Por brincadeira, abriram-se os portões e, irascÃvel, fugiu o diabo para nunca mais. Por brincadeira, aqui mesmo, na casa da minha vizinha, o marido matou a esposa e seus quatro cachorros depois de uma noite escutando Waldick Soriano sentado no sofá da sala. Por brincadeira, o Brasil perdeu a Copa da Alemanha, em 2006. Por brincadeira, por brincadeira – a Carlinha arranhou-me e, em seguida, cuspiu-me o rosto.
Tinha inventado uma nova dieta com base em receitas naturebas. Detestava o termo com que batizara a nova etapa que Carlinha vivia: longe de carnes vermelhas, azuis ou laranjas, dedicava-se a uma dieta ultra-balanceada, composta por mil e um ingredientes naturais. Em menos de um mês, parecia mesmo outra mulher, os cabelos tornaram-se brilhantes, o rosto, antes soturno, vestira-se de um rosa espetacular. Até as fezes de Carlinha tinham mudado de textura e tonalidade, passando do escuro ao claro num piscar de olhos. Não que lhe fiscalizasse a bosta, apenas percebera a mudança, pura e simplesmente. Muitos anos de uma inescapável convivência nos tornam assim: perceptÃveis. Sabemos tudo um do outro – tudo.
Outro dia, Carlinha, pernas cruzadas sobre duas almofadas que havia comprado num bazar no Centro da cidade, óculos novinhos que o pai, gerente de um hotel na avenida Beira-Mar, lhe comprara. À primeira vista, não dava mostras de que estivesse mesmo viva ou, se estava, que transitasse neste plano, o das coisas terrenas. A seu lado, devorava uma maçã. A cada mordida, nacos da fruta desprendiam-se com um barulho gostoso. Mastigava tudo pacientemente. Súbito, Carlinha vira-se:
“Trouxe a receita?â€
“Qual?â€, pergunto distraÃdo. Com o canto do olho, percebo rápida contração no canto dos finos lábios da esposa. “Como qual?!â€, as pernas já descruzadas. “A que eu tinha pedido hoje de manhã, Marceloâ€.
As mãos crisparam-se em volta do controle remoto. Carlinha perdia fácil o controle, logo estava transtornada sapateando através dos quartos, indo e vindo, indo e vindo, olhava-se no espelho e logo percebia uma outra ruga imaginária, voltando-se frustrada em minha direção.
“Tá vendo isso aqui?â€, apontava com o indicador alguma região entre o olho e a narina arfante. “Amanhã, graças a você, Marcelo, isso aqui, esse pedacinho da minha pele estará parecendo a Falha de San Andréas!â€.
Que exagero, pensei enquanto me levantava da cadeira para atirar ao lixo o que ainda restava da maçã. Carlinha, possessa, colocou-se em meu caminho. Não tinha mais que 1,65m e a metade do meu peso. Encarei-a e, sem perder a calma tampouco a ternura, tentei driblá-la como um atacante ao goleiro. Deu um passo para o lado, impedindo a minha passagem novamente. Exalava um odor de hortelã, não sabia se proveniente do hálito ou das axilas. Afinal, tinha um bom número de cosméticos à base de hortelã.
“Sai da frente, Maria Carlaâ€, pescoço e membros subitamente enrijecidos.
“Não saio, João Marceloâ€, provocante.
Deu-se, então, o inevitável: roupas despidas à velocidade da luz, mãos e braços enroscados, cabelos desgrenhados – no calor da tarde, maçã e hortelã fundidos numa mesma receita, que, ao final, teve por bem incluir alguns arranhões e cuspidelas na face. Por brincadeira, repetimos tudo, inclusive as falas, por todo o fim de semana e ao longo da semana seguinte até que, cansado, trouxe-lhe a receita das almôndegas de soja.
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