Há alguns anos surgiu na internet um conceito revolucionário e que agora está explodindo num fenômeno que tão cedo não vai acabar: o colaborativismo, base da chamada "Web 2.0". Basicamente, o usuário comum passou a ter o poder de não apenas consultar seus sites preferidos, mas também de publicar na internet seus próprios conteúdos e opiniões. Com isso, algumas pessoas passaram a se enxergar potenciais influenciadores (para não falar "formadores de opinião", expressão marqueteira que odeio), milhares de quase-crÃticos literários, de cinema, de música, de teatro...
A maior parte destas pessoas não possui formação "adequada" para receber o tÃtulo de crÃticos, e a grande maioria jamais será chamada para trabalhar em algum meio de comunicação, seja pelo estilo livre e pessoal de escrita, pela forma como trabalha, ou por simplesmente não ser jornalista. E não é isso que essas pessoas querem com seus textos: escrevem pelo puro tesão de falar sobre aquilo de que gostam. E os seus textos, profissionais ou não, trazem uma carga de parcialidade sem censura editorial que, além de exporem o que uma pessoa comum pensa sobre determinado assunto (com base em suas próprias experiências e conhecimentos), fazem com que as demais pessoas comuns que tenham afinidade por aquele assunto se identifiquem, seja aprovando ou discordando (o que é muito mais legal). Nada como ter a possibilidade de xingar o autor publicamente sabendo que ele vai acabar lendo aquilo.
Observando este fenômeno, e não muito afeito aos xingamentos, o crÃtico literário John Sutherland, do The Guardian e do Daily Telegraph e professor da University College de Londres, declarou no ano passado estar chocado com o volume e a baixa qualidade da crÃtica que ele encontra ao atacado na internet, e travou uma grande polêmica em torno da confiabilidade deste conteúdo livre de qualquer padrão edi[ta]torial.
Não sei o que acontece na Inglaterra, mas não acho que seja muito diferente do que ocorre aqui. Não podemos simplesmente ignorar que, enquanto na internet os crÃticos e quase-crÃticos se multiplicam como gremlins em contato com a água, o mercado editorial não reage com a mesma velocidade.
Mesmo com uma revolução lá fora, quando olhamos para os meios de comunicação mais tradicionais, sobretudo os impressos, percebemos que pouco ou nada mudou em relação a seus formatos editoriais nos últimos anos. Comparando os sites dos jornais brasileiros como são hoje e como eles eram quando surgiram, vemos que ainda são extensões on-line do meio impresso (e pouco se investe para mudar este cenário atrasado).
Um bom exemplo disso pode ser identificado se analisarmos o que acontece com a cena teatral paulistana. É inegável que São Paulo é a cidade com a atividade teatral mais intensa do paÃs, ainda assim é pequeno o número de estréias que ocorrem por semana na cidade, e são raras as semanas em que os dedos das mãos são insuficientes para contá-las. E nem mesmo metade de todas estas estréias aparece nas páginas dos cadernos de cultura, e quando a estréia tem o atrativo de um ator, diretor ou companhia famosa ou renomada, ou quando surgem produções amplamente divulgadas, torna-se inevitável que todos os jornais e revistas falem das mesmas peças. E ainda tenha gente que acredite em diferenças nas linhas editoriais.
Claro que existe a competitividade entre os veÃculos em cobrir da melhor forma aquilo que atrai a atenção de seus leitores/consumidores, e não podemos ignorar que a restrição de caracteres e espaço limitado das páginas impede que todas as estréias semanais sejam cobertas, é sabido que essa realidade dificilmente pode ser mudada. Seria até ecologicamente desagradável escrevermos tantas páginas sobre os lançamentos, nem temos tantos peixes pra embrulhar.
No entanto, os portais dos jornais e revistas poderiam servir de plataforma para oferecer aos leitores a cobertura para as demais estréias, mas hoje só encontramos a replicação exata do que foi publicado no meio impresso, ainda que não haja restrição alguma em relação à quantidade de caracteres ou espaço delimitado na web. O motivo para isso é muito simples: não há pessoas nas redações para gerar estes conteúdos que não são vendidos nas bancas. Será que faltam mais Sérgios Sálvia Coelhos e Beths Néspolis no mercado? Acho que a resposta é não.
Existe na verdade uma porrada de gente muito boa, louca para escrever sobre aquilo de que gosta, e que está cagando* pro que o Sérgio Sálvia tem a dizer. É por isso que existem tantos jornalistas, acadêmicos, profissionais e amadores que não se sentem representados pelo pouco que o mercado editorial lhes oferece, e que se refugiam em blogs e sites coletivos para suprir esta carência de informação relevante. Ao contrário dos jornais, estas pessoas não estão nem um pouco interessadas em trabalhar diretamente com jornalismo, menos ainda em serem imparciais. Ganhar dinheiro talvez seja a última coisa que pretendem (vejam o caso das revistas eletrônicas que há por aÃ, como a Bacante, que é mantida por dois editores que pagam hospedagem para escrever nas horas vagas, (ou não tão livres assim), pelo puro prazer de escrever sobre teatro).
