Palatins

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Eder Capobianco · Assis, SP
30/3/2014 · 1 · 0
 

Um dia as pessoas se questionavam se existiria vida em outro planeta, hoje talvez algumas achem que seria melhor se não existisse mesmo. Primeiro porque a raça humana é tida como um vírus, segundo que nada desse lugar interessa para nenhum tipo de vida. A cultura é descartável, a matéria prima de péssima qualidade e o recursos humanos incompetente. Nossa raça é tida como a escória do universo. Cem anos depois do primeiro contato (que não foi nada amistoso) com seres pensantes, de outros pontos do universo, sabemos que ele se deu por descuido. Sempre souberam que a pequena bola azul tinha uns modos de vida estranhos, e não queriam que eles se proliferassem e nem saíssem daqui.

Mariana estava de saco cheio de trabalhar para robôs. Sim, os Palatinianos não eram um corpo vivo, eram um monte de lata de mais de dois metros que se mexe. Era espantoso o revestimento externo de aço fundido retorcido. Não consigo me referir aquilo como pele. Faziam barulho quando andavam. Usavam um tradutor eletrônico universal de línguas que fazia a voz parecer com microfonia de guitarra. Acham repulsivo o ser humano transpirar, nojento comer e expelir qualquer tipo de merda orgânica. No contrato de Mariana estava explicito que durante toda sua estada em Palatins não poderia ter contato de nenhuma forma com seres de qualquer espécie. Ainda haviam se passado apenas seis meses de um contrato de dezoito.

Um dia lá contava com trinta e seis horas terrenas, das quais vinte e três de trabalho. Ela tinha que carregar um tipo de mineral comburente que era usado nas caldeiras que produziam uma espécie de silicone para reparos de outras máquinas. Mariana nunca entendeu como aquela pedra gosmenta pegava fogo. Tinha que encher um transportador com setenta quilos daquilo a cada três minutos. As leis para o trabalho fora da galáxia eram feitas na própria Terra, por terráqueos sem noção. Dizia que a cada cento e noventa minutos de trabalho havia vinte (Vinte!) de descanso. Nada de dia de folga. O salário só seria pago no retorno ao planeta de origem, e somente se o contrato fosse cumprido integralmente. Isso é, se a pessoa desistisse, morresse, ou descumprisse qualquer regra (como se negar a carregar uma sonda para armazenamento de merda), não recebia nada!

Para os Palatinianos isso tudo pouco importava. Na verdade eles sempre preferiram os Aultumbiakin. Não comiam, não expeliam dejetos orgânicos e o melhor, não transpiravam. Como ponto negativo eram mais caros, e contratando mão de obra terrena cumpriam acordos interestelares de mão de obra extra planetária. Os Aultumbiakinianos são infinitamente mais inteligentes que os humanos, por isso também ocupam cargos mais importantes, o que pode restringir a contratação desta raça para tarefas secundarias. Quando Mariana aceitou a proposta de emprego em Palatins o fez achando que nada poderia ser pior que trabalhar no corte de cana. Em pouco tempo descobriu que estava muito equivocada. Queria ela um sol escaldante na cabeça ao invés de uma temperatura ambiente de 65ºC. Na volta ela espera receber cerca de vinte vezes mais do que ganharia cortando cana no mesmo período.

Estas agências, que recrutam pessoas para trabalho escravo em outros planetas, não costumam mentir. Mostram vídeos reais de como são as condições de vida, depoimento de gente que não agüentou, que não queria aquilo nem para o pior inimigo. Mariana chegou lá como um viciado que entra numa igreja. Desesperançosa, desiludida, se vendo num beco sem saída, topando qualquer negócio. Aceitou ser servil aos Palatinianos por um ano e meio. Agora ela entendia melhor o termo “servidão†usado diversas vezes no contrato. Achou que não seria ao pé da letra. Achou que humanidade era um conceito universal. Triste erro. Um dos conselhos que lhe foi dado era para que desconsiderasse tudo que conhecia por educação, respeito, compaixão. A forma mais indicada de passar por estes dezoito meses era aprender a arte de não pensar, ignorar a própria existência.

No começo não parecia tão difícil. O trabalho era pesado, de fato. Porém ela nunca havia fugido do trabalho, ao contrário, desde os doze anos convivia com ele diariamente. As acomodações lamentáveis, sem dúvida. Mas em quantas boléias de caminhão, camas de bambu, relento, ela já tinha passado noites. Lá ela tinha uma caixa de metal de 3 x 3 metros com um buraco de ventilação de 20 x 20 centímetros.

Agora tudo parecia um inferno. Se algum sensor captasse uma conversa dela com outro humano não receberia nada. Qualquer contato voluntário: demissão. Estar em poder de qualquer item não autorizado: demissão. Desacato: demissão. Andar sem a sonda para resíduos: demissão. Improdutividade: demissão. Andar fora da fila durante deslocamento em massa: demissão. Tentativa de fuga: demissão e prisão na volta para casa.

