Em dois livros – Dançando com Sapatos que Incomodam e móbiles [hestórias e considerações] – Luciano Bonfim se revela um escritor inventivo, versátil, que sabe se desviar do lugar-comum da literatura, da narrativa tradicional e linear.
O contista não somente se vale da intertextualidade, ao colar trechos de obras clássicas ou contemporâneas, dar-lhes outra roupagem, como presta homenagem a alguns dos Ãcones da Literatura, ao conceber novas formas a fragmentos de suas criações, como em “O Cálice dos Desesperadosâ€, numa recriação substantiva de um momento da Metamorfose de Kafka, como se lê aqui: “Até que um dia deparou-se com aquele monstro horrÃvel, e sentiu mesmo uma imensa vontade de esmagá-loâ€. Em “combinações aleatórias†as homenagens a escritores são claras. Nelas e no processo de diálogo intertextual, Luciano vai dos clássicos (Sören Kierkegaard, Juan Rulfo, Clarice Lispector) aos mais novos, como Caio Fernando Abreu e Jorge Pieiro.
Afeito à intertextualidade, Luciano sabe dialogar com outros textos, não somente os literários. Ao se aproveitar do recurso intertextual, ele o faz muito mais conscientemente do que inconscientemente, como se vê ao citar nomes e tÃtulos de obras.
O contista demonstra afinidade não somente com escritores, mas também com compositores e pintores, como é o caso de Van Gogh. “Ilustração†se inicia assim: “No campo os girassóis lembram um certo pintor holandês ridicularizado em vidaâ€.
Luciano também se socorre muito da descrição, que vem do seu amor à pintura e ao desenho. Como neste trecho de “Variaçõesâ€: “Existe, após as casas, um imenso terreno baldio e um pequeno sÃtio onde cultivam flores e hortaliças; também possuem uma colméiaâ€.
Vejam-se as imagens, pinceladas, descrições em “Após a Neblina Cinzenta do Crepúsculoâ€, cuja poesia se inicia no tÃtulo: “Em toda a sua extensão a nossa vila turva-se de vermelho, rosa, roxo, verde, florais – estampas de um enorme e denso colorido. A lua nestas noites, desde as primeiras horas, talvez influenciada por tantas mudanças, compõe-se bordô, – reforçando detalhes e apagando eventuais manchas que possam dissimular imagensâ€. O próprio narrador (“Naquela mesma lua, na espessa calda que recobre a noite, os traços de Zuita Benoar ganham uma conotação cada vez mais confusa – aspecto de rascunho engolido pela paisagemâ€) se encarrega de enfatizar a tendência de Luciano pelo desenho, pela pintura, pela paisagem. Em “Aves de Arribação†(clara homenagem a Antônio Sales) se lê: “Durante algum tempo, a corda tensa no espaço e o corpo oscilando suspenso no ar, permaneceram compondo a paisagem, tendo o desvão azul e frio do céu como fundo arbitrário de imagem†(grifo nosso). Em “Estúpido Cupido de Giz†(absorção de parte da letra da música de Neil Sedaka, na voz de Celly Campello, gravada em 1959) outra descrição, outra pintura: “O firmamento é um imenso prato raso, onde todos os canais noturnos do inferno astral convergem para além do firmamento blueâ€.
Em Luciano há muita poesia, sobretudo nas metáforas, que são abundantes: “Numa noite difusa, silenciosamente, as casas devoraram os seus moradoresâ€. E, se não são metáforas, estamos diante de pura literatura fantástica. Veja-se a poesia deste excerto: “Não me encontrando [em meu coração] especializei-me em vislumbrar abismosâ€.
Dois de seus personagens – Margot e Gaspar – aparecem em diversas composições, o que levaria o leitor a imaginar a construção de um romance. Talvez houvesse essa pretensão no escritor. Porém em nenhum momento se percebe nos “móbiles†ou nos “passos†do primeiro livro o espÃrito de romance.
