A literatura dos Maxakali do Vale do Mucuri em MG

Foto de divulgação: Todos os Direitos Reservados
1
cbicalho · Belo Horizonte, MG
12/3/2006 · 149 · 1
 

Muita gente ainda não sabe, mas em Minas vivem pelo menos oito nações indígenas. São elas: Maxakali, Pataxó, Krenak, Xacriabá, Xucuru-kariri, Pankararu, Aranã e Kaxixó.

Os Maxakali surpreendem por ainda preservarem língua, religião, costumes e outros aspectos tradicionais de sua cultura como nenhum outro. Pouco mais de mil pessoas, sendo a maioria da população de crianças, eles falam a língua Maxakali, do tronco lingüístico Macro-Gê, família Maxakali. Vivem em reserva no Vale do Mucuri, no nordeste do estado, abrangendo dois municípios. No município de Bertópolis fica a aldeia de Pradinho. No de Santa Helena de Minas, a de Ãgua Boa.

Povo tradicionalmente semi-nômade, caçador e coletor, é comum alguns grupos de poucos indivíduos abandonarem a reserva para longas peregrinações, muitas vezes chegando até Governador Valadares (onde há um centro de assistência aos índios mineiros), distante mais de trezentos quilômetros de suas terras. Seus ancestrais costumavam vagar por uma extensa área que abrange, além do nordeste de Minas, o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo, até acontecer o contato com o colonizador europeu, e a conseqüente diminuição de seu território, para enfim acabarem confinados em reserva.

A primeira notícia que se tem destes índios é do século XVII, quando, aliados aos Patachós, lutam contra seus inimigos ancestrais, os denominados Botocudos, termo que abrange vários outros povos que habitavam o mesmo território, dentre eles, os atuais Krenaks.
A afinidade com os Patachós vai além. Suas línguas se parecem em muitos aspectos, sobretudo no vocabulário. Guardam semelhanças também nos traços físicos. Além do mais, em língua maxakali há a palavra pataxó que quer dizer “papagaioâ€, sendo que a organização social deste povo se dá em clãs totêmicos. Sendo assim, conjetura-se se o povo Pataxó não seria um antigo clã maxakali do Papagaio que em tempos muito remotos se teria separado e dado origem a outro povo com características próprias, mas ainda mantendo alguns traços de identidade. Eis uma questão.

Os Botocudos haviam formado, associados aos Bantos africanos, a Confederação dos Guéren (Guéren era outra denominação dos Botocudos) na intenção de defender suas terras da invasão dos bandeirantes. Lutando do lado do exército, os Maxakalis se abrigam nos quartéis, se tornam soldados ou canoeiros entre Belmonte e Araçuaí. Só mais tarde dão as costas aos militares e retornam às matas. Perambulam pela região, sofrem massacres, até que no começo do século XX fixam-se no território que ocupam até hoje.

Aqui não cabe aquela visão idealizada de índios nus vivendo isolados no meio das matas sem contato com a chamada “civilizaçãoâ€. A maioria deles vive próxima a cidades do interior e mantém contato constante com a população envolvente. Mas a cultura indígena resiste com vivacidade.

Atualmente os povos indígenas de todo o Brasil realizam uma revolução educacional. Desde a Constituição de 1988, que assegura às comunidades indígenas “a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagemâ€, os governos estaduais deram início a programas educacionais diferenciados direcionados a estes povos. Em Minas em 1995 teve início o Programa de Implantação de Escolas Indígenas, que já formou turmas de professores indígenas em nível de magistério, dos quais 130 foram aprovados em dezembro no primeiro Vestibular indígena da UFMG.

Como conseqüência dessa nova proposta educacional para os índios, sua cultura está se transformando em livros, CDs, filmes, até mesmo para que as crianças índias tenham material didático a ser usado nas escolas.

A literatura maxakali

Os Maxakalis possuem um rico e extenso acervo literário composto de narrativas tradicionais, cantos, causos, depoimentos, anedotas, piadas etc. Tradicionalmente oral, essa literatura agora ganha as páginas de livros bilíngües e ricamente ilustrados.

A língua Maxakali possui escrita. Na década de 1960 missionários norteamericanos viveram entre os índios, aprenderam sua língua, instituíram uma escrita alfabética e alfabetizaram alguns índios. Este foi o germe da literatura que surge hoje em dia. Os professores das escolas indígenas, que normalmente são os autores dos livros, cartilhas, atlas e outras publicações, usam a língua escrita maxakali para contarem suas histórias e transmitirem seus conhecimentos às novas gerações, ao lado do tradicional e eficiente método oral.
É uma produção literária inédita em que pela primeira vez os próprios índios são os responsáveis pelo registro de sua tradição, visão de mundo, e formas artísticas.

Assim, surgem obras como O livro que conta histórias de antigamente, o primeiro livro maxakali, que apresenta narrativas mitológicas, depoimentos históricos e sobre o cotidiano nas aldeias, receitas de comida e remédios. Ou o Livro de cantos rituais maxakalis, que registra cantos tradicionais, os yãmiy (fala-se “iãmiâ€), como são chamados, celebrados em suas cerimônias religiosas, chamadas yãmiyxop (“iãmichopâ€). Verdadeiros hinos à natureza, seus elementos e processos, tais cantos são poemas singelos. Cantados durante toda a noite em rituais que incluem dança e música, e em que os participantes usam pintura corporal e comemoram com a ingestão de bebidas e alimentos, os yãmiy (sendo esta a palavra que designa também os espíritos de sua religião) são homenagens aos deuses indígenas: animais terrestres, aquáticos, pássaros, insetos, espíritos de ancestrais, etc.
Uma mostra do Livro de cantos rituais:

CANÇÃO DO MARTIN-PESCADOR PEQUENO

Mãm xexex nãg õh
Mîm tappo tu xip
Nûixokã xip
Mõ kuk yokku kox
Mãm yok xi nûy mõh
Mãm yok mãy hã xip
Kuk puma ãmep
Nûy kuko pumõ
Nûy kuk mãg pamõ
Peko xomã mõ
Kuk xeka tu nû îxox

Tradução:
O martin-pescador pequeno
Está na árvore seca
Ele desce no rio
Mergulha na água
Pega um peixe
E o come pousado
Corta caminho entre morros
Vai rio abaixo
Vai rio acima
Voa entre o céu e a terra
Desce no rio grande

A língua e cultura maxakali é um patrimônio não só dos índios, mas de Minas e do Brasil. Sua literatura é um rico registro, não apenas artístico, mas também histórico e social.

Pesquisadores de várias instituições atualmente se debruçam sobre este ainda pouco conhecido aspecto de nossa cultura, transformando assim uma realidade, pois é comum que o saber gerado por pesquisas sobre as raízes brasileiras se origine de mãos estrangeiras. A produção do conhecimento, as coisas e valores de nossa terra devem ser domínio do povo que aqui vive.

compartilhe

comentários feed

+ comentar
Hermano Vianna
 

Charles: o texto é muito bacana. Só falta uma coisa: no lugar para o crédito da foto você colocou uma legenda. Precisamos do crédito. Lembrando: colocando qualquer conteúdo no Overmundo, você está automaticamente licenciando-o em Creative Commons. O autor da foto tem que concordar com isso. Se for foto de divulgação colocar no crédito: "Foto de Divulgação. Todos os Direitos Reservados". Muito obri

Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 11/3/2006 18:02
5 pessoas acharam útil · sua opinião: subir

Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.

filtro por estado

busca por tag

revista overmundo

Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!

+conheça agora

overmixter

feed

No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!

+conheça o overmixter

 

Creative Commons

alguns direitos reservados