Este texto foi escrito a quatro mãos (se levarmos em conta o teclado do computador) e à distância. Cada parágrafo por um, por e-mail, ao longo de três dias. Se ficou bom para os outros lerem não temos certeza, mas a verdade é que foi bem divertido. Talvez não fosse preciso avisar, mas não custa: sendo coletivo e alternando ômi (Pedro Paulo, itálico) e mulé (Helena, redondo), não estranhem o uso de palavras no masculino ou no feminino, dependendo do parágrafo.
Conheci Zé Cruz em 2002, nas gravações do CD O samba é minha nobreza. O projeto, minha estréia como cantor profissional, me proporcionou uma convivência de três meses – duração de nossa temporada no Cine Odeon, no Centro do Rio – com o dono da voz “malandreada” que eu já conhecia dos sambas Conversa de malandro e Responsabilidade (sincopados de Paulinho da Viola), gravados nos anos 60 pelo conjunto A Voz do Morro – que, além de Paulinho e Zé Cruz, contava com Zé Kéti, Elton Medeiros e Jair do Cavaquinho, entre outros craques. Pois o nosso Zé, “sumido” do samba desde aquele tempo, era uma das atrações de O samba é minha nobreza (concepção de Hermínio Bello de Carvalho, direção musical de Paulão Sete Cordas), num bloco em que cantava sambas-choro se acompanhando no chapéu de palhinha – arte na qual (até onde se sabe) é o único remanescente. Foi lembrando daquele tempo e daquela ótima convivência que propus à amiga Helena Aragão que fossemos conversar com Zé Cruz em sua casa, no bairro de Benfica (zona norte do Rio), para repartir com os leitores do Overmundo o tanto de causos que ele tem pra nos contar.(Pedro Paulo Malta)
Convite aceito, fui me preparar para a conversa. Puxei na memória a imagem daquele senhor franzino, que subia ao palco do Nobreza com chapéu e gogó e conquistava a platéia com versos de amor. Fiz a clássica busca no Google para procurar informações e fiquei surpresa em ver que há pouquíssimas referências ao sambista no universo ilimitado da internet. Quando chegamos, ele estava sentado numa cadeira em frente a seu pequeno prédio. Esperava por nós muito alinhado, com calça e camisa social, cabelo penteado e um sorriso. Zé Cruz completou 80 anos em fevereiro. A saúde anda pregando umas peças, que o fizeram emagrecer bastante nos últimos tempos. Ainda assim, achei o senhor bem elegante e comunicativo. Subindo para o apartamento no primeiro andar, já foi berrando a frase que virou a marca da entrevista: "OH TÉIA!!!" E lá vinha Dorotéia, companhia de vida inteira e espécie de memória ambulante do malandro. (Helena Aragão)
Só que, ao contrário de Pantaleão (personagem de Chico Anysio famoso pelo bordão com que rifava histórias cabeludas: “É mentira, Terta?”), nosso contador de causos do telecoteco abre seu anedotário com uma defesa da própria legitimidade: “Pra contar o que eu conto tem que ter sido criado aqui na Mangueira, onde vivo desde os oito anos”, conta Zé, que desde cedo se encantou pelos personagens do morro. “Todo dia às quatro da tarde eu esperava Geraldo Pereira passar pelo Largo do Pedregulho, a caminho de casa, no Morro de Santo Antonio, voltando do trabalho. Ele vinha subindo e eu começava a cantarolar um samba dele: ‘Por que é que você quando passa por mim não me dá mais bonjour...’ (cantarola Pode ser, de Geraldo e Marino Pinto, gravado por Isaurinha Garcia)” De sincopado em sincopado, Zé chegou à Rádio Vera Cruz, para onde foi levado pelo radialista Washington Fernando, que o chamava de ‘O Magistrado Sincopado’. Foi lá que, um dia em 1958, teve a sorte de cantar para Dilermando Pinheiro, que lhe ensinaria a rara arte que domina até hoje: o batuque no chapéu de palha.
Do encontro na rádio até a batucada derradeira de Dilermando, em 1975, Zé Cruz foi unha e carne com o amigo. "Como ele era? Um canalha, no bom sentido. Bebia como uma porca, comia muita pimenta. Né, Téia?" Depois de receber o olhar aprovador da esposa, ele pega o chapéu amarelo, herança de Dilermando, e conta: "Mandei consertar e escangalharam todo. Perdeu toda a malícia". Mas afinal, o que explica a malícia do chapéu de palha? Além da foto de Dilermando colada na parte de dentro, como os peões fazem com a de Nossa Senhora Aparecida antes dos rodeios, existem alguns macetes. Até porque o chapéu é comprado na chapelaria e não numa loja de instrumentos. Zé dá a receita: "Tem que ser um chapéu de palhinha ou palha de arroz. Aí você compra tinta esmalte e dá duas ou três mãos, para ficar mais durinho". Para alguns, isso seria apenas um pandeiro improvisado. Para Zé, fez toda a diferença e alavancou sua carreira artística.
