Fábula do casal moderno

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Vanessa Souza · Rio de Janeiro, RJ
21/2/2010 · 2 · 0
 

Ext. Santa Tereza – Dia

Bloco Céu da Terra. No meio da multidão, fantasiada de céu, vemos BIA. BIA está com uma latinha de cerveja e pula muito. Observando BIA, vemos CAIO. CAIO está vestido de Anjo. BIA sorri para CAIO.

BIA (V.O) – Tudo começou em um sábado de Carnaval, por volta das sete da manhã, acho. Eu estava na concentração do bloco Céu da Terra, em Santa Tereza. Livre, leve, solta e levemente bêbada. Vestida de céu.

CAIO (V.O) – Lá também estava eu, um anjo perdido na multidão urbana, ansioso para encontrar seu pouso. Sim! Era o meu dia de sorte. O céu finalmente sorriu para mim e eu deslizei em sua direção.

CAIO caminha em direção a BIA, encantado.

BIA (V.O) – Tudo seria perfeito se...

Um rapaz moreno, vestido de diabo, sem camisa e bombado, passa a frente de CAIO, aproxima-se de BIA e fala meia dúzia de palavras no seu ouvido.

CAIO (V.O) – O diabo não tivesse tomado a minha frente.

BIA olha para CAIO, dá um sorriso e beija o diabo moreno.

BIA (V.O) – Era Carnaval... E aquele moreno da cor do pecado tinha fogo de sobra. Era capaz de incendiar qualquer foliã, ainda mais uma cheia de álcool.

CAIO observa o beijo do casal.


Ext. Túnel Velho de Copacabana – Tarde

A scooter de BIA está enguiçada. BIA quica a moto para ver se pega, sem sucesso.

BIA (V.O) – Infelizmente, o combustível era pouco e logo terminou. Lá estava eu, completamente sozinha, com a moto enguiçada, na saída do túnel, cheio de carros passando, sol forte, queimando. Era o inferno, mas o diabo moreno não estava lá.

BIA desiste de quicar a moto e a empurra no canto da rua. Vemos CAIO de bicicleta, logo atrás de BIA.

CAIO (V.O) – Eis que surge o anjo dispensado no Carnaval, em sua prática diária de ciclismo.

CAIO – Oi.

BIA – Oi.

CAIO – Lembra de mim?

BIA – Não. Mas se você me ajudar com a moto, prometo não esquecer nunca mais.

CAIO – Pois é para já! Troca comigo.

CAIO larga a bicicleta e pega a moto. BIA carrega a bicicleta para ele.

BIA – Você é um anjo.

CAIO – Preferia ser o diabo. Foi ele que você beijou no Carnaval.

BIA sorri para CAIO.

BIA – Quem sabe hoje não é a sua vez?


Ext. Lagoa – Tarde

CAIO passeia na garupa da moto de BIA.

CAIO (V.O) – O caminho para o céu foi bem perigoso. Na garupa da moto da Bia eu recordei na marra todas as rezas aprendidas na primeira comunhão. Rezava para não morrer, rezava para viver um longo e apaixonado beijo, com ela.

BIA freia a moto.

BIA – Você me aperta forte assim porque está com medo ou simplesmente quer se aproveitar de mim?

CAIO – As duas coisas, pode?

CAIO sai da moto e beija BIA.

BIA (V.O) – Na hora que nossos lábio se tocaram, eu pensei... Putz! Esse menino precisa urgente de uma balinha de Hortelã.


Ext. Orla da Praia – Dia

CAIO carrega BIA na bicicleta.

CAIO (V.O) – Não sei em que momento comecei a gostar da Bia, a fazer planos conjuntos. Nada foi premeditado ou intencional. Ela simplesmente grudou em mim de uma forma que eu não pude me livrar.

CAIO estaciona a bicicleta. BIA corre em direção ao mar puxando CAIO pela mão. CAIO tira a camisa.

CAIO (V.O) – Se eu disser que o Caio faz meu tipo, estarei mentindo. Falta pegada, iniciativa, uns músculos naquele peitoral. Mas até que a gente funciona junto. O Caio é o meu fiel escudeiro, anjo da guarda. Está sempre a postos, aguardando o meu chamado, ansioso por um segundo da minha atenção.

