Publicado no Observatório da ImprensaQuando o ministro Ernesto Araújo afirmou que o Partido Nacional-Socialista alemão era de esquerda, proferiu uma bobagem flagrante, que chocou o planeta. Mas o chanceler poderá sempre alegar que não mentiu, apenas expôs um juÃzo pessoal que, “por acasoâ€, contraria a verdade. Sorte da opinião, azar dos fatos. E da História.
Embora particularmente ofensiva, a deturpação de Araújo não deveria surpreender os analistas da mÃdia corporativa. A maioria dos que se dizem perplexos com as impropriedades da cúpula do governo federal vem usando fórmulas silogÃsticas muito parecidas para o golpe parlamentar, a Lava Jato e a prisão polÃtica de Lula.
Se a Constituição autoriza o impeachment, o de 2016 obedeceu à normalidade democrática. Se os tribunais aceitaram a condenação de Lula, sua culpa está provada. Se a Lava Jato prendeu corruptos, foi benéfica para o paÃs. Se a informação tem fonte ilegal, não é fidedigna.
A legitimidade de acreditar em bobagens não as torna verossÃmeis. Não resta dúvida possÃvel de que o impeachment foi um golpe fisiológico e oportunista alavancado por uma artimanha ilegal da Lava Jato. Ninguém com mÃnimo discernimento jurÃdico seria capaz de negar que a prisão de Lula nasceu de conluios delituosos de Sérgio Moro e procuradores.
As conversas divulgadas pelo Intercept provam tudo isso. De novo, porém, a ignorância seletiva dá lógica aos descalabros. Pouco importam as evidências, o bom-senso, a legislação. Basta alguém dizer que “acha†a deposição justa, os indÃcios convincentes, os justiceiros bem intencionados. A credulidade se expressa como evento indiscutÃvel.
O conceito de pós-verdade talvez sirva para definir as narrativas, mas já não é a maleável ideia de verdade que está em jogo, e sim a de mentira, bem menos controversa. A incapacidade de constatar o óbvio não tem nada a ver com a falsificação, que envolve a própria natureza espontânea e sincera do erro. Mentir é um ato consciente e doloso.
Pois aquelas manifestações de ignorância são performáticas. O ministro sabe que a associação entre nazismo e socialismo é absurda, tanto quanto os apologistas “qualificados†da Lava Jato sabem que ela serve a uma estratégia nefasta de poder. Longe de expressarem convicções sinceras, seus desvarios visam ludibriar incautos e normalizar a defesa do indefensável.
A estratégia tem sucesso, nas cúpulas do Judiciário, para manter a obscena condenação de Lula. O vale-tudo fantasioso dá aos nobres magistrados o álibi que lhes faltaria em sociedades menos corruptas e hipócritas. Eles podem forjar crenças estapafúrdias porque, para impedir a eleição do petista, até os valores que as tornam mentirosas viraram tópico interpretativo.
Enquanto a pós-verdade acena com a anulação das “grandes certezas†por inúmeras narrativas individuais, a pós-mentira traz a utopia da inexistência do ardil falsificador, o pressuposto da validade absoluta de qualquer asserção sobre o mundo. “Polêmicaâ€, segundo o rótulo neutralizador da moda, ela se afirma “imparcial†na proporção de seu repúdio pela sociedade.
A pós-mentira esconde o método que organiza a loucura em pós-verdades convenientes. É o salvo-conduto moral do mentiroso, o cinismo que transforma o delÃrio em performance e o logro em ética opinativa. A suposta natureza irrefutável do enunciado inverÃdico, fantasiado de juÃzo pessoal, dissimula o objetivo que define moralmente o ato de manifestá-lo.
Existem bases narrativas (éticas) nas farsas judiciais da Lava Jato e no delÃrio messiânico do bolsonarismo. Mas precisamos ir além do conteúdo. O Regime de Exceção é soberano porque dita as fábulas que o legitimam. Aà reside a armadilha do debate ocioso em torno de falsas maluquices, que sempre estarão certas pelos critérios da falsa maluquice hegemônica. Não há terreno mais confortável para o fascismo do que o narrativo.
Combater a pós-mentira exige a distinção entre o apedeuta e o cÃnico, a ignorância e a fraude. O foco reside, por isso, mais na enunciação do que no enunciado, mais no indivÃduo que no discurso. A questão é desmascarar a estultice teatral de pessoas que, sagazes e informadas, proferem juÃzos infundados para assuntos que elas não têm como ignorar.
O critério profissional ajuda muito nessa leitura de aptidões. A competência pressuposta por diplomas, currÃculos e cargos obriga seus detentores a certos nÃveis básicos de conhecimento e interpretação dos fatos. Quando o equÃvoco involuntário deixa de ser plausÃvel, a própria lógica da meritocracia induz a percepção da desonestidade. O que vale para diplomatas, vale para jornalistas, acadêmicos, advogados e magistrados.
Denunciando na suposta “polêmica†a naturalização da mentira e, nesta, uma atitude imoral dos seus divulgadores, romperÃamos a tendência fútil e paralisante de justificar toda aberração conceitual a partir de licenças ideológicas. Não foram valores pessoais que fraudaram a democracia brasileira, e sim a ocultação e a distorção sistemáticas da verdade.
Enquanto ainda podemos reconhecer os efeitos do arbÃtrio, somos capazes de identificar a Ãndole corrupta daqueles que tentam reduzi-lo a uma simples questão de nomenclatura.
http://guilhermescalzilli.blogspot.com/2019/10/o-regime-da-pos-mentira.html
Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!