40 anos de imagens - grãos, traços e pinceladas

Yara Baungarten
"No a la Guerra" no contexto da exposição
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Yara Baungarten · Porto Alegre, RS
7/6/2007 · 78 · 1
 


O GRÃO DA IMAGEM - Uma antologia de Vera Chaves Barcellos

A obra, e a exposição sobre a obra, de Vera Chaves Barcellos é cheia de predicados e superlativos. São poéticas visuais – e uma antologia delas – que caminham, ao longo de quatro décadas de trabalho, entre paralelas e perpendiculares entrecruzadas. Existem ali, compiladas num espaço, instalações, vídeos, desenhos, fotografias, pinturas e gravuras, que dialogam através de um trabalho de análise curatorial que envolveu uma equipe diversa, cuidando da seleção das imagens, da montagem, da museografia, da iluminação, do seguro, da divulgação, das peças gráficas da divulgação e também de um vídeo sobre a artista e a mostra. O time de curadores foi composto por Fernando Cocchiarale, Agnaldo Farias e Moacir do Anjos, num projeto que tem a consultoria executiva de Ana Albani de Carvalho e Neiva Bohns.

Os adjetivos são garantidos pelos curadores, que por vezes beiram a adulação, já que eles (e o público) estão em frente de um trabalho que é universal pela qualidade estética. A mostra é um tributo, uma antologia, uma retrospectiva, o alinhavo de uma trajetória. É a possibilidade de valorizar e colocar os holofotes sobre a produção brasileira nos movimentos culturais e artísticos contemporâneos. Um projeto que a superintendente do Santander Cultural, Liliana Magalhães, quer dar continuidade, abrindo espaço para outros artistas brasileiros, como fez questão de destacar na abertura da exposição de Vera Chaves Barcellos.

Mas “O Grão da Imagem” é, acima de tudo, o desafio de conectar o espectador com a multiplicidade artística de Vera Chaves Barcellos. Artista com campo de atuação ampliado pela capacidade de perceber o que lhe circunda, ela é referência da arte contemporânea. Numa breve análise do há que de informação disponível sobre sua carreira, é notável que tenha iniciado numa rotina artística repleta de formalidade, que passa pela educação musical ao piano e pela pintura de influência modernista. No vídeo que a exposição apresenta, Vera destaca o começo pela música e a descoberta de que poderia comunicar através da arte plástica os sentimentos que afloravam pela música. A pesquisadora Mônica Zielinsky, no seu estudo de percepção, elenca fatores de interferência no processo artístico, como, por exemplo, as experiências passadas. Ao fazer seu relato de pesquisa, Zielinsky pondera que o fazer artístico é “a exteriorização de uma maneira de ver o mundo, a partir de valorações, pensamentos e condicionamentos que pertencem à história pessoal do artista, estruturados ao longo de uma interação social”.

E interação pode ser considerada uma palavra de ordem na obra de Vera. Quando ela direciona seu trabalho para o questionamento e a provocação do espectador, ela se torna pioneira no “cenário” das artes do Rio Grande do Sul, inclusive dando o pontapé inicial para a consolidação dessa cena, com o referencial “Espaço N.O.”, feito entre 79 e 82, e seus desdobramentos. Fernando Cocchiarale destaca esta atuação, que marca a descentralização da produção contemporânea longe do eixo entre Rio e São Paulo.

Provocação é um meio de fazer valer essa interação. Na série Testartes, feita durante da década de 70, perguntas instigam a imaginação: o que está logo ali? E ainda há o sensorial, na seqüência de Visual-Táctil: “tente senti-las?”, pede a artista. Isso acontece, porque ela considera que a palavra surge colada com o trabalho fotográfico, e é o que a distancia da gravura.

Na obra, Vera Chaves dá o depoimento: “estou interessada em processos mentais. E para desencadeá-los, uso imagens. Algumas colocadas com a finalidade de uma leitura, numa reconstituição mental de tudo o quanto foi necessário para a existência do objeto representado”. E diz ainda “memórias e conteúdos de diversos níveis afloram nas respostas das perguntas formuladas, dando-nos ‘as imagens da imagem’”. Estas indagações ficam cheias de significados quando ao lado da proposta de trabalho de Leonardo da Vinci. “Não deixarei de incluir nestes preceitos um novo método de especulação, que ainda que pareça insignificante, e quase faça sorrir, nem por isso deixa de ser de grande utilidade para avivar o engenho a várias idéias.” A confluência de informações mexe com o espectador, que tem a seu dispor a foto, o texto, a pergunta, um teste projetivo que trata de conteúdos personalizados.