Aluno de Luiz Barbosa (este o primeiro chapéu-de-palhista – como escrevia Sérgio Porto – de que se tem registro), Dilermando Pinheiro também ensinou a Zé Cruz os sambas que seriam seu carro-chefe, a maioria deles retirados do repertório de Cyro Monteiro – um dos ídolos (e depois amigo) do Zé. Era com eles, inclusive, que nosso personagem se apresentava em O samba é minha nobreza: “Eu queria ser asfalto pra você pisar em mim, eu queria ser um cravo e florir no seu jardim...” (Eu queria, de Roberto Martins e Mario Rossi), “A minha Rosinha é melhor do que doce de coco...”(A maior mulher do mundo, assinado por Jorge de Castro), “Oh, meu Santo Antonio, meu maior amigo, não consinta que meu bem faça ingratidão comigo...” (Santo Antonio amigo, de J. Cascata, José Gonçalves e Marino Pinto). Nos últimos dias de temporada no Cine Odeon, nem mesmo um braço quebrado (num tombo na escada de seu prédio) o impediu de fazer bonito no encerramento de nossa temporada: “Passei a madrugada toda ensaiando para não fazer feio, pois sabia que ia estar cheio. Dei um jeito de encaixar o ‘Arroz’ (nome de seu chapéu) no gesso, dei meu recado e foi aquele aplauso todo no fim.” (Veja e ouça Zé Cruz cantando os três sambas no vídeo que pode ser baixado aí do lado)
Aplausos fizeram parte da rotina da dupla Zé Cruz e Arroz nos anos 60. Não só na temporada radiofônica, mas sobretudo na carreira do conjunto A Voz do Morro (que durou de 1965 a 67 e lançou três LPs: Roda de samba vols. 1 e 2 e Os sambistas). Foi graças a Zé Kéti, colega na gráfica onde trabalhava e já referência no mundo do samba, que o xará Cruz enveredou de vez no mundo dos breques e partidos-altos. “Nós saíamos do trabalho 17h30 e íamos pro meio artístico, que era a região da Praça Tiradentes. O Zé Kéti era muito querido e, como sempre estava do lado dele, achavam que eu era compositor também”. Se (quase) nunca compôs (“fiz meus bois com abóbora, mas não tinha muito jeito”), escolhia bem o repertório e dava interpretação sob medida. Ou, no caminho inverso, faziam sambas sob medida para sua interpretação malandreada – foi o caso dos supracitados Conversa de malandro e Responsabilidade, feitos por um jovem Paulinho da Viola e registrados por Zé nos dois discos da série Roda de samba. Nesta fase áurea como sambista, viajou o Brasil inteiro e ganhou “troféu à beça” com o conjunto. “Mas ficou tudo na casa do Zé Kéti”, conta. Foi também a época mais afortunada do chapéu-de-palhista. “Tinha que conciliar trabalho e samba. Trabalhava a noite toda na gráfica para poder viajar. Ganhei dinheiro pra caramba. Agora não tenho mais nada”. E aí foi a vez de Téia falar, sucinta como sempre, e pela primeira vez sem ser convocada: “Se tivesse juízo, né...”. Zé concorda: “Sempre fui muito de farra, queria andar bonito... Mas pelo menos nunca deixei faltar nada em casa”.
Até porque o trabalho entrou cedo na vida de Zé, como acontece com tantos brasileiros, por conta das necessidades. Seu pai, Antônio, trabalhava com política na cidadezinha de Monte Alegre, distrito de Santo Antônio de Pádua, na região noroeste do estado do Rio. Foi lá que Zé nasceu – José da Silva Cruz, em 4 de fevereiro de 1927 – e de onde, devido às complicações do trabalho de Seu Antonio, Dona Maria saiu rumo ao Rio de Janeiro com os outros filhos: Maria, Irineu e Luzia. Ficou Zé, mais velho dos meninos, para acompanhar o pai. “Eu estava com seis anos quando armaram uma emboscada para ele, num comício. Deu uma confusão danada e meu pai morreu atropelado por um caminhão.” Acolhido por uma tia paterna cujo marido tornou-se um pesadelo para Zé (“Ele não gostava do meu pai e descontava em mim, com uma palmatória atrás de outra.”), veio para o Rio um ano depois, encontrando sua família já estabelecida na comunidade da Mangueira, mais especificamente na localidade do Pedregulho. Lá, Dona Maria acabou se casando com o frentista Joaquim de Almeida, um português que, beneficiado por uma herança da Terrinha, comprou uma casa em Oswaldo Cruz e levou a ‘nova família’ para morar com ele no reduto portelense. “Mas enrolaram o português, tomaram a nossa casa e minha mãe morreu, desgostosa.” Com 14 anos, Zé não teve outra alternativa senão trocar os estudos na Escola Uruguai por trabalho: primeiro numa farmácia, depois como mensageiro de uma companhia telefônica e mais tarde como impressor de off-set – seu oficio mais constante nos anos seguintes.
