Sexta-feira

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daniela monteiro · São Paulo, SP
16/9/2006 · 6 · 1
 

Abro os olhos, depois de dormir horas…lentamente as coisas concretas vêm até mim. Enxergo o desgosto da boca, antes de tudo. O amargo da hora em que movimento a língua, para reaprender a sentir os gostos. Os dentes se tocam, um no outro. Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e penso numa música. Acordo. É depois que eu grito.
No banheiro me reconheço em frente ao espelho: sou eu mesmo, a essa hora do dia, detalhadamente descrito com a ajuda de meus dedos. Olhos, nariz, sobrancelha, boca e vincos na pele errada de um catador de sentidos. A cor que todo esse órgão representa é a cor sugestiva e definitiva em minha trilha. Sou branco como gelo. Transparente como um nada. Escuro como uma poça. Coerentemente indeciso diante dos meus olhos que me procuram. O espelho se apaga e fecho a tampa da privada.
Na cozinha os pés pesam um pouco mais. O sol, sempre muito claro, adentra os vidros de janelas da alma e me deixam zonzo de luz. A fome me torna viciado em atitudes bizarras, como mastigar e envolver o alimento com a saliva amarela que escarro quando posso. A alimentação necessária me torna fraco diante de todo um destino.
O próximo passo é um cigarro arrotado. O café, tão bom, tão rude, completa o momento depois que vem em escalas. A música que coloco destoa do presente e o pensamento que me torna é tão vivo quanto a porta que abro.
Folheio um jornal sem vida. Mortes póstumas, breves, futuras e previstas dão lufadas repetidas em minha direção. As notícias, quais delas, são surpresas? Homem mata, criança sofre, animal é torturado, mulher some, gente desfale e morre, a água se despede, a terra chora e assoa o nariz num lenço que agora já não existe. Folheio um jornal de absurdas realidades numa realidade absurda. Mastigo papel, engulo histórias, meus gases absorvem. São os fatos verídicos de uma vida real.
Me entedio com o sol que vai invadindo o céu. São suores que evaporam daquela pele que já havia descrito como, a meu ver, invisivelmente visível.
São as horas que espalham o terror no tempo que envolve e polui meu espaço concreto dentro de eu mesmo. São as palavras que não encontro quando procuro. São os tormentos desse sorriso que quebra meu rosto. São as coisas todas que existem a minha volta e que se tornam muito coloridas e breves quando eu as tomo como referência. São as verdades dogmáticas que engulo como remédio. É tudo mentira.
Agora assisto a um programa de auditório pelo vidro do carro. Um homem carrega, numa carroça, a sua vida. Ele esboça palavras que ouço, mas não entendo. O farol mancha meus pensamentos. O cruzamento da grande avenida risca e descortina novas histórias. Um mundo em quadrinhos é exposto permanentemente em cada esquina. Há inspiração em todos que circulam pela rua. Do lado de fora, a vida corresponde a sua grande síntese. Ela existe.
Manuseio dinheiro como se fossem cobras.
Compro e pago pelo meu ato insano de adquirir.
Desfaleço mais uma vez por uma dúzia de relógios, que marcam o tempo longe de mim. Aceito a sugestão da vendedora e provo alguns espinhos. São tão lindos, e tão doloridos, que solto um urro interno quando ela toca meu braço: o sangue que vem é a minha pura ilusão de felicidade.
Ando pelas calçadas sujas e pelas limpas. Pessoas brotam e somem. Seus olhos são de vidro, como me sinto, e apontam sempre para fora. Mas consigo, por causa da minha escassez de racionalidade, observá-los por dentro. São ruínas humanas e pensam que são inteiros. Alguém esbarra em meu braço, e me pede perdão. Perdão por encontrar-me nu? Perdão por sentir todo meu corpo pulsando por advertências e carícias?
Tomo outro café envenenado e parto em segundos e em silêncio.
O gosto da rua é o gosto dos outros. Busco sentido onde existe o caos. Destôo de todos que se assemelham. Convivo apenas em segredo. Esse é o meu segredo.
Hoje, é sexta-feira.

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Marcelo Cabral
 

Sou fã do seu texto! voce escreve muito bem, muito. Que bom você compartilhar essas belezas aqui no overmundo.
Só acho que como é um conto, seria mais cara de banco de cultura em textos-literatura que overblog, de toda forma, quero ler mais textos seus por aqui, beijo e parabéns.

Marcelo Cabral · Maceió, AL 17/9/2006 21:29
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