É inegável que dentre estas pessoas, ainda haja muita gente boa que se enquadra no perfil editorial dos jornais e revistas e que, da mesma forma como contribuem com as Wikipedias e Overmundos da vida, facilmente contribuiriam bastante para melhorar a qualidade dos Ilustradas, Cadernos 2 e Guias da Folha que cada meio tradicional distribui por aÃ. Ou seriam grandes editores, ou no mÃnimo dariam excelentes curadores de conteúdo para versões on-line de cada veÃculo.
Mas o mercado editorial não enxerga isso (ou então é estúpido mesmo). Parecem preferir abastecer seus guias semanais com sinopses rasas e imprecisas, e pior: baseadas em releases para a imprensa. Se eles tivessem uma idéia do nÃvel de escrita das pessoas que escrevem os releases, passariam a levar os blogs muito mais a sério...
Isso acontece na Inglaterra, assim como no mundo inteiro, e John Sutherland ao fazer sua análise certamente não levou em consideração o fato de que parte do conteúdo dos guias culturais é pautado por aquilo que as assessorias de imprensa lhes oferecem de mãos beijadas. Isso é suficiente para abalar a credibilidade, e para dar aos anônimos o estÃmulo para se atreverem a brincar de crÃticos e colunistas em seus jornaizinhos virtuais pessoais.
Também não podemos tirar parte da razão de Sutherland. Seu maior argumento é a falta de qualidade deste conteúdo revolucionário, o que de fato muitas vezes procede. Não podemos ignorar que um crÃtico é uma pessoa que teoricamente possui um conhecimento acadêmico ou prático sobre o universo em que atua, e isso faz com que ele contribua com uma opinião especializada.
Mas o que acontece quando uma opinião especializada se confunde com uma opinião pessoal supervalorizada? O que torna afinal a opinião pessoal de um crÃtico mais importante do que a opinião pessoal de um espectador comum? E para o leitor, qual a relevância desta opinião especializada afinal?
Se olharmos friamente, hoje as colunas dos jornais muito pouco diferem dos milhares de blogs, seja em estrutura, seja em linguagem, seja em conteúdo. Em ambos os casos, a legitimidade do texto é ditada não apenas pela qualidade do que é dito, mas também pela receptividade dos públicos cativos de cada meio. Quem não concorda com a opinião de determinado crÃtico (seja ele de um jornal ou de um blog), está pouco se importando com o que ele diz. Da mesma forma, quando há identificação, as pessoas respeitam e defendem o argumento (ainda que não concordem com ele).
O fato é que dificilmente alguém vai assistir a um espetáculo teatral aleatoriamente, como é fácil de fazer com os cinemas multiplex. O teatro é uma arte que se acompanha por referência: seja esta de companhias, intérpretes, encenadores, dramaturgos, crÃticos, blogueiros ou indicação de amigos. A afinidade com a indicação sempre fala muito mais alto do que o grau de especialização daquele que está dizendo, e com isso, os blogs acabam assumindo esse papel com grande sucesso. E no fim das contas, tanto na crÃtica dos jornais e revistas como nas resenhas porcas (ou não) dos blogs, os respectivos autores assumem o papel do amigo que indica, cuja opinião é confiável e respeitável. Logo, o critério sobre a relevância ou não daquilo que é lido, pra variar, é do leitor.
Portanto, tanto quem quer Sutherland, Coelho, Néspoli, Ewald Filho e Thiago Ney como quem tem o mau gosto de ler a blogaiada e porcarias não-especializadas que há por aà (caso da Bacante), fiquem à vontade. Como já dizia o slogan de certa revista fundamental para o universo cultural de qualquer cidadão de bom senso: você é o que você lê. Então pronto.
* É disso que eu to falando, minha gente! Onde mais eu poderia usar a expressão "estar cagando", que por mais chula que seja, é a que melhor se encaixa na frase e que melhor define o tom que eu quero usar?
Texto escrito para a Revista Bacante: www.bacante.com.br
MaurÃcio Alcântara · São Paulo, SP 17/4/2007 22:42Boa reflexão, Mau. Tenho acompanhado seus textos de teatro por aqui, bacana pacas. O que mais gostei neste teu texto foi a capacidade de falar os dois lados da coisa. Quando se fala em web 2.0 a tendência costuma ser "fazer festinha" sem pensar muito a fundo no que isso significa. Compactuo com sua empolgação ao falar da possibilidade de todos terem voz, claro. Mas sem maniqueÃsmo. Tendo a achar que todo crÃtico, de blog, jornal ou o que for, precisa antes de tudo caprichar na auto-crÃtica. O fato de você usar essa reflexão para falar do teatro, tema que te é tão caro, completa o texto com chave de ouro. Gostei de ler.
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 19/4/2007 19:08
Obrigado pelo comentário, Helena!
Trabalho com internet, e o que eu mais vejo são pessoas se empolgando e "fazendo festinha", como você diz, em torno de muita coisa que tem acontecido. Coisas que são geniais, como o conceito 2.0 e muitas coisas que viraram febre e que não passam de confete. Cabe aos usuários saberem separar o que presta e que vale a pena ser mantido, e jogar fora o que é bobagem... Mas ultimamente tem faltado muito esse critério às pessoas...
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