Viagem a Rondônia

Paulo Fehlauer
Zé Henriqueta, ribeirinho de Porto Velho - RO.
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Paulo Fehlauer · São Paulo, SP
24/8/2007 · 233 · 16
 

O texto abaixo mostra um pouco do que observei quando, alguns dias atrás, viajei a Porto Velho - RO. Corro o risco de ser paulistano demais, de minha visão ser carregada de preconceitos e, para isso, espero a colaboração dos colegas rondonienses. Por favor, me corrijam no que acharem que não faz sentido.

Viagem a Rondônia

Percorro com os dedos o mapa do Brasil para saber para onde estou indo. Longe. Logo após voltar dos Estados Unidos, viajei a Rondônia para observar o impacto da provável construção de duas usinas hidrelétricas no Rio Madeira. Mais do que isso, queria conhecer o Brasil, redescobri-lo.

Voando sobre a Amazônia durante a madrugada, não se distingue o céu da terra. Negro quase absoluto, pontilhado por solitários pontos de luz que poderiam ser de casas ou de estrelas. O que denuncia o chão, além da gravidade, é o reflexo da Lua, que persegue o avião acompanhando os rios e lagos que irrigam a floresta.

Diante de uma paisagem completamente nova para os meus olhos, tendo a chamá-la de “outro mundoâ€, para em seguida refletir se o mundo que é outro não seria o nosso, paulistano, metropolitano.

Rondônia, distante do eixo comercial e industrial do Brasil, é um lugar que vive de ciclos. Quando o mundo precisou da nossa borracha, uma leva de migrantes ocupou a região. Quando o assunto era ouro, outra leva. Cada uma delas teve começo e fim, deixando para trás apenas as marcas e a saudade dos ‘bons tempos.’

Quando um novo ciclo se aproxima, como anuncia a promessa das usinas, a população fica ouriçada, esperançosa. Ouvindo as pessoas, fica difícil culpar a maioria delas, que busca, como grande parte dos brasileiros, a chance de uma vida melhor.

Foi esse desejo que levou àquela distante região gente como Seu Zé Henriqueta, que chegou do sertão nordestino há mais de 40 anos, e é o mesmo desejo que os mantém por lá.

Há muita coisa que pode ser dita. Aqui vão algumas impressões.

Chuva de cinzas

Pela manhã, uma fina camada de poeira cinza empalidece a acaboclada pele do pescador que dorme ao relento. Flocos negros mancham o chão empoeirado. Uma névoa malcheirosa esconde o verde do horizonte e resseca as gargantas daqueles obrigados a respirá-la. A Amazônia chove em cinzas sobre Rondônia.

Viajando pela BR-364, de Porto Velho a Abunã, na divisa com a Bolívia, percebemos o clarão que a estrada abre na mata. No lugar de árvores, pastagens; no de animais selvagens, um monocromático mar de chifres. A floresta fica longe, ao fundo. As resistentes castanheiras tentam em vão quebrar a monotonia da paisagem.

Nos vilarejos da região, como em Jacy-Paraná, a ineficácia do Estado se reflete num ótimo negócio. Junte seus tratores, derrube uma área de floresta e venda seus novos lotes. Sem documentos? Ah, um dia o governo vem e legaliza. E assim Rondônia, agora com esperanças reacendidas pela boa nova das usinas, vai se transformando em um imenso loteamento.

À noite, voltando pela mesma estrada, fogo. Aos olhos estrangeiros, uma tragédia. Ãrvores queimando. A castanheira tenta resistir. Na visão dos moradores locais, apenas mais uma, causada provavelmente por um fumante incauto. Mentira, penso. Na manhã seguinte, névoa branca, poeira cinza, flocos negros e a garganta irritada.

Do Nilo ao Madeira

É provável que Seu Zé Henriqueta (foto) nunca tenha estudado a história do Egito. Mesmo assim, ele está mais próximo dos antigos egípcios do que imagina.

Todos os anos, o Rio Madeira tem uma fase de cheia e uma de seca. A diferença no nível da água chega a dezenas de metros. Quando as águas baixam, deixam fértil uma larga faixa de terra às suas margens. Os egípcios do Rio Nilo conheciam o fenômeno; os ribeirinhos do Madeira idem.