Em “Terceiro Caderno†o ser fictÃcio está perdido e nem sabe como narrar, ou o que narrar. O de “Não Existe Apenas uma Forma de Amor & Prazer†mais se assemelha a ensaÃsta, num ensaio do amor e do prazer carnal. Em “Segundo Rascunho†o narrador-personagem está em completa solidão, desespero: “As ruas não estavam desertas, eu estavaâ€. Em “Sobre Naturezas Humanas†o tema central é o ser humano, como a dizer: “Assim são os humanosâ€. Em “Por Causa do Gato Lilásâ€, cujo protagonista é um animal, “Tarsila, uma gata siamesa, que conviveu conosco por alguns dias, apaixonou-se pelo ‘gato lilás’ de Aldemir Martins – uma reprodução da tela que possuÃmos em casaâ€. Seria a felina também pintora? Em “Correspondência Violada†o tema é a solidão do escritor, os sonhos literários, e seu cotidiano doméstico.
Em muitas peças nada se vê de descrição ou mesmo de informação geográfica. No entanto, aqui e ali se percebe como espaço das ações a cidade do interior. “Sina†é todo composto de referências ao ambiente rural, em vocábulos e expressões de uso comum no sertão. “Viúva de Marido Vivo†também retrata o ambiente de pobreza, a seca. Em “Apesar de.†“Uma pequena chuva ainda insiste, e desliza pelos telhados da pequena cidadeâ€.
A chuva é outro elemento freqüente na obra de Luciano, talvez exatamente em face da escassez dela no Ceará. Em “Blues da Finitude.†se lê: “Uma pequena chuva, dessas que não divergem opiniões e nos estimulam ao sexo, lambeu por toda a noite a cidade insoneâ€.
Um conto só é bom se tiver um bom desfecho. Como em “Negócios Importantes para o Futuro da Empresaâ€: “Dali a pouco, ela pegaria a sua filha no colégio e eu me encontraria com o seu marido, para tratarmos de negócios importantes para o futuro da empresaâ€. Belo deslinde, inusitado, embora realista.
Luciano se serve das mais variadas formas ou modalidades de comunicação: a carta – o que não é novidade – (como em “Cartas a Van Goghâ€), a propaganda, a conversa fiada, o anúncio, a frase feita, o lugar-comum, o ditado (em “Na Brevidade das Fugas†a pessoa que dialoga com Maria e também o narrador fazem uso constante dessa linguagem). O mesmo recurso é utilizado em “De Natureza CÃclicaâ€. Há até uma “Conversa entre Liquidificadores†(ilegÃvel para o leitor humano, talvez legÃvel por outros liquidificadores, que falariam de si mesmos ou dos humanos, de suas engrenagens, de seu trabalho diário, etc. Sim, sobre o que “conversam†os liquidificadores? Sobre os humanos ou sobre si mesmos?) Em “Noturnos Ópios No 9†Luciano aproveita a fórmula das questões de prova escolar. Em “Variações†encontramos até o que se poderia chamar de relatório oficial: “Casas: iguais e diferentes. /Moradores: análogos e divergentes. /Situações: semelhantes e distintasâ€. Em “Apesar de.†a forma utilizada é a do diário, o que também não é novidade.
Muitas de suas composições são bem curtas, constituÃdas de diálogos breves, quase enigmáticos. Outras são compostas apenas de uma fala e uma narração breve, como em “Implicações Clandestinas das Herméticas Influênciasâ€. “Intervenção Urbana†seria uma sÃntese de um acidente ou suicÃdio. Em “Original Lugar Comum†ele brinca com as fórmulas filosóficas, os sofismas, etc. Em “A Realidade Segundo H. P. Down†de novo a linguagem dos filósofos ou uma paródia filosófica. Ou conclusões lógicas, como em “O Filho Alérgico e a Mãe Protetoraâ€.
Luciano também aproveita com cuidado a seqüência de vocábulos ideologicamente análogos, para construir a frase, o enunciado narrativo, como em “Manhã Guardadaâ€: “Confissões, namoros feitos, mágoas, traições refeitas, álcool, amores desfeitos, mulher amada, punhais, olhares penumbros, bichas pavão, lésbicas fumadas, viciados utópicos – a praça para além dos bancosâ€. Ou em “Filhos de mãe d’águaâ€.
Tudo isso faz de Luciano Bonfim um escritor absolutamente moderno, novo, embora não se desfaça das fórmulas consagradas de narrar ou escrever, não se afaste dos narradores essenciais e, acima de tudo, não pense que inventou a roda, a pólvora ou mesmo o conto.
Fortaleza, junho de 2007.
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