A TRILOGIA DA CAIXA (ESCRITA PELOS IRMÃOS RENAN E VITÓRIA BARBOSA)
CONTO I: A POESIA DO HOMEM COMEDIDO
Nunca havia pensado ser capaz de escrever. Avesso à tecnologia, jamais imaginara que a tela do computador, fria e estéril aos seus olhos céticos, pudesse jorrar poesia com tanto vigor e fluência. Arriscara-se a enviar seus poemas para um daqueles milhares de sites dispersos na rede mundial, que reuniam bons e maus poetas, pretensos escritores, projetos de duvidosa literatura.
Quem é o verdadeiro poeta? Perguntara-se sempre. E agora se via tomado como referência: descoberto pela elite dos leitores de poesia, cultivado pelos crÃticos, dois livros publicados com impressionante vendagem, seus versos circulando livremente pela Internet.
Como a escrita se instalara em seu cotidiano? Por que ele, um simples gerente de concessionária? Vender carros fora até então o seu leitmotiv. Não viera da academia, nem mesmo era um bom leitor. E de repente a escrita se derramara em sua pele. Surpreendia-se por ter sobrevivido ao primeiro livro.
Já não vendia carros, dava conferências. E a editora cobrava os originais do terceiro livro. Recebera adiantamento, tinha um compromisso moral e financeiro. A poesia resiste aos contratos? Perguntava-se.
Um dia os seus dedos ganharam força no teclado. E suas dores e fantasias, que acreditava inferiores e diluÃdas no veio coletivo, projetaram-se na tela ganhando forma, ritmo, estrutura, beleza. Por que a poesia o escolhera?
Sua escrita era tão simples, tão despretensiosa. De manhã, padaria e banca de jornal, caminhada ao final da tarde, futebol às quartas, cinema aos sábados. Não bebia, nem se drogava. Não se aventurava na madrugada de Sampa, não conhecia artistas nem escritores. Ia ao teatro de vez em quando. Isso antes de lançar seu primeiro livro. Mas depois dele, sua vida mudara tanto assim?
Agora vendia biografia. A sua. Pagavam-lhe para contar sua vida a universitários e funcionários medÃocres e ambiciosos de empresas globalizadas. A platéia o escutava fascinada. E o talento de vendedor nessas horas vinha em seu socorro. Era pura retórica. Falava-lhes da glória da escrita, do prazer de ser invadido pela literatura, sobre a descoberta da criatividade. Se ele alcançara o sucesso, por que isso não poderia também lhes suceder?
Agora freqüentava o cÃrculo dos escolhidos: tivera um ensaio publicado na BRAVO. Sua poesia de cidadão comum caÃra no agrado do paÃs. Pasquale Cipro Neto o convidara para entrevista, Hebe transformara em sarau seu programa na noite em que ele lá esteve. Era apontado como o novo Drummond. Especulava-se sobre a sua indicação para a Academia Brasileira de Letras.
As aparições públicas o enfastiavam. Cansara-se dos recitais, das tardes de autógrafos, recusara-se a estrelar um comercial de uma revista e a participação numa novela. Algumas vezes era cumprimentado na rua, perdera-se do anonimato. Desde quando o paÃs aprendera a reconhecer seus poetas?
De resto, descansava. Respondia ele mesmo os e-mails que lotavam o seu site. Participava de eventos interativos, procurava saber o que era arte digital. E lia. Cada vez mais. A leitura devorava suas horas. E só vez em quando lembrava que tinha um corpo, um sexo, necessidades, desejos. Mas não era dado a orgias e experimentalismos eróticos. Trepava, quando possÃvel. Namorava, à s vezes. Apaixonava-se tardiamente, em descompasso: poucas vezes retribuÃdo, mas sem rasgos d’alma ou sofrimentos desmedidos. Aprendera a esperar. Que o amor viesse, não lhe fecharia as portas, não se furtaria aos sobressaltos. Ao fim, concluÃra que o amor não era um terreno fértil para sua inspiração.
“A poesia do homem comedidoâ€, dissera Fernando Bonassi, num artigo sobre a sua obra, publicado no caderno Mais. Frase inteligente e elegante, que tanto podia ser elogio como ironia. Não tinha as medidas exatas do êxito, mas não as aspirava. Também não era um homem prático. Fragmentava-se num caleidoscópio de dúvidas. Era capaz de ficar horas contemplando vitrines, gôndolas de livros, sem conseguir decidir-se. Oscilava entre estantes de pensamentos, embora não fosse afeiçoado ao caos. Mas talvez nisso se parecesse com a maioria das pessoas: nem louco, nem santo.