Zé Henriqueta planta, entre outros, batata, melancia, melão, milho e feijão, além do capim que alimenta suas cabras. Apenas o que sobrar é vendido. Além de tudo isso, o rio dá peixe, e como. A família toda foi criada ali, no sítio de nome sugestivo: Vista Alegre. Alguns metros abaixo, a cachoeira do Santo Antônio, futura sede da usina. Seu Zé Henriqueta ainda não sabe para onde vai.

Seu Rubinho não planta, mas acabou de construir um bar próximo ao rio. Dona Maria, mãe do Seu Pedro, passou a vida viajando até achar a Cachoeira do Teotônio, um lugar tão bonito que a fez ficar. Enquanto Pedro pesca, ela faz a sua colheita.

Como eles há muitos outros, e a história se repete toda vez que é invocado o dever de promover o crescimento da Nação. Não vou entrar aqui na politicagem do projeto – ainda não me considero apto a tanto. Enquanto Seu Zé Henriqueta está incerto quanto ao próprio futuro, depois de viver mais de 60 anos, outros Zés e Franciscos celebram o desenvolvimento. Arrisco-me a opinar que, tal como nos outros ciclos, as promessas são muitas. Em Rondônia, no entanto, a História não tem sido eficiente ao cumpri-las.

Vejam o slideshow com as fotos da viagem no meu site.

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Marcos Paulo
 

Falaí Paulo! Que maneiro ler tuas impressões daqui.

É bem verdade que esse período, de estiagem, é um tanto intenso por aqui e, como você disse, "A Amazônia chove em cinzas sobre Rondônia". Acho que na região Norte inteira é assim.

O assunto que rola aqui, em qualquer lugar que se vá, é tal da construção das Usinas. Vc deve ter percebido. Já rolou tanta, mas tantas audiências com os ribeiros que serão afetados com o "progresso", mas até agora nenhuma solução definitiva. Sabe-se, por enquanto, que todos serão idenizados.

Parece que, de repente, a capital recebei um "boom" de investimentos. Além da construção das usinas, que ainda não começaram, já está em andamento a construção de dois shopping´s gigantescos que prometem revolucionar a cidade, já que aqui possui apenas um "mini-shopping". Ou seja, Porto Velho está e vai ficar um alvoroço só, isso porque haverá, consequentemente, a vinda de muita gente buscando exatamente isso que você mencionou no texto: "a chance de uma vida melhor". Já existe, por exemplo, congestionamento por aqui, coisa que há dois anos atrás era quase inimaginável.

Da próxima vez que vier aqui, manda um email, cara. Existe uns lugares que dá gosto de conhecer e que não foram explorados pela mão humana.

Só uma pergunta: e o calor? Aguentou legal? rsrs...

Valeu!!!!

Marcos Paulo · Rio de Janeiro, RJ 20/8/2007 18:07
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Paulo Fehlauer
 

Oi Marcos,

Então, foi bem isso que percebi. O risco que existe é de a cidade, que já não tem infra-estrutura suficiente, inchar ainda mais, e quando as usinas forem concluídas, onde vão parar todas essas pessoas que foram praí em busca do "eldorado"?

Você deve saber disso bem melhor do que eu, mas a maior parte das pessoas aí não têm escrituras dos terrenos onde moram, e a situação só tende a piorar. Tudo isso sem nem tocar no assunto do impacto ambiental de uma obra como essa.

Como jornalista, procurei ouvir vários lados da questão, mas não consegui me convencer da real necessidade dessas obras. Tenho a impressão de que, como sempre, quem vai ganhar mesmo é um grupinho muito pequeno de pessoas; o resto vai continuar sonhando com os bons tempos do garimpo.

Pode deixar que da próxima vez eu aviso sim. Sobre o calor, até que foi tranquilo. Estava com saudades desse clima ;)

Paulo Fehlauer · São Paulo, SP 20/8/2007 18:28
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Gunga Costa
 


"Dona Maria passou a vida viajando até encontrar sua cachoeira, tão linda que a fez ficar...."