Mas nem tudo foi espinho no período da adolescência. Aos 15, Zé conheceu Dorotéia e logo o namoro engatou. Casaram-se tempos depois, ela com 21, ele com 22, quando conseguiu acumular o trabalho na gráfica com outro no Ministério da Justiça. "Temos pouquinho tempo de casados... Só 57 anos", brinca Téia. Nesse tempo, a família cresceu com Zezinho, o filho legítimo que chegou a ganhar as páginas de jornais quando atuou, ainda na infância, no filme Gimba - presidente dos valentes, de Flavio Rangel. Mais tarde, Zé e Téia incorporaram ao grupo Neílton, filho de coração. “Uma vez o Zezinho conheceu uma moça baiana e eles tiveram aquele entrosamento. Vi que ela tava sempre com um molequinho. O namoro acabou e o menino acabou ficando com a gente. Hoje é todo mundo amigo, ele visita a mãe, mas quem criou foi a gente”, conta Zé, mostrando, maravilhado, a foto da neta Giovanna. “O Neílton me deu esse tesouro, a mulher mais bonita da televisão! Hoje vivo para ela.”
Só para ela? “Téia! TÉIA!”, gritou Zé. A esposa tinha se distraído na cozinha e não atendeu de pronto seu chamado. "Não faz isso comigo não, Téia!" Zé não disfarça que só faz sentido existir com as mulheres de sua vida. Não só elas, mas também aqueles pedacinhos de felicidade que habitam a pequena sala do seu apartamento: quadro do time do Vasco de 1982 ao lado da foto do grupo A Voz do Morro. Discos de vinil tão organizados quanto os recortes de jornais e revistas (não só com matérias sobre ele, mas também sobre amigos do peito: Dilermando, Zé Kéti, Moreira da Silva, Nelson Sargento, Cristina Buarque e até mesmo o Pedro Paulo!). Carteirinha de componente da Ala da Bateria da Mangueira e partes de fantasias da escola. E, claro, os dois chapéus que viram instrumentos de trabalho. Aliás, não falta disposição de professor para ensinar o batuque peculiar a potenciais chapéu-de-palhistas do futuro. Para se candidatar, basta ter coordenação motora, manemolência e muita simpatia. Né, Téia?
vida longa ao legendário zé cruz e à arte de tocar chapéu de palha no samba! :))
uma delícia de personagem, viu, heleninha e pepê?
OOoo, muuuito legal esse cabra!
Que curioso descobrir a existência de ritmistas do samba denominados "chapéu-de-palhistas", como
também descobrir que existe toda uma DINASTIA desses batuqueiros.
Alô, Mônica: vida longa (e boa) ao Zé e ao Arroz!
Alô, Leo: pois é, dinastia que traz junto uma gratidão bonita do Zé Cruz pelo Dilermando (assim como este era grato ao Luiz Barbosa).
Abraços.
“Se tivesse juízo, né...” :) Maravilha!
Olá, Pedro, há quanto tempo, hein, menino? Desde os tempos do Viva Favela! Muito bom reencontrá-lo por aqui, nessa dobradinha com a Helena - e mais ainda com o Zé Cruz, a quem eu não conhecia.
Olha, fiquei com umas dúvidas aqui... Uma por ignorância mesmo: o que é sincopado? Preferi perguntar a vc do que simplesmente pesquisar - e assim aprender com quem é da área!
Outra coisa é que achei curioso o Zé falar que mora na Mangueira desde os 8 anos, mas atualmente estar em Benfica e ter mudado pra Oswaldo Cruz ainda no início da adolescência. Depois do período no reduto da minha querida Portela, ele voltou pra Mangueira?
Ah, também senti falta dos causos da Mangueira, contados por ele. Acho que isso rende um novo texto, pelo menos, não? Fora as histórias e personagens do samba que você, como poucos, pode trazer pra gente aqui, né? :-)
Beijos.