Foi então que recebeu a caixa. Deixada em seu escritório por um motoboy anônimo. Sem recibo de entrega, sem identificações, sem remetente. Uma caixa quadrangular, na qual caberia um boné mas não um chapéu, com tampa, de papel cartão branco. Lisa, limpa, clara. E dentro, o vazio. Uma caixa em branco. Após examiná-la detalhadamente, procurar pistas, quem sabe algum bilhete dobrado e oculto, sinais de elementos tóxicos, e nada encontrar, teve um primeiro Ãmpeto de jogá-la fora. A caixa do nada, foi como apelidou-a naquele momento. Ia amassá-la, para que coubesse no cesto de lixo, quando subitamente desistiu. A caixa do nada já o cativara.
Foi para casa segurando firmemente a caixa. Nunca mais a largou. Divertia-se a contemplar suas paredes brancas, seu interior bem delimitado e cheio de ar. Quando oprimido, fechava-a. Quando ansiava por liberdade, deixava-a respirar.
Nada havia de original na sua caixa, mas sua convivência com ela trouxera-lhe energia e Ãmpeto desconhecidos. Tornou-se em pouco tempo o seu objeto de estimação. Desistira de procurar o remetente. Possivelmente, alguém preocupado em agradá-lo. A caixa mudara sua vida. Nela cabiam seus sonhos, suas angústias, suas verdades novas, seu passado e seu futuro.
Foram os abundantes poemas sobre a caixa que lhe deram o seu terceiro volume. Sucesso imediato. Nunca um livro de poesia vendera tanto na primeira edição. A editora pagara-lhe férias na Europa, o provedor do site lhe enviara um carro popular, que ficou solitário na garagem. Preferia andar de táxi e de metrô. Sempre com a caixa junto de si.
Estivera no programa do Jô, para explicar ao balofo sua estranha relação com o retângulo de papel. Um dia recebera proposta, recusada, para exibir sua caixa na capa de Caras. Os outros escritores faziam comentários malévolos, invejosos e debochados, publicados amplamente, da coluna da Joyce à Cult. Todos tinham algo a dizer sobre o poeta da caixa, como passou a ser conhecido. Em geral acusavam-no de impostor e golpista, chegou a ouvir insultos nas ruas.
A caixa não resistia imune a tantos trajetos. Estava suja, amassada, velha, mas ele a protegia. E a amava. Era o seu desdobramento, sua outra metade. Uma noite, foi com sua caixa ao cinema. Descendo a Augusta em direção ao Espaço Unibanco, viu-se jogado ao chão por um raio e constatou, ao recobrar-se, que estava só. O raio, um menino de rua, corria numa velocidade impressionante e logo desapareceu, enquanto ele jazia aturdido em frente ao Frevo. Ninguém o ajudou a levantar-se. Poucos viram a cena e nem sequer captaram a dimensão trágica do fato. Sua caixa fora covardemente roubada.
Era um homem sem posses, sem companheira, sem esperança. Tudo se fora com a caixa. Daà à depressão foi rápido. Não saÃa de casa. Desligou o telefone para fugir do assédio da imprensa. Seu editor o visitou, arrastando-o em seguida a um psiquiatra. Não fez uso das medicações prescritas, deixou de comer. Espalharam-se os boatos de que enlouquecera. Outros garantiram tratar-se de uma covarde estratégia de marketing. A vendagem dos seus livros caiu. A editora exigiu de volta o dinheiro adiantado para o quarto livro, o provedor retirou o seu nome da lista de personalidades. Esqueceram-no em pouco tempo, mas o anonimato não o incomodava.
Um dia conseguiu sair da cama e se atirou do alto do prédio, onde havia um terraço. Do bolso, enquanto voava rumo ao solo, caiu um bilhete: “Abstinente da poesia e convencido de que só os poetas conhecem os mistérios de Deus, resolvi encontrá-lo, antes que a morte em vida me subtraia o que tenho de mais precioso: a memória da caixa. Não me lamentemâ€.
Nem os obituários dos jornais mencionaram sua viagem.
Renan Barbosa
CONTO II: SÓ OS POETAS CONHECEM OS MISTÉRIOS DE DEUS
Estava caminhando sem saber para onde. Estava caminhando aborrecida pela vida. “Navegar é preciso, viver não é preciso†- era o que cantarolava em silêncio, repetidamente. Viver não é preciso. Caminhar é preciso. Viver. Caminhar. Preciso. Caminhava olhando para o chão.
