Basta você chegar ao Centro, ir até a rua sem nome mais decente, perguntar a qualquer um dos ociosos “Onde posso encontrar Crendilsson, o Sético?” e obterá a direção precisa sem ajuda de um Global Positioning System.
Você não buscará Crendilsson, o Sético, por imaginar que ele é um homem interessante. Ele não é. O que aconteceu com ele, sim.
Um meninote inocente. Sua mãe disse apenas uma vez a clássica “Fique revirando os olhos assim, aí o vento passa e vai ficar desse jeito para sempre” e Crendilsson manteve uma retidão ótica jamais vista em lugar algum do mundo.
Um adolescente cândido. Num domingo de calor, na igreja, o pobre sentiu um leve incômodo, uma coceira, e foi ajustar o volume em sua calça de linho, o que de acordo com o olhar de relance do pai significava um indício de depravação. “Se você ficar se tocando assim, vai nascer cabelo em suas mãos!” Desde então, prefere contorcer-se em público, alegando estar recebendo espírito divino, debatendo-se freneticamente até a coceira passar, a ter de aliviar-se como todos os homens fazem casualmente.
Um adulto questionável. Dúvidas acumuladas durante anos costumavam repelir certos conselhos, opiniões, palpites; a sabedoria popular ansiava por sua sanidade mental, sem saber se contava ainda com sua encarnação mais fiel, ou se estava perdendo-o para bruxarias. Foi então que teve sua alcunha fixada sobre a testa.
Contam os vizinhos que esse foi o único deslize da vida de Crendilsson, mas custou-lhe uma vida normal. Voltou da Autoescola todo casquilho, com sua carta de motorista na lapela da camisa pólo de liquidação, rumo ao barzinho.
“Só dois dedos e meio de cervejinha hoje, Seu Bingote, que eu passei com honras no teste e agora posso dirigir!”, pavoneou-se.
“É, né pra desmerecer nada não, mas todo mundo aqui dirige, com carteira ou sem. Também num tem nem mistério, é só ir pra frente, frear de vez em quando, e lembrar de não dar seta”, cumprimentou-o assim Senhor Bingote.
“Está repreendido! Se o instrutor disse que eu tenho de indicar com a seta se eu for mudar de faixa, ou entrar numa rua?!”
“Homem de Deus, não faça isso! É que nem exame de toque, você faz uma vez só e aí fica falado na vizinhança inteira! O povo aí que comenta que teve alguém aí, sei lá há quantos anos atrás, que deu seta uma vez e aviadou, e enlouqueceu, e perdeu o emprego e tudo mais!”
Crendilsson, frustrado, confuso e com a vaidade bulinada, bebeu apenas o meio dedo de cerveja com raiva e saiu. Tirou o carro da garagem. Pela janela da porta ainda se via o mesmo homem-cordeirinho de sempre. Engatou a primeira. Acelerou. Engatou a segunda. Sentiu a pressão. Na terceira, atirou o juízo pela janela e deu seta para pegar a via principal.
Acharam-no na manhã seguinte num bairro vizinho, desorientado. “Quem somos nós? De onde viemos e para onde iremos?”, repetia. Dava dois passos, mancava, no sexto passo era certo que titubeava um pouco. Se fosse virar à direita ou à esquerda, indicava sempre, fosse com o dedo, com uma mexidinha do pé, com um tique nervoso na nádega correspondente.
Foi encaminhado à Previdência Social para aposentar-se por invalidez. Foi chamado de vagabundo. Perdeu mulher e filhos. Virou alcoólatra. Hoje se prostitui por um copo de pinga, o miserável que inventou de dar seta em trânsito, o querido Crendilsson, o Sético.
Crônica satírica parcialmente fictícia (inspirada em vários motoristas), publicada no perfil do autor em 14 de janeiro de 2014.
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