A preservação ambiental também não é um conceito universal. Em Palatins tudo que não era necessário para sobrevivência da espécie palatiniana foi extinguido ou parou de ser produzido. A partir do momento em que toda alimentação passou a ser feita apenas de componentes sintéticos, qualquer coisa de origem orgânica ou animal passou a ser descartado e desconsiderado. Mariana estava farta de almoçar gosma e jantar comprimidos. Existem relatos de pessoas que enlouqueceram em busca de um mosquito ou qualquer outra coisa viva. Mas o que poderia viver naquele ambiente inóspito? Palatins não tinha sol, o dia era vermelho e seco, enquanto a noite era úmida e quente.

Um dia enquanto dormia na sua caixa Mariana escutou um barulho estranho vindo do lado de trás de seu box. Parecia alguém com mãos bem pequenas, com unhas compridas, arranhando o metal. Tinha um estranho, e familiar, zunido que acompanhava o ruído. Uma sensação de medo com curiosidade tomou conta dela. Sabia que era proibido circular entre os dormitórios naquele horário, além do mais, quem ousaria tentar fazer contato? Mariana se mexeu na cama, fazendo barulho o suficiente para que fosse ouvida de fora, e raspou as unhas no chão, tentando imitar o ruído. A idéia era fazer algum tipo de contato, mas a resposta foi o silêncio. Ficou inquieta, não sabia se existiam regras para o que tinha ocorrido. Começou a formular teorias e conspirar, quando foi surpreendida novamente. Agora o som vinha de sua porta. Levantou rapidamente, mas desta vez com cuidado para fazer pouco barulho, e foi até a entrada. O ruído continuou. Com todo esmero e calma possíveis para situação ela abriu a porta poucos milímetros, e a principio se assustou quando viu uma barata entrar em sua caixa andando para lá e para cá como uma louca.

Numa situação normal qualquer um pisaria na barata sem pestanejar. Mariana estava preocupada em pegar ela com a mão, em sentir algo vivo. Ao mesmo tempo queria evitar barulho, chamar a atenção. Por um instante pareceu-lhe que ela e a barata eram da mesma espécie. No momento em que conseguiu fechar ela na mão escutou passos vindos dos corredores. “Aconteceu alguma coisa?â€, pensou. Era a barata. “Como esta barata veio parar aqui?†Bateram na porta. Toc toc. Uma comissão de palatinianos estava na caça do pequeno inseto desaparecido. O animal estava dentro de sua mão, que jazia no bolso. Relatou não ter visto nada estranho. Não foi perguntada sobre ter visto uma barata, apenas se algo fora do normal aconteceu. Eram dois guardas e três palatinianos. Um deles tirou uma lanterna, que iluminou o caminho da barata de violeta, e ele parava entre a cama e a porta.

O clima na caixa de metal era de desconfiança. Um deles explicou para Mariana que a barata fazia parte de um projeto de estudo, fruto de uma parceria entre a Terra e Palatins. O contato com o bicho poderia ser fonte de doença e mal-estar. O que não falaram era que a experiência pela qual ela tinha passado envolvia manipulação genética de ética esquecida e tratamento radioativo. A barata era uma bomba suja. Numa conclusão tipicamente terrena, o cabeça de lata deu como certo de que Mariana tinha se assustado, matado a barata, e descartado ela numa das sondas para coleta orgânica. Eles saíram em direção ao fosso de descarte das sondas para tentar localizar os restos mortais.

Quando Mariana abriu a mão percebeu que a barata estava encolhida em sua palma. Podia jurar que ela a olhava com medo. Primeiro se surpreendeu com os movimentos lentos da barata. Nada de perninhas mexendo desordenadamente. Ela se sentava na cama ao mesmo tempo que a pequenina ia se virando vagarosamente e ficando de pé em sua mão. Até pode ser que muito tempo em Palatins enlouquecesse. Casos de delírios não eram raros. Mas qual a dúvida: se ela existia, ou se era inteligente? Por alguns minutos elas se encararam, até que a baratinha emitiu um grunhido. O susto de Mariana foi tento que ela fechou a mão. Preferia não escutar a ouvir a barata falar. Tinha certeza que ela ia falar. Falou? Quando pensou em tudo isso sentiu as moelas dela entre seus dedos. O espanto apertou sua mão mais do que deveria.

Mariana ficou ali, olhando a barata morta na palma de sua mão, em estado de choque. Bateram na porta novamente, mas desta vez não foram tão educados. Depois de três segundos sem resposta arrombaram a porta e encontraram Mariana chorando, com o animal morto da mão. Rapidamente um dos palatinianos imobilizou a mão de Mariana e a isolou com um saco. Outro aplicou uma injeção nela, que apagou. Como num movimento já maquinado, vários palatinianos entraram no cubículo e Mariana desapareceu entre eles. Depois disso nunca mais ouvi falar delas. Sua família recebeu um comunicado formal do governo palatiniano de que Mariana tinha cometido uma grave quebra de contrato e seria mantida em Palatins indeterminadamente.

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