Sempre que Vitória sentava na sua mesa, e colocava aquela tiara com fone de ouvidos e microfone, se sentia um lixo. Trabalhar com telemarketing não era a profissão com qual sonhava para o auge de seus vinte anos. Naqueles primeiros minutos, enquanto esperava o computador logar, pensava que o suicídio não era uma hipótese a ser descartada para um futuro próximo. Naquele dia, em específico, tinha ficado cheirando com uns amigos até uma hora antes de estar ali, sentada naquela cadeira.
Levava no bolso metade de um pino de pó. Pretendia ainda dar mais três tiros durante as seis horas de expediente. Como podia levantar da mesa apenas duas vezes neste período, com direito a dez minutos por saída, o último suspiro ia ser antes de ir para casa. Era muito tempo, e pouca cocaína. Não aguentou esperar o vagaroso relógio andar. Mais de uma hora antes de previsto foi ao banheiro dar o primeiro tiro.
O ar condicionado, programado para 23°C , não era o suficiente para conter o seu suor, frio. Seu corpo também não era mais capaz de conter a angustia e desespero que tentavam se emancipar. Dava para ver nos seus olhos fundos e vidrados. Estava estampado na sua cara pálida, com lábios roxos e nariz vermelho. Indisfarçável na sua mão tremula. Digno de pena sua expressão de cansada. A podridão era perceptível em sua voz, baixa e rouca.
Nove horas. Uma hora depois de que chegou, já não conseguia mais atender aos telefonemas. A respiração ofegante e a fala engasgada impediam qualquer um de entender suas palavras. Foram longos e angustiantes trinta minutos inoperantes, até que foi chamada por seu supervisor.
“É notável o seu mal estar. Pegue suas coisas, um atestado num posto de saúde, e vá para casa”, falou ele num tom frio e cético.
“Vou para casa, mas não vou passar num posto de saúde”, ela respondeu, tentando, sem sucesso, parecer segura.
“Assim vou ter que descontar este dia. Vou considerar como falta”, retrucou ele.
“Então deixe-me voltar e fritar na minha mesa!” Vitória começava a ficar nervosa.
“Você não esta se ajudando”, disse ele num tom de alerta.
“Nem você!”, retrucou ela, de bate pronto.
Então fez-se um silêncio um tanto quanto constrangedor, mais para ela.
“Veja Vitória, nós sabemos porque você esta assim. Se você não quiser se ajudar não vou deixar isso atrapalhar a empresa”, voltou a falar ele, num tom sério.
“O que você quer dizer? Fala! Não fica fazendo joguinhos. Você esta me ameaçando? Você não pode provar nada! Você esta me ofendendo! Vou embora deste lixo de lugar!”, respondeu ela não disfarçando o temperamento descontrolado. Bateu a porta e saiu pisando firme no rumo do elevador.
Enquanto andava na direção do ponto de ônibus lembrou dos tempos em que saia da escola e ia direto para casa de Mariana. Elas ficavam no quarto fazendo planos e mais planos com todos os garotos do colégio e os bonitões da televisão. Mari estava no terceiro ano de letras, fazendo estágio. Vitória nunca tinha tentado começar nada, nem um curso técnico. Maria, uma outra amiga delas, tinha conseguido um trabalho como secretária porque sabia falar inglês. Vitória ainda não sabia o que queria da vida. Neste momento a frustração consigo mesma só podia ser amenizada por um último tiro, que ela carregava no bolso.
Entrou no ônibus e foi sentar no último banco. Tirou o espelho para maquiagem e sem cerimônia mandou o último suspiro. Seus dentes estavam cerrador. “Mordendo o calcanhar”. Suas pernas mexiam freneticamente em movimentos repetitivos. Roía as unhas. O calor castigava sua pressão. Sentia as veias do pescoço pulsarem. Alguns fios de cabelos se agarravam em seu toso e testa suados. Tinha uma aparência degradante.
Chegou em casa já eram quase onze da manhã. Seu pai e sua mãe estavam trabalhando. O irmão mais novo na escola. Ela tomou um banho e começou a se sentir melhor. Tentou comer alguma coisa, mas seu estomago não se apetecia com nada. Depois de dar uns pegas num baseado conseguiu dormir, pouco antes da uma hora. No limiar entre o sono e a vida, com a cabeça já confortada no travesseiro, seu último pensamento foi: “O inferno são os outros!”
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