A Janela
Parte I
A Janela
Nunca era verdadeiramente noite. A eletricidade os tinha privado do profundo contato com a escuridão.
Em cada bloco de cimento jazia em lustres pequenos sóis artificiais, responsáveis por cerca de duzentas e cinqüenta velas.
Os carros levavam as pessoas para todos os lugares, a todas as horas, a várias distância.
O mundo não para
A avenida larga abrigava nas calçadas meia dúzia de parias sociais: tinham de quintal uma pequena praça e o fluxo intenso de pessoas garantia a manutenção da miséria de cada dia.
Mulheres executivas inflavam seus potencias intelectuais em sutiãs de bojos e meias calças pretas.
Homens de terno, shorts, jeans, jaquetas
Todos em busca da máxima impessoalidade.
Pastas, xérox, senhoras negras de cabeça baixa descendo e subindo pelo elevador de serviço.
Jovens de luto pelo século vinte um, olhos pintadas, carrancas, caveiras, guitarras desafinadas, gritos roucos do punk rock underground urbano contemporâneo.
Engraxates nordestinos proferem a BÃblia tal qual Guimarães Rosa.
Ambulantes organizados salvam nossas piratarias - nossas impossibilidades de consumo - da última batida policial.
Da janela ampla, em meio à madrugada nunca silenciosa, nunca escura, tudo parecia incrivelmente perdido.
Os olhos vermelhos poluÃdos e exaustos no metro: japoneses, paraibanos, estadunidenses, venezuelanos, gaúchos e cuiabanos, no fim, depois de um tempo, depois de se integrar ao caos e ao movimento incessante do café expresso da paulista, já eram parte da indistinguÃvel massa de paulistanos.
E daquela janela, o céu era vermelho e sem estrelas...
E as flores da praça
Nunca tinham sido tocadas sem pretensão.
E daquela janela ampla, de bordas pretas, aquela moldura de um retrato urbano, a inspiração vinha pingada, sombriada, sem viço, sem brilho.
Os guarda-chuvas formam mosaicos: rosas, cravos, pretos, amarelos, quadrados, desenhos infantis, e mais pretos, rosas, vinho, sóbrios, extravagantes e alguns transeuntes molhados, enquanto isso, trinta pontos de alagamento assolam a capital.
E naquela madrugada, pela janela, um vidro estilhaçado, uma grade baixa, os arranha céus vedavam o horizonte e o cinza era o tom primordial: do humor, dos ternos, dos olhos, dos atos.
O texto continua em Janela II e é interessante como a poesia nasce da desoloção e do desarranjo urbano, fazendo de uma escritora desavisada, espreitando pela janela, sua portadora. Ela, que nem ama as cidades.
Vivianne
Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!