, pelo contrário, bastante inferior pelas atitudes sociais impostas à s outras culturas. Mas não quero cometer os mesmos erros deles sendo preconceituosa. Sou cabocla, ou será mestiça, negra, amarela quem sabe, sei lá, só sei que sou gente e amo o povo indÃgina como amo todos os outros povos. Quero igualdade de direitos, saúde, lazer, moradia para mim, minha famÃlia e todas as outra pessoas do planeta.
Parabém à você que buscar manter viva a lÃngua indÃgena. Riqueza imensurável. História do Brasil, de todos nós.
Um abraço.
E se precisar, pode contar com a minha força.
Beijos.
Uma luta honrosa em defesa da cultura dos nossos irmãos guiano-brasileiros e pela democratização do rádio. Parabéns.
Macuxingulê...
Paraaaabénssssssssss!
Você é brilhante!
Que as Divinas graças estejam cada vez mais presente em sua auréa para clarear suas idéias com muito êxito em todos os seus passos!
Adorei. Escreva mai sobre tema. Fiquei curioso. Que tal disponibilizar um programa paa download aqui no overmundo?
Araço,
espero novidades.
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