O público é convidado a participar e ser artista. A série de arte postal que nos anos 70 Vera espalha pelo mundo, é um estímulo para que de assistente se passe a ator da realização. O destinatário é o remetente, e faz isso com a propriedade investida pela artista, que irá se apropriar dos trabalhos recebidos. E sempre através de indagações – o que há nesse cofre?

Na retrospectiva apresentada, vê-se esse questionamento em outros momentos. Quem olha uma peça gráfica tem um enquadramento visual que se estrutura automaticamente. O jogo aqui, neste trabalho da década de 80, é que a interpretação de leitura da imagem faz parte da obra de arte. Isso a torna única para cada um dos espectadores.

E afinal, qual a primeira coisa que lhe chama a atenção?


O GRÃO DA IMAGEM

A antologia que se constitui a exposição “O Grão da Imagem” é um fio condutor de 114 obras. Como destaca a curadoria, é o recorte entre uma ruptura e a fase atual de Vera, ou seja, da pintura e da gravura até o experimento das sensações e da percepção, num fazer híbrido de influências. Em entrevista, ela confessa o receio pela variedade do trabalho, temia que ficasse diante de uma mostra que tivesse ares de uma mostra coletiva. Contudo, para sua agradável surpresa, compreendeu que o segmento do processo está coerente. Nesta exposição, distanciada do universo do atelier, ela pode perceber “diferenças que aqui estão unificadas”.

As pinturas e gravuras selecionadas trazem a estética da forma e da cor e são classificadas como excelentes pelos curadores-admiradores. São apresentadas em um interessante jogo de exibição. Elas, modernistas dos anos 60, namoram com a informalidade do abstracionismo que marca a ruptura referida pela curadoria e que fazem na obra da artista um “corte radical entre a tradição modernista e os primórdios da produção contemporânea no país”.

Seguindo o olhar por um dos caminhos que a exposição possibilita, deixa-se a apreciação das gravuras e das pinturas e se apresenta uma das criações mais representativas para a inquietação imagética da artista e de grande vinculação com os objetos estudados no curso de poéticas visuais: os “Cadernos para Colorir”, de 1986. Neste trabalho, que suscita a reflexão sobre significado da imagem, Vera faz a seleção de diferentes fragmentos da representação. Uma imagem inicial que é recortada, trabalhada, copiada, fotografada, fotocopiada, e que ganha cor, ganha textura e volume e depois volta a ser lisa.

Questionam os curadores nas contextualizações expostas entre estas obras: “Então estamos diante do que mesmo?”. E eles mesmos refletem que isso não é o primordial para a percepção, uma vez que esses retalhos de imagens dão ritmo ao olhar, e é muito pessoal sentir se será uma valsa ou um rock.

Entre os quadros de pinturas e gravuras dos anos 60 e “Cadernos para Colorir”, feitos nos anos 80, está toda a renovação estilística a que Vera se propõe. Ela afirma que “quando eu dominava uma coisa, procurava mudar” 6, alertando que com o domínio da linguagem existe o risco de que o artista se repita.

Mas, como revela a pesquisa de Mônica Zielinsky, a criação artística passa pela influência da origem e pelo ambiente cultural. Mônica cita Puig: “as experiências anteriores guardam percepções anteriores e armazenadas na memória, e atuam de forma intensa no ato perceptivo mais recente”. Assim,
Vera se dispõe a iniciar um regresso artístico, que concentra ali toda a influência, poética e técnica desenvolvida até então. Em depoimento à época do lançamento dos “Cadernos”, ela relata as dúvidas que tinha quanto ao trabalho, naquele momento muito próximo dela. Hoje, mais distanciada, a artista pôde conceituar o processo, ao dizer que ele marcava sua volta à pintura, feito a que ela, com sua dupla nacionalidade, dá um adjetivo espanhol, chamando de artesania seu trabalho visual.

Ainda sobre “Cadernos de Colorir”, é esclarecedor o conceito de originalidade que ali se explora. Cada imagem dos trios é original, apesar do resultado final ser reproduções de “uma foto, de um negativo, de um pedaço de negativo, de um positivo que é um detalhe de uma imagem maior”. Um trabalho original na feitura e original no conceito. Uma repetição temática que enquadra uma nova idéia a cada reprodução.

A antologia de “O grão da imagem” conta também com uma obra inédita, que é “No a la guerra”, de 2007. Neste vídeo, que teve início em 2003, durante a invasão das tropas espanholas ao Iraque em apoio ao governo norte-americano, Vera apanha, é agredida pelas imagens do conflito. “Estou como se recebesse tapas, uma sensação visceral, triste, irritada, violentada”9, conta ela. O processo criativo advém do envolvimento. Ela, declaradamente contrária à atuação militar no Iraque, se juntava ao povo espanhol ao fazer panelaços nos telhados das casas, em Barcelona. Irritada, como se define, buscou então imagens da guerra em jornais, que foram escaneadas e se transformaram na agressão.

