Domingo

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daniela monteiro · São Paulo, SP
16/9/2006 · 0 · 0
 

Sacudo dos ombros um pó que se acumulou. Com as costas das mãos, derrapo sobre o pano suave que visto num movimento rápido e contido. Limpo o terreno, volto a caminhar. Pela rua o movimento me engole. A cidade. Feia, faz mal, enjôa, dói. A cidade dói em mim. Antes não. Hoje sim. Mas não desisto de seguir. Caminho para a frente e sigo meu destino. Onde ia mesmo? Ah, sim ao metrô. Sempre olhando para frente. Ãs vezes, caminho de olhos fechados numa tentativa (vã) de enganar meus pensamentos. Ah, é impressão sua, eu não estou aqui não. Estou em outro lugar, andando descalça, com um vestido de algodão transparente num chão verde de mato, naturalmente cheiroso de terra, com uns bichos ao alcance dos olhos, e um tanto de água vinda da bica por ali perto. O céu é bem azul e branco, a casa, limpa e fresca, com chão de madeira ou lajota, as janelas são grandes e vivas, a mesa, de madeira bem grossa e por cima umas frutas, alguns livros jogados, papel e lápis e caneta, uma jarra de água, uma taça de vinho, um vento que vem de fora e faz barulho no papel. Esse é o som que escuto. Ando pela casa e piso num tapete de lã, escorrego os pés, afofo, fico sob as pontas e desço aos calcanhares, alongo a panturrilha e olho de novo pela janela. O telefone toca e é uma voz amiga com uma proposta de almoço. Ando sorrindo, gosto da janela, meus pés sob o chão dão um arrepio na coluna, meus braços estão soltos no corpo, minhas mãos ajeitam o cabelo, sento-me na porta da cozinha e apenas observo o que é a vida.
O metrô chega e me toma pra ele definitivamente. Entro e sento. Saco.
Pessoas falam alto e riem. Outras com rostos distantes, outras sofridas, outras em transe, outras apenas outras. O barulho mecânico me lembra uma fábrica, fabricada, feita, refeita, produzida, instalada, natureza-morta. As portas se abrem e desço por último. As pessoas me cruzam o caminho e eu o delas, atropelam-me e eu me esquivo. Quanta gente...quantos olhos, quantos gostos, sentidos, sentimentos, mãos, pernas, bolsas, tudo em vão. Por que tudo em vão? Por que tudo em vão? Eu deveria estar aqui mas não consigo. Abro com dificuldade meus lábios (travados pela mandíbula), mecanicamente tento sorrir mas saí um sorriso natural. Surpreendo-me porque sei que ali na frente posso voltar a sofrer. Viver na cidade é sofrer e morrer um pouco por dia. Viver é assim? “Os escritores que se cuidem, eles podem realmente enlouquecerâ€, dizia um professor meu do colégio. Pensava nisso no momento que um farol abriu e eu não vi. A cidade quase me engoliu de novo. Voltei pra calçada sem graça e fingi que não estava ali. Estava descalça, pisando na terra molhada da beira de um rio, afundando os pés na areia pra elas fazerem cócegas entre meus dedos. É tão bom sentir cócegas nos dedos...e a água do rio é gelada e pura, molho as mãos e o rosto, agacho-me e meu vestido se solta, com os braços afundo o tronco, num impulso minhas pernas desdobram, com alívio meu corpo se solta, agora o rio já me engole. Me leva, rio, me lava, me envolve e me deixa aqui por enquanto. Eu não quero voltar.
Hoje é domingo, mas pode ser qualquer dia. Pode ser. Eu não quero voltar.


daniela monteiro

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