DITADURA DA MAGREZA

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tom lima · Rio de Janeiro, RJ
28/1/2007 · 12 · 1
 

Quando Delfim parou, na beirada do calçadão, sentiu a brisa que corria levemente contra o seu rosto e brincava com seus raros fios de cabelo, o cheiro embriagador do oceano, o sol tocando despretensiosamente seu corpo, ainda amistoso àquela hora, e a melodia envolvente do mar. Lembrou-se saudosamente de sua juventude vivida à beira mar. Questionando com seus botões como pudera reprimir durante dez anos atividade tão prazerosa, percebeu que o trabalho, os estudos, as crianças, os compromissos... tudo havia ficado acima de seus momentos de lazer preferidos.
Impelido por tantos sentidos, rapidamente puxou sua esposa pela mão e avançou à passos largos em busca de um lugar entre os banhistas. Estendeu a esteira no chão, abriu o guarda-sol branco e vermelho da Mesbla, ajeitou a ceroula xadrez, tirou a blusa, mergulhou no protetor solar fator 25 e se estirou na areia, de frente para o sol, braços abertos como se estivesse clamando: vem me possuir, estou pronto para o sacrifício. Sua enorme barriga não permitia que alguém, que olhasse a partir dos pés, enxergasse a cabeça; a partir da cabeça, os pés se tornavam objetos ocultos.
Clara, a esposa, protegida pelo guarda-sol e avessa à praia, sol, areia, água salgada entre outras coisas, enquanto se encarregava de arrumar o isopor abarrotado de latas de cerveja, refrigerantes e sanduíches, suplementos indispensáveis aos dois, percebeu que muitos banhistas ao redor observavam todos os seus movimentos. Desconfiada, comentou com o marido:
-Fio, reparou como as pessoas nos olham desde que chegamos?
-Cê tá louca! Deve ser alguém famoso aqui perto de nós.
-Não é. A coisa é com a gente.
-Então deitamos em cima de algum despacho de macumba, alguma cabeça de bode, ou algo parecido.
-Ai, nem brinca!
-Deixa de bobagem! Deita aí, mulé, aproveita o sol e fica quieta.
Alguns minutos depois, três grandes sombras encobriram o rosto de Delfim. Eram três rapazes muito bonitos, fortes, altos, bronzeados, corpos musculosos, vestindo camisetas com emblemas da polícia, em atitude bastante hostil. Com o susto, Delfim levantou num pulo só, contrariando toda a morosidade que sua enorme pança sugeria, e reclamou:
-Desejam alguma coisa? Pois, estão atrapalhando meu banho de sol.
-Não, senhor, você que está atrapalhando o bom andamento do nosso serviço. Não percebeu que os banhistas estão assustados com sua presença.
-Como assim? Estão me confundido com alguém!
-Possivelmente: com um enorme elefante marinho! O senhor não tem vergonha de vir à praia e expor essa barriga indecente na frente de tantas crianças. Além disso, trás sua esposa, que mais lembra um botijão de gás, cheia de banhas laterais e celulite. Talvez o senhor não saiba, mas há uma lei que proíbe a permanência de pessoas como o senhor e sua esposa em locais de exposição corporal como praias, clubes e saunas. Por isso, peço que se retire antes que eu dê voz de prisão aos dois. Estão poluindo visualmente a praia!
-Mas como? Que absurdo! Pago meus impostos, e não tenho o direito de freqüentar a praia?
-Apenas pessoas com índice de massa corporal dentro dos padrões da Organização Mundial de Saúde podem frequentar a praia. Ou seja, os sarados, esbeltos, saudáveis, barrigas de tanquinho, as malhadas, gostosas, as gatinhas... O senhor e sua esposa estão muito longe disso, e por isso, comentendo grave delito. Por favor...
Com um gesto, o policial direcionou Delfim para fora da areia. Cabisbaixo e conformado, o casal recolheu seus pertences e andou, perplexo, em direção à calçada, arrastando o grande isopor. Num último momento, enquanto Clara já esvaia-se em lágrimas, Delfim virou-se para as autoridades e perguntou:
-Não há lugar onde possamos tomar um banho de sol sem transgredir a lei?
Sem parar, caminhando a frente de Delfim, um policial respondeu, dando com ombros:
-O governo ainda está isolando uma área no final da restinga. Terá de aguardar a conclusão das obras do muro de proteção visual, onde os "fora de forma" serão confinados.
Delfim entrou no carro, consolou sua esposa, e com uma dolorosa sensação percebeu que nunca mais sentiria a brisa do mar, a areia nos pés e o sol no rosto.
- Agora sobrou apenas o banho de mangueira escondido no quintal- pensou.

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Hermano Vianna
 

Alô Tom: o Overmundo agradece a colaboração. Mas como é um conto a seção certa para a publicação é o Banco de Cultura. Para entender melhor qual é de cada seção do Overmundo, por favor leia o Manual de (Bom) Uso do Overmundo e os nossos Dez Mandamentos. Se tiver algo a sugerir o melhor lugar para deixar comentários é neste post do Fórum do Observatório. Abraços!

Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 26/1/2007 18:44
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