CAIO e BIA se jogam no mar de roupa e tudo.

BIA dá um tapa na nuca de CAIO.

BIA – Boboíde molenga.

CAIO – Panaca magricela.

BIA – Ah, é? Eu vou te afogar, seu idiota.

CAIO – Até parece que tem capacidade para isso, sua estúpida.

CAIO e BIA brincam no mar. Parecem dois meninos bobocas.

CAIO E BIA (V.O) – Não quero me gabar, mas ele/ela sempre foi muito gamado(a) em mim.

CAIO abraça BIA. Tira uma caixinha de bala Mentos do bolso da bermuda e coloca na boca. Beija BIA. Estão apaixonados.


Int. Casa da Bia / Cozinha – Dia

CAIO lava as louças, cara séria, está chateado. BIA não está com ele.

CAIO (V.O) – Nossa primeira briga foi por um motivo bobo. A louça suja da casa da Bia. E quem iria lavar. Eu, lógico. Também tive que fazer o jantar.

CAIO pega a penela que acabou de lavar e faz miojo.

CAIO (V.O) - A Bia era, definitivamente, uma mulher moderna. E mulher moderna que se preze não cozinha. Fiz miojo para nós dois. Minha especialidade.


Int. Casa da Bia / Quarto – Dia

BIA trabalha no notebook enquanto come o miojo que CAIO lhe dá na boca. Ao lado do casal, uma bandeja com suco ADES e empanado.

CAIO (V.O) – Queria ser o namorado dela. Me tornei seu cozinheiro particular e não remunerado.


Ext. Rua Camuirano – Dia

CAIO sobe na garupa da moto e parte com BIA pilotando, sentido norte.

BIA (V.O) – Eu queria uma aventura, curtir a vida, mas acho que encontrei uma vaga de motogirl.


Ext. Rua da Passagem – Dia

BIA carrega CAIO na garupa da moto, sentido norte.

BIA (V.O) – Levava e buscava o Caio da faculdade.


Ext. Rua Jardim Botânico – Tarde

BIA carrega CAIO na garupa da moto, sentido sul.

BIA (V.O) – Levava e buscava do estágio.


Ext. Rua Camuirano / Prédio de BIA (V.O) – Noite

BIA chega de moto.

BIA (V.O) – Levava para a minha casa. E de lá ele não saia mais.

CAIO desce e entra no prédio.

BIA (V.O) – Comecei a ficar enjoada.

BIA estaciona e entra no prédio, meio desanimada.


Int. Casa de Bia / Quarto – Noite

BIA entra no quarto. CAIO surge de cueca preta, lencinho na cabeça e tapa olho de pirata. BIA sorri, surpresa.

CAIO (V.O) – Ela estava enjoando. Era hora de surpreender.

CAIO dança para BIA.

CAIO (V.O) – Naquele quarto desarrumado ela encontrou seu autêntico gogoboy, absurdamente sexy.

BIA (V.O) – Talvez ele estivesse um pouco fora de forma, mas...

CAIO (V.O) – A coreografia estava ensaiadíssima. Juro que o meu rebolado podia levar qualquer mulher a loucura.

BIA (V.O) – Ele nunca foi bom dançarino, robótico demais. Vestido de pirata, então, era de matar de rir.

CAIO (V.O) – Queria matar ela de prazer. Tantos planos maliciosos na cabeça.

BIA (V.O) – Tanto trabalho por fazer. Tive que quebrar o clima.

BIA foge de CAIO.

BIA – Preciso de um banho, amor. Já volto.


Int. Casa de Bia / Quarto – Noite

BIA trabalha em seu notebook, enquanto CAIO, pirata, dorme ao seu lado.


Ext. Rua da Passagem – Tarde

CAIO anda sozinho de bicicleta.

CAIO (V.O) – O pirata abriu mão do tesouro quando percebeu que aquele céu, que tanto o encantava, não estava pronto para recebê-lo, tinha estrelas demais por ali. Sozinho em sua nau, com o coração dolorido e os olhos lacrimejando, ele precisava continuar, seguir em frente.


Ext. Túnel Velho de Copacabana – Tarde

BIA carrega a moto enguiçada.

