A letter to nowhere

1
PauloZab · Macapá, AP
13/3/2006 · 6 · 1
 

Está completando quatro anos desde aquele dia complicado em que recebemos aquele telefonema quase no inicio da madrugada pedindo para que nós comparecêssemos na UTI onde a senhora estava.
Lembro-me que quando saímos de casa já havia pouca esperança de não ser o que esperávamos. Estávamos certos. Aquele corredor escuro onde no final só dava pra ver a luz que passava pelas frestas da porta não me saem da cabeça. Eu sabia que isso ia acontecer no momento da caminhada.
Dias antes, quando lhe estavam conduzindo para a ambulância e a senhora, em meio a todos os familiares que estavam lá, olhou pra mim, estendeu seu braço com a dificuldade que a doença lhe proporcionara e se despediu. "Tchau meu filho" a senhora disse, mas depois eu ainda lhe visitei mais uma vez, lembra? Estavas sob efeito de todos aqueles remédios, seus olhos estavam turvos e eu, que era muito religioso, li aquele trecho da bíblia e a senhora pareceu entender.
Queria dizer que depois que a senhora se foi a sua casa começou a ficar cada vez mais vazia. Não temos mais aquelas visitas dos tios, tias, primos e primas e nem aquela tradicional reunião de família no dia das mães. Papai ficou comigo por um pouco mais de tempo. Ele estava aqui quando passei no vestibular, sabia que ele chorou? Incrível não é? Mas ele também já teve que ir, se fosse o caso eu perguntaria se não tem visto ele por aí, tens?
Estarei formado no final do ano que vem, mas confesso que não terá graça nenhuma. A quem eu devo agradecer? Sentiria-me melhor se a senhora fizesse aquela visita nos meus sonhos, o que acha?
Sabe de uma coisa? Eu tenho saído bastante e descontado todas aquelas vezes em que a senhora não me deixou sair de casa, iniciar a jogar bola, empinar rabiola e todas aquelas coisas que o pessoal da minha idade fazia. Não tenho mais aquela preocupação de chegar tarde em casa ou até mesmo dormir fora sem avisar, mas também nunca tem comida pronta quando eu chego e as minhas roupas estão sempre sujas e amassadas. Lembra daquela sua empregada de anos e anos? Nunca mais a vi, foi embora há muito tempo.
Até hoje eu me pergunto como fiquei curado daquela asma e eu nunca mais senti aquela dor estranha no coração e acredito seriamente que aquele diagnóstico que me dava o prazo de vivencia até os trinta anos não tem mais validade, acho que vou passar dos sessenta.
Lembra daqueles impulsos que eu tinha? Também passaram. Pessoas que conhecem essa parte da minha história achavam que eu poderia ter algum problema de relacionamento social, mas agora eu já descarto essa possibilidade.
Às vezes eu sinto falta de acreditar que a senhora está toda vestida de branco com uma aureola na cabeça ao lado de milhões iguais a senhora e contemplando uma luz intensa no meio de um jardim florido e não que seus pensamentos se transformaram em energia quântica e que seu corpo simplesmente passou a compor a massa total do planeta sendo transformado em carbono. Não me culpo por isso porque acabei canalizando parte destas crenças para o nosso plano. Procuro tratar as pessoas em detrimento de mim mesmo às vezes, pois sei o quanto posso suportar, eu acho.
Olha, vou lhe confessar uma coisa. A senhora já não faz tanta falta assim, também pudera, pois já se passaram quatro anos e ninguém permanece o mesmo depois desse tempo. Também seria egoísta se lhe culpasse por uma coisa destas, sei que a senhora resistiu até o fim e que não pode mais fazer nada.
Mostraram-me alguns universos paralelos, lhe procurei lá, mas não encontrei, vi algumas figuras, mas nenhuma parecida com a senhora.
No mais eu continuo lembrando daquelas suas frases montadas. Lembra daquela sua onde dizia que estava escrito da bíblia que do ano 2000 não passará? Acho que a senhora estava enganada, pois a senhora viu que o mundo não acabou depois disso e nunca vi isso escrito lá. Ninguém mais me chama de Paulinho, já era tempo!
Vou me despedindo por hora, desejo um feliz aniversário de quatro anos de sua despedida pra todos nós. O seu nascimento era comemorado no dia 26 de Dezembro não era? A senhora mesmo me falou que era por isso que seu nome era Maria Natalícia.

Humano, Demasiado Humano.*

É belo guardar silêncio juntos
Ainda mais belo sorrir juntos -
Sob o tema do céu de seda
Encostado ao musgo da faia
Dar boas risadas com os amigos
Os dentes brancos mostrando.

Se fiz bem, vamos manter silêncio;
Se fiz mal - vamos rir então
E fazer sempre pior,
Fazendo pior, rindo mais alto
Até descermos a cova.

Amigos! Assim deve ser? -
Amém! E até mais ver!


*Citado do livro de Friedrich Nietzsche.

compartilhe

comentários feed

+ comentar
Thiago Camelo
 

Oi Paulo! Acho que seu texto ficaria melhor lá na seção Banco de Cultura o site. Dê uma olhada no espaço AJUDA que você vai entender melhor os critérios de divisão de espaços do Overmundo.

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 13/3/2006 11:47
sua opinião: subir

Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.

veja também

filtro por estado

busca por tag

revista overmundo

Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!

+conheça agora

overmixter

feed

No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!

+conheça o overmixter

 

Creative Commons

alguns direitos reservados