Cansada, achou providencialmente um banco, numa praça obscura entre grandes avenidas. Sentou-se e continuou olhando para o chão. Nada tinha importância, isso sim é que era preciso. Viu um papel dobrado, descolorido, desimportante. Contemplou-o por um certo tempo até tomar a decisão de apanhá-lo. Segurou-o ainda por um outro tempo até abrÃ-lo. Encontrou palavras:
“Abstinente da poesia e convencido de que só os poetas conhecem os mistérios de Deus, resolvi encontrá-lo, antes que a morte em vida me subtraia o que tenho de mais precioso: a memória da caixa. Não me lamentemâ€.
Sentiu uma espécie de vibração. Encontrou algo, encontrou palavras, palavras que lhe chegaram com força. Aquela mensagem parecia ter algo de morte. Mas a ela, aquilo a preencheu de vida.
As mãos estavam trêmulas, assim como estava trêmulo um sorriso que insistia em brotar nos músculos entorpecidos de sua face. Não percebeu que passou horas degustando as palavras, menos por compreensão que por prazer.
Após o perÃodo de contemplação passou a especular: quem teria escrito aquelas palavras? Estaria vivo seu autor? Era de fato uma despedida? Era um texto original ou apenas uma cópia despretensiosa? Mas o que mais lhe causava indagações era a caixa. Que diabos de caixa seria aquela? Olhou em volta, procurando-a. Olhou em vão. Foi inevitável lamentar, não o autor, como era o recomendado no bilhete, mas ao que ele deixara de explicar: a caixa, não ela exatamente, mas a sua memória.
Lembrou-se de que também ela tinha uma caixa. Uma lembrança que veio acompanhada por lágrimas. Uma memória de dor. Cruzou os braços sobre o ventre, apertando-o, e curvou-se como se sentisse contrações. Por fim, encolheu-se, deitada no banco, e adormeceu. Na mão esquerda, apertado, estava o enigmático bilhete.
Quando abriu os olhos, deparou-se com o céu
...só os poetas conhecem os mistérios de Deus,
A frase parecia estar colada nele.
Estava tranqüila. Agora poderia suportar a memória de sua caixa.
antes que a morte em vida me subtraia o que tenho de mais precioso
A memória de sua caixa:
Desde cedo foi considerada esquisita. Desde cedo achou a vida esquisita. Desde cedo estabeleceu com as palavras o único elo possÃvel entre ela e a vida. Desde cedo achou que guardar suas palavras em uma caixa era uma forma de se sustentar na vida.
Era uma caixa grande. Com o passar do tempo, passou a decorá-la externamente com recortes de revistas. Dentro, seus escritos: em guardanapos, em papel de embrulho, nas folhas arrancadas dos cadernos, em qualquer papel.
A caixa era o seu porto seguro. Era tomada de serenidade quando dela estava próxima. Uma relação visceral de amor. Da caixa dependia sua sobrevivência.
...só os poetas conhecem os mistérios de Deus,
Pouco falava com as pessoas, pouco escutava a gritaria de sua intranqüila famÃlia. Só ela e a caixa. Ao seu lado chorava, ao seu lado silenciava sem que isto fosse motivo de inquietação. Sua caixa e ela.
Foi num dia como aquele no qual achou o bilhete, foi num dia como aquele em que caminhava sem rumo, que sentiu uma batida surda em seu peito, como se não pudesse mais respirar. Voltou para casa movida pela aflição. Sentiu cheiro de fumaça, ficou tonta, as pernas pareciam não lhe obedecer, era como se não fosse possÃvel chegar até a caixa. Sentia o suor gelado, sentia a aniquilação e a agonia de não saber gritar: sua caixa fora queimada por algum infame parente.
Dali em diante, somente lembrava que estava em um hospital. Um hospital para loucos. Alguns dias após sua fuga, vagando pelas ruas, vivendo de sobras e latas descartáveis, encontrou o bilhete.
Eis a memória de sua caixa.
Abstinente da poesia
Chorou e gritou. Chorou e gritou com todo o seu corpo a sua caixa. A memória de sua caixa.
Ninguém a lamentaria.
(VITÓRIA MARIA BARBOSA)
CONTO III: RANCOR
Quando deitou os olhos sobre aquele fiapo de gente, branco e frágil, com olhos esgazeados e boca voraz que parecia querer exaurir o peito da mãe, lamentou-a. Fora traÃdo? Não saberia. Mas depois que a menina nasceu, nunca mais se deitou com a mulher. Decisão fortalecida pela notÃcia de que o parto agoniante lhe tirara a capacidade de gerar outros filhos.
Ele mesmo construÃra a casa onde moravam. Poucos cômodos, feia, pedindo novos reparos, alardeando sua pobreza e sua inabilidade para a vida. Não gostava de se aperceber dos fracassos. Para não sentir medo ou desapontar-se de si mesmo, recorria à cachaça dividida com os colegas da rua, fodidos como ele, satisfeitos por boiar na vala do esquecimento coletivo.