Meu caro Paulo diga-me se for capaz, qual será o bendito (ou muito pelo contrário) relatório de impacto que dará conta disto?

Que indicadores sócio-econômicos-ambientais-e-o-que-mais haverão de contemplar a serenidade de Seu Zé Henriqueta e sua prosaica plantação de batatas...

Não pude me furtar ao prazer de visitar teu site! Se não tivesse acreditado, a priori, em uma única linha de teus escritos, a imagem da locomotiva tomada pela selva por certo me obrigaria a mudar de rumos...

Gunga Costa · Vitória, ES 23/8/2007 12:55
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FILIPE MAMEDE
 

Antes de mais nada, a fotografia do seu Zé Henriqueta ficou muito bacana; singela e introspectiva...
Seu relato é muito pertinente. No tom certo. Questionador, observador e, sobretudo, muito bem escrito.
Um abraço.

FILIPE MAMEDE · Natal, RN 24/8/2007 15:09
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José
 

Trágico é o presente que você desvela...
Agradecido.

José · Criciúma, SC 24/8/2007 15:11
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Higor Assis
 

Com olhares e com vida. Parabéns!!!

Higor Assis · São Paulo, SP 24/8/2007 15:19
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Guilherme Mattoso
 

fala paulo! texto sensacional! acho até que vc deveria ter falado mais! essa visão da estrada é isso mesmo: imensos pastos e as castanheiras sempre presentes... e eu imaginava que as estradas na amazônia cortavam florestas...

Guilherme Mattoso · Niterói, RJ 24/8/2007 15:56
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Paula Sulmonetti
 

Muito bacana mesmo! Voce narrou de um jeito que conseguiu lever todo mundo la pra Rondonia. Eu ate citei seu texto no meu blog. Depois entra e da uma olhada...
www.cacosequerelas.blogspot.com

Paula Sulmonetti · Belo Horizonte, MG 24/8/2007 16:02
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Paulo Fehlauer
 

Pessoal, obrigado pelos comentários. Independente de as obras serem necessárias ou não, úteis ou não, é realmente uma pena ver que não adianta gritar, espernear, que essas decisões passam por cima do povo quase sem discussão. Quando o Ibama ameaçou vetar a obra, foi reestruturado, desmembrado e a licença saiu. Ou seja, de que adianta? Outra coisa que ouvi lá foi que até houve audiências, mas "o pessoal fala tão complicado que a gente não entende e acaba concordando", como me disseram alguns ribeirinhos. É o famoso febeapá, e o povo servindo de massa de manobra mais uma vez. País complicado esse, viu?

Paulo Fehlauer · São Paulo, SP 24/8/2007 19:47
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Benny Franklin
 

Paulo, Salve!

Sua ótima narrativa sobre a Amazônia - Rondônia, bem sei. É uma triste constatação que, em se falando de: desenvoilvimento, resgate de cidadania, eliminação da pobreza, estamos a légua de distancia da realidade.
Em nossa região campeia o descaso, o uso indevido do "nome" Amazônia usado para outros preciosos fins - não duvido nada que não seja utilizado em prol do colarinho branco.
O certo é que roubam-nos, afastam-nos do progresso, tiram-nos a verdadeira decência da vida... Matam-nos de desprezo.
Se mal diga - e perdôe-me a audácia - há que chegar o dia em que a liberdade prostar-se-á em nossas mãos, livrando-nos da senzala.
Parabéns, amigo, sua visão não está carregada de preconceitos e, para isso, a fim de espriaiar o grito, conto a colaboração de pessoas como você para salvar a nossa terra.

PS: Não sou rondoniense. Mas por favor, acate e transmita a essa gente de Rondônia toda a minha solidariedade.

Abçs.

Benny Franklin

Benny Franklin · Belém, PA 24/8/2007 20:55
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Benny Franklin
 

Em vez de prostar-se-á, quero dizer "deitar-se-á"; e, em vez de espriaiar, quero dizer "elevar".
Abçs.