Pedro Paulo, o meu primeiro afilhado se chama Pedro Paulo,
este fato e mais o teu escrito me fez proximo de ti.
È de uma grandeza enorme, enorme mesmo, este capítulo da História. A História dos que fazem, fizeram, farão o Brasil. Esta personalidade que a despeito de tudo vive, corta caminho, estreita pistas e humaniza, no que pode, esta América, o berço da dor.
Arquivei pra ler, com mais calma. Transmitir pro meu Mestre. Obrigado, andre.
Ficou bem bacana esse texto-dobradinha. E conhecer um pouco dos nossos mitos fundadores - e, ainda por cima, um mito vivo - é excelente.
Ronaldo Pelli · Rio de Janeiro, RJ 27/10/2007 15:12
Eu gostei da colaboração e não atrapalhou em nada a forma como foi escrita. Ficou sim, muito bacana !
Adoro histórias de sambistas, também sou suspeito;.
Higor e Ronaldo: bom demais escrever em dobradinha, sobretudo se o parceiro é um craque - caso da Helena, querida amiga de tanto tempo. Que bom que o resultado agradou!
André: curioso como esta personalidade de que você "fala" no seu comentário tão admirável e ao mesmo tempo comum no nosso país, não é mesmo? Abraços ao xará!
Salve, Tetê: realmente, quanto tempo! Lá se vão uns 5 anos desde minha breve passagem pelo Viva Favela. Boa pedida a de uma próxima matéria com os causos mangueirenses por Zé Cruz (e outros contemporâneos, por que não?).
Quanto à presença dele na vizinhança: de fato, os 72 anos que ele tem de Mangueira não são completíssimos (há “escapulidas” como a brevíssima estada em Oswaldo Cruz – salve a nossa Portela! – e uma passagem pelo morro do Tuiuti, onde ele foi morar após a morte da mãe), mas boa parte do tempo foi vivida por ali mesmo. Até porque Benfica é bairro vizinho, ali bem perto, podendo – grosso modo – ser considerado parte de uma “Grande Mangueira”.
Quanto ao samba sincopado, difícil definir, viu...? Pelo menos, complicado dar uma definição que dê conta de tudo. Pois além das definições formais que se tem de síncope – “deslocamento do acento rítmico esperado” (Dictionnaire de la musique), “fenômeno rítmico que consiste em antecipar a articulação, melódica e percussiva, aos momentos exatos de sua pulsação (Guerra Peixe)”, é preciso falar de craques do gênero como os compositores Geraldo Pereira e Padeirinho e cantores como Cyro Monteiro, Miltinho, Germano Mathias e João Gilberto, entre muitos outros, de seu parentesco próximo com o samba-choro e samba de breque, e de como ele cai como uma luva nos salões de gafieira. Melhor que tanto palavrório é mesmo ouvir né? Sugiro essas gravações de Bolinha de papel e A situação do escurinho.
Abraços gerais,
Pepê, já tinha visto a pergunta da Tetê mas bem deixei pra você responder, hahaha. Ô coisinha complicada de se explicar! A primeira coisa que veio à minha cabeça foi "samba de malandro". Vale também ver o vídeo para ter uma noção... Abraços!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 28/10/2007 21:24Verdade, parceira. Quando se trata de letra, o universo da malandragem também é uma constante do samba sincopado. Ainda nessa linha, aliás, outra dica que faltou para a Tetê foi o baita CD do Nei Lopes, "Sincopando o breque", de 1999. Beijos.
Pedro Paulo Malta · Rio de Janeiro, RJ 29/10/2007 02:05
Pedro Paulo, parabéns pela matéria com Zé Cruz, uma bela dobradinha, longa data desde os tempos do Viva Favela, jornalismo e samba se misturando cada vez mais. Estou te procurando para te convidar para uma exposição de fotografias sobre Samba e Jongo, que estou fazendo dentro do Circuito Original de Música, já rolou no Semente essa semana e vai rolar no Lapa 40 Graus no dia 27 de agosto e no Democráticos no dia 9 de setembro. Tem foto de Seu Molequinho na exposição, e foi graças a você que tive o prazer de conhecê-lo naquele dia, junto com Tia Maria lá na Serrinha. Gostaria de te ver lá!
Beijão, Sandra Delgado
Júlio César, linda homenagem tio, precisamos nos ver mais. Um abraço do seu sobrinho.
Júlio Josué · Rio de Janeiro, RJ 30/1/2015 15:37Para comentar é preciso estar logado no site. Faa primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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