A famÃlia vivia amontoada, despida de qualquer privacidade. Com ele, trouxera a mãe viúva, doente e resmungona. Com a esposa, vieram a irmã, a filha da irmã e os filhos da filha da cunhada. Aquelas mulheres, exalando perfumes, vontades, enxaquecas, cólicas mensais, torturavam-no cotidianamente, como um corte que nunca pára de sangrar.
Mas nada inflamava tanto o seu ódio como aquele bebê. Uma menina estranha, sempre fitando-o de muito alto, denunciando sua “insapiênciaâ€. Muitas vezes pensou em matá-la. Seria fácil e pareceria acidente. Entretanto, ela parecia adivinhar seu projeto e à s vezes até sorria, como pedindo que a deixasse viver. No resto do tempo, chorava. O peito reclamando liberdade, buscando o ar que não existia naquela casa insalubre, a asma levando a mãe ao desespero, vagando com a pequena mazela nas filas do SUS.
Contrariando as profecias fúnebres da vizinhança, ela cresceu. Sempre pelos cantos, isolada, afrontando-o com sua dissimulação e sua frieza. Nunca o chamou de pai. Nunca o abraçou. Era feia. Se fosse mesmo sua filha, teria herdado seu olhar escuro, sua pele morena, seus lábios grossos, suas mãos largas, acostumadas à pá e ao cimento.
A mulher, a adúltera, a sonsa, não reclamava sua ausência na cama. Agora passava os dias na igreja, entregando aos obreiros o que ele ganhava nos andaimes. Ainda havia sua mãe, cada vez mais confusa, a cunhada inútil, gemendo com as dores da fibromialgia, e o circo de crianças. Gritaria, sujeira, choros e palmadas, e o silêncio da filha. Dedicada aos estudos, sempre com lápis e papel na mão, rabiscando coisas que ele nunca leria porque desconhecia as palavras. Carregando livros mais pesados que ela, vagando pelas bibliotecas como outrora vagava pelos hospitais. Ainda tinha crises de asma, mas já não sofria como antes.
Um dia apareceu com uma enorme caixa de papelão, onde passou a depositar seus papéis enigmáticos, segredos que ela não compartilhava com ninguém. Odiou-a ainda mais. Por guardar aquela fortuna de letras, por ignorá-lo tanto mais quanto aumentava sua devoção à quele baú de ocultações. Como aquilo podia ser mais importante que a própria famÃlia? Ela não trabalhava, insistia que isso atrapalharia seus estudos. Nenhum namorado, nenhuma amiga, nenhuma festa de onde voltasse tarde para merecer castigo. De vez em quando flagrava-a espreitando-o. Aqueles olhares turvos, amarelados, pareciam reivindicar um pai que ele jamais seria. A caixa sim, era amada por ela.
Esperou a oportunidade de vingar-se. Num dia em que todos estavam fora, levou a caixa ao quintal e incendiou-a. Ela chegou transtornada, como se já soubesse do ocorrido. Em silêncio, contemplou por alguns segundos as cinzas, e em seguida libertou os gritos de uma vida inteira. Tremia, corria pela casa quebrando objetos e rasgava-se com as próprias unhas. Os outros nesse momento regressavam da igreja. Assustaram-se, tentando em vão contê-la. Devia estar louca ou drogada. PolÃcia e ambulância foram convocados. Do pronto-socorro foi imediatamente levada para um manicômio. Sem pronunciar palavra, segundo lhe contaram, com um olhar que era puro rancor. Torcia para que apodrecesse lá, mas o médico prevenira-os de que seria uma internação curta. A vergonha que lhe causava é que devia ter sido breve. Mas não, já durava mais de vinte anos. Nunca iria perdoá-la. Apesar disso, estava pensando em visitá-la no domingo, e levar as crianças.
(RENAN BARBOSA)
Renan Barbosa é médico psiquiatra, cantor e compositor de MPB. Mora em São Paulo.
Vitória Barbosa é psicóloga, doutoranda em Saúde Mental e mora em Campina Grande (PB). Inspiram-se mutuamente e estão escrevendo um livro de contos a quatro mãos.
Os contos estão bem legais... mesmo!
Mas não ficariam mais felizes e confortáveis no Banco de Cultura, junto com outros contos e espécimes poéticos, artÃsticos e lÃricos? Talvez fosse uma boa republicá-los lá no Banco de Cultura. Lá eles terão, com certeza, meu voto.
Abraços do Verde.
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