Benny Franklin · Belém, PA 24/8/2007 21:03
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C.E.P
 

Depois de XXI séculos ainda continuamos a destruir o meio-ambiente em nome de um dito progresso. E não é responsabilidade apenas de um ou outro governo, mas de todos nós, que consumimos sem pensar e confundimos abundância com excesso. Gastamos energia demais, comemos demais e concentramos riqueza demais - só para desperdiçá-la, na maior parte das vezes em bens simbólicos, que nos trazem ilusôes: poder, status ou realização pessoal. É hora de pensar: consumo consciente já. Sem patrulhas, mas com ao menos um pouco de bom-senso.

Paulo,
Rôndonia, São Paulo, Rio e Haiti são iguais. O Haiti é aqui. Rondônia é lá. Ótimo texto.

Abraços,

C.E.P

C.E.P · Rio de Janeiro, RJ 24/8/2007 21:12
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Marcos Paulo
 

Que as usinas serão construídas isso é fato. Só não dá pra saber, nem pra imaginar, se haverá ou não responsabilidade. Uma coisa é certa: os impactos, como aconteceu na construção da hidrelétrica de Samuel, serão camuflados.

A seca do rio Madeira à qual você se refere, Paulo, já preocupa as exportações e importações. Já está em falta o cimento, por exemplo, que vem via balsa e, daqui uns dias, cogita-se a falta ou a alta do combustível que vem de Manaus e sai bem mais em conta do que comprar em São Paulo.

Acho que Rondônia vive, no momento, a incerteza da dimensão de uma obra como essa, das usinas.

Marcos Paulo · Rio de Janeiro, RJ 24/8/2007 23:04
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Tete Frazão
 

Paulo,
parabéns! Seu texto retrata a realidade....nosso estado nasceu desordenado, a capital cresceu desordenada e desestruturada pela invasão dos "em busca do eldorado prometido", e será palco novamente de uma nova invasão em todos os sentidos....afinal a construção das usinas é um fato....

Tete Frazão · Porto Velho, RO 28/10/2007 19:37
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MakacoKósmico
 

Embora teus escritos tenham tons estrangeiros muito me encanta a sensibilidade com que te compadeces com as problemáticas daqui.

Em verdade sofremos de uma sequela da falta de amor. Os poucos anos de nossa história amazônida delatam essa constatação simples.

O resto do País insiste em ver-nos como território “inóspitoâ€, de população “inexistenteâ€, com grandes potenciais de exploração extrativista em benefício do Centro-Sul do país. Esquecendo-se que as estatísticas, tão veiculada nos jornais quando se referem a questão das Usinas do madeira, aqui possuem rostos, vozes, histórias, culturas e também integram a mesma massa produtora de impostos destinados a manutenção deste mercado consumidor situado ao Sul do país.

Personagens como o Zé Henriqueta existem às centenas, portando sabedorias, "causos" e uma simpatia que os tornam imensamente belos pela singela simplicidade com que se mostram ser. Entretanto esta característica indizivelmente engrandecedora se torna também inimiga de seus donos quando favorecem investidas maliciosas acompanhadas de promesas de um futuro melhor. Muitos ainda acreditam fielmente que o alvo de todo esse altruísmo financeiro será mesmo a população daqui, e não as engrenagens do capital.

Infelizmente, como sangue da terra, preferia mil vezes o compromisso socioambiental aos megainvestimentos que em nada vão arrebatar seu povo de orgulho quando, futuramente, cenários como esse, de "chuva de cinzas" e antros do capital permanecerem arrassando a auto-estima de quem nasceu e se criou por aqui.

Como povo da floresta aqui está meu protesto.
http://www.overmundo.com.br/overblog/nevoas-amazonicas

Parabêns Paulo! Belo texto, belas fotos, demonstram uma boa estada.
Esteja sempre bem vindo!

MakacoKósmico · Porto Velho, RO 18/11/2007 16:13
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@lvarez
 

ibsen já vaticinava o mesmo em "o inimigo do povo" é ler e conferir - tal e qual...quem protesta e protestou por aqui, levou a pecha

@lvarez · Porto Velho, RO 21/11/2008 22:43
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