O curador Moacir dos Anjos enaltece o aspecto da obra de Vera Chaves no qual ele nota que é ela mesma quem se relaciona com a realidade, transmitindo para o trabalho não só uma representação dessa realidade. E a própria artista acredita que “somos o que somos dentro. E somos aquilo que nos rodeia”. Nas suas temáticas há impureza, existe a influência que contamina. O vídeo “No a la guerra” pode ser considerado sua mais recente interação social, termo empregado por Zielinsky. “O mundo está no vídeo do Iraque”10, ressalta Vera, que cita ainda o filósofo espanhol Ortega y Gasset, dizendo que “o homem é suas circunstâncias”.


MUSEU PARA O PÚBLICO

As exposições do Santander Cultural são estruturadas a partir de projeto arquitetônico feitos por uma empresa paulista. Arquitetos e artistas estiveram envolvidos no projeto museográfico, auxiliando na dimensão que a obra de Chaves Barcellos toma ao dominar o ambiente do Santander. O espaço é preenchido pela história de uma produção em arte. Vera e sua equipe, juntamente ao time de curadores, participam de maneira ativa da montagem. Eles embalam e desembalam as obras, e conferem se tudo está de acordo. No caso da instalação “O Nadador”, de 1993, a proporção espacial de origem é, por exemplo, maior do que a disponível no museu. No vídeo que integra a retrospectiva, pode-se perceber que lá estava a artista, encaixando os “aquários” de maneira que o significado da obra estivesse mantido.

A obra de Vera Chaves Barcellos preenche os espaços, e a visão do alto possibilita uma nova leitura de ângulos, que diminui o vazio da imponência arquitetônica, que este centro cultural transmite em determinadas ocasiões. Isso permite que a arte ali apresentada em “O Grão da Imagem” seja inserida no contexto da ação educacional a que o Santander se dispõe, sendo mais vista, mais comentada e refletida, envolvida pela percepção crítica da assistência. Cristina Freire acredita nesse papel da instituição museu, que “agencia uma oportunidade para que esse se torne um lugar privilegiado de reflexão sobre o mundo contemporâneo e de educação da sensibilidade”.

Os trabalhos de Vera Chaves, apresentados em um museu, com uma unidade para o trabalho variado, vêm como um “dispositivo que opera na organização de um conjunto de idéias e proposições”. Essa é a forma que Freire fala do arquivo, aquele que investiga os conceitos do que é “arte, estilo, gosto, exposição, museu” e “altera paradigmas, sentidos e práticas de arte”.

Uma mulher e um conjunto de obras, que pôde criar e gerenciar uma Fundação, dando seu nome para ela, e que tem preocupações com seu relacionamento com sua própria obra e de sua obra com seu público. A leitura de cada um dos 114 trabalhos selecionados rende frutos, porque eles estão repletos de significados e provocações, onde o público é agente. Neste conceito está o poder que Vera se investiu ao produzir arte: cada vez mais imagens, mais repetição e a cada novo fragmento, um pensamento, uma metáfora. O estímulo é feito. E cada indivíduo o reveste de significado.

Então Vera Chaves Barcellos equaciona: “Nas imagens, quanto mais margem você dá ao espectador, mais possibilidades de interpretação ele têm”. E assim ela faz.

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Vera Chaves Barcellos é uma das mais destacadas artistas de arte contempôranea do RS e do Brasil. Agindo na vanguarda, nos anos 70 seu trabalho visual abrange técnicas como a gravura, pintura, fotografia, instalação e vídeo-instalação. Ela dirige a Fundação Vera Chaves Barcellos, www.fvcb.com.br dividindo-se entre Viamão, no RS e Barcelona, Espanha.

A exposição "O Grão da Imagem" fica exposta no Santander Cultural de Porto Alegre, até o dia 29 de julho, com entrada franca. Mais informações em www.santandercultural.com.br

Esta matéria foi originalmente produzida para um trabalho de arte contemporânea do Pós-graduação em Póeticas Visuais da FEEVALE, RS.

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Yara Baungarten
 

Olá. Perdoem-me. Num excesso de nacionalismo coloquei um ponto com ponto br no site da Fundação Vera Chaves Barcellos. Mas como ela é uma cidadã do mundo, e mora em Barcelona também, seu site é só ponto com.
Então fica como correção pós publicação:
www.fvcb.com
Esse é o endereço.
Abraços

Yara Baungarten · Porto Alegre, RS 7/6/2007 23:06
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"O Nadador", instalação de 1993
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