Um olhar virgem sobre o cinema.

(CC-BY SA) Overmundo
Seu Rui, de 83 anos, não vai ao cinema há mais de 60 anos.
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Salmerón · São João del Rei, MG
25/1/2013 · 10 · 0
 

Quando foi a última vez que você foi ao cinema? Lembra de qual filme assistiu? O que hoje se tornou um ato banal, é ainda inacessível para populações que vivem nas camadas mais profundas do Brasil. Porém, durante a 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes um grupo de homens, mulheres e crianças que vivem na zona rural do município tiveram a oportunidade de ir ao cinema pela primeira vez. Ironicamente, o filme em exibição - “Proezas de Satanás na Vila de Leva e Traz†(1967) – foi filmado na própria cidade, mas nunca entrou em cartaz na região.

Tudo começou quando os participantes da oficina de Roteiro e Produção de Curta-metragem, em conjunto com alunos da PUC minas, decidiram produzir um documentário sobre pessoas que nunca tiveram experiências com o cinema. Enquanto gravavam entrevistas em comunidades afastadas da cidade, surgiu a ideia: por que não levar essas pessoas até lá? Bom, foi exatamente isso que fizeram.

Bem-humorado, seu Ivan conta: “Acordo todos os dias às quatro da manhã. Quando chamaram a gente pra ir ver na filme na cidade, fui o primeiro a entrar na fila. Quem fica pra trás é caranguejo!â€. Com 66 anos, o lavrador nunca havia estado em um cinema na vida. Apesar de feliz com a oportunidade, afirmou que estava tranquilo.

O mesmo aconteceu com seu Rui, de 83 anos. Ele comenta que da última vez que foi assistir a um filme na telona, tinha 17 anos – mais de seis décadas atrás. No entanto, ele não tem receio em dizer o que realmente achou da experiência: “Fui assistir a um filme em São João del Rei, mas acabei ficando com sono.†Além dele, outras 39 pessoas de comunidades afastadas ganharam lugares reservados na sala do Cine-Teatro.

A atitude é sem dúvida louvável pois demonstra o comprometimento não só da prefeitura, como também dos organizadores, em organizar um evento verdadeiramente democrático e participativo. Porém, daí podemos tirar algumas lições. A principal tavez seja o inescapável diagnóstico: nossa percepção de progresso nos tornou irremediavelmente arrogantes. A partir do momento em que a falta de acesso a certos bens de consumo – que diga-se de passagem, não são essenciais – se torna motivo de espetáculo, algo está errado. Muito errado.

Discordo plenamente de quem acha que não é dever do estado garantir sim acesso à cultura, diversão e arte. Porém, tratar as vítimas desse descaso público como raras anomalias sociais, e esperar delas a reação mais dramática possível – como eu e muitos colegas esperaram – nada mais é do que um exercício de prepotência. Quem disse que seu Ivan, por exemplo, é obrigado a gostar do cinema? O mesmo para seu Rui, que tem todo o direito do mundo de simplesmente ficar novamente como sono durante o filme.

Vejam bem, não defendo aqui que a sétima arte – ou qualquer uma das outras seis – não sejam de importância seminal para nossa cultura. Muito menos defendo que nos livremos das inestimáveis joias tecnológicas que ostentamos. Mas minha gente, por favor, não vamos tratar aqueles que tiveram vivências distintas do padrão urbanóide como criaturas mitológicas ou celebridades circenses. O que se nota na fala de muitas dessas pessoas é que apesar de animadas, nem de longe encaram a situação com a emoção que ideologicamente esperamos delas.

Mas sou também o primeiro a admitir: fica difícil levar tudo isso em conta quando a maioria de nós guarda tantas memórias cinematográficas. De Woody Allen aos filmes da Sessão da Tarde, é difícil não julgar como incompletas as vidas de quem não teve acesso à essas mídias. Mas que fique claro: elas tem memórias tão boas quanto as nossas. Podem não ser digitais e podem não estar disponíveis a qualquer dispositivo USB. Mas sei que estão lá.

Resumindo: acho incrível a iniciativa de integrar os moradores de comunidades rurais à Mostra de Cinema. Por outro lado, não acho válido o espetáculo criado em cima do fato – ainda que entenda o motivo de tamanha curiosidade com relação a essas pessoas. Resumindo ainda mais: e se você nunca tivesse ido ao cinema, ia querer ser tratado feito capivara em Nova York?

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