BIA (V.O) – Ela também precisava continuar, seguir em frente, mesmo que sem combustível. O pirata desnudo estava agora a rumar por outros mares, quiça para o Caribe em busca de novas aventuras. Céu nublado, gotas de de chuva no percurso.


Int. Casa de Bia / Cozinha – Tarde

BIA lava as louças enquanto faz miojo.


Int. Casa de Bia / Quarto – Tarde

BIA está deitada ao lado de uma panela de miojo, uma prato de empanados e uma caixa de suco ADES.

O interfone toca. BIA corre para atender.


Int. Casa de Bia / Corredor – Tarde

BIA – Oi. É você? Um instante, já estou indo.

BIA abre a porta e sai. Aperta o botão para abrir a porta. Sorri. Vemos um rapaz na porta do prédio. Não é CAIO.


Ext. Lagoa – Tarde

RAPAZ anda de moto com BIA na garupa. RAPAZ para a moto. BIA desce da moto. RAPAZ também desce da moto.

RAPAZ – Gostei muito.

BIA – Que bom.

RAPAZ – É isso mesmo que você quer? Te sinto um pouco insegura, receosa. Não quero forçar nada.

BIA – Relaxa. Eu preciso muito disso, você apareceu em ótima hora.

RAPAZ – Então... Qual é o problema?

BIA – Sei lá... frescura, acho. É que nós vivemos ótimos momentos, sabe? Aventuras inesquecíveis. E é muito difícil para mim abrir mão de tudo, começar uma história nova. Entende?

RAPAZ – Claro que sim. Mas... Então... Vamos logo para a sua casa consumar o negócio? Receio que você se arrependa e eu fique na mão, ou a pé. Você pilota.


Int. Casa de Bia / Cozinha – Noite

BIA joga os empanados e o miojo na lixeira.

BIA (V.O) – Vendi a moto. Sem a moto e sem pirata, perdi a vontade de viver. Decidi, então, fazer greve de fome. De banho. De pentear os cabelos. De lavar a louça. De varrer a casa. De escovar os dentes.


Int. Casa de Bia – Vários dias e horários

Música muito deprê, brega. Vemos que a casa está uma bagunça. Vários jornais e sacos de lixo espalhados. Tanque cheio de roupas para lavar. Louças na pia.


Int. Casa de Bia / Quarto – Dia

BIA olha para o seu notebook enquanto ouve a música deprê, brega. Cabelo despenteado. Roupa de dormir. Fecha o notebook. Se joga na cama e fecha os olhos.


Ext. Santa Tereza – Dia

Bloco Céu da Terra. Vemos uma multidão pulando. Céu e anjo, que não são CAIO e BIA, se beijam.


Int. Casa de Bia / Quarto – Dia

Ouvimos batidas na janela.


Ext. Rua da Casa de Bia – Dia

CAIO está na janela, vestido de diabo. Ele bate insistentemente.

CAIO (V.O) – Era Carnaval... Sábado, mais precisamente, dia do bloco Céu da Terra.

CAIO – Bia! Bia! Bia!

BIA abre a janela.

CAIO (V.O) – Insisti bastante até ela aparecer, abrir a janela... De início, fiquei um pouco decepcionado, o vi que não foi exatamente a visão do céu, ela estava meio... feia, descabelada. Mas como esse ano a minha fantasia não era de anjo...


Ext. Santa Tereza – Dia

Bloco Céu da Terra. No meio da multidão, fantasiada de inferno, vemos BIA. BIA está com uma latinha de cerveja e pula muito. Observando BIA, vemos CAIO. Caio está vestido de diabo. BIA sorri para CAIO.

BIA (V.O) – Tudo recomeçou em um sábado de Carnaval, por volta das onze da manhã, acho. Eu estava no meio do bloco Céu da Terra, em Santa Tereza. Comprometida, apaixonada, levemente bêbada. Vestida de inferno.

CAIO (V.O) – Lá também estava eu, um diabo encontrado na multidão urbana, feliz em meu pouso quente. Bia e eu nos beijamos longamente. Era Carnaval, o momento de viver todas as nossas fantasias. E nós vivemos... E vivemos... E vivemos... E vamos viver para sempre, ou até que a chama se apague. Fim.

Sobre a obra

Roteiro divertido sobre o encontro entre o Anjo e o Céu em um bloco de Carnaval.

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Vanessa de A. Souza
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