Joelma colonizada - parte II

Percebeu ser inútil despir-se da confusão e medo, cujas presenças não eram negociáveis; poderia, no entanto, cobri-las. Desfez-se de qualquer expressão, restando-lhe a face murcha flácida, mera lembrança da sólida indiferença da patroa. Atingira, ao menos, um certo grau de neutralidade, e a sensação primeira do desonroso sucesso foi euforia. Conseguira colocar uma máscara sobre seus anseios e, ainda, pintar um sorriso sobre ela. Por desejar nada além de um papel coadjuvante no insosso palco das relações sociais, Joelma quase se deu por satisfeita. Parecia, apesar de tudo, ainda vestida de Mentira, pelo que, a contragosto, a faria o pícuro da peça, ridículo e exposto sob os holofotes. Precisaria convencer a si, antes de interpretar-se. Tremeu, pois, enfim, estava pronta. O espelho não mais mostrava os rígidos limites de seu caráter, mas, sim, uma massa maleável com a qual compôs sua própria tela inerte. Nesse exato instante, algo nascia em Joelma. Nascia? Não; vinha de longe, estrangeiro, alienígena, um exógeno desconhecido ao qual se habituaria. Portanto, corrigido: algo aportou em Joelma, flagrou-a desnuda; vestiu-a.

Quase não houve tempo para elaborar as novas feições de gesso, o sol não se ergueria por muito mais, e havia almoço a ser feito. Como custou-lhe cozinhar! Os aromas tão conhecidos remetiam-lhe a uma já nostálgica pureza. Fosse guiar-se pelos impulsos, escancararia os olhos diante da textura dos legumes, forçaria o cheiro do feijão pelas narinas bastante abertas, exclamaria a cada prato terminado com esmero. Mas não, Joelma não cederia; ceder aos primeiros instintos seria voltar por um caminho demais atribulado. Preparou os alimentos mecanicamente, permitindo-se um erguer de olhos vez por outra.

Foi chamada à sala, a família tinha fome. Poucos instantes atrás, não suportaria o regresso à cena do primeiro encontro. Agora, embora o temesse, não importava; tinha, a vestir, a postura que melhor servisse à ocasião. Adentrou o recinto, ao que recebeu polidas exclamações, pois era apresentada aos demais membros. Não mais havia perfis. Poderia ser apenas um rosto, mas eram quatro em quantidade. Fosse ensaiado, não haveria melhor sincronia. Contudo, a uniformidade das fisionomias era estática a tal ponto que pesou, por um instante, sobre a composição de Joelma. O momentâneo vacilo não desapercebeu-se aos demais: como um só fossem, os olhares intercalavam o prato e o televisor, posicionado de forma que todos o tivessem em vista. O programa em questão Joelma conhecia bem, muita comida havia ido ao chão pelas gargalhadas costumeiras do almoço em sua casa. Riria agora? O apresentador fez o possível e, em partes, foi bem sucedido. Houve uma Joelma a contorcer-se, rente ao chão, despida, latindo de gozo, mas esses sons caninos e sinceros foram ouvidos somente pela própria, voltando à cozinha, vestida pelo silêncio.

A Joelma canina e nativa chorou, em contrapartida, por toda a tarde; qualquer sentimento que preencha as paredes anônimas da solidão satura-se em tristeza. À família, pareceu-lhes adequada a nova doméstica, alheios que estavam ao lamento mortificado pelas regras anêmicas de uma civilização que não se percebe. Com as últimas luzes do crepúsculo, findava o primeiro dia na casa. À soleira da porta, dos perfis despediram-se.

Ao decorrer da volta, nos cômodos interiores, fizeram-se os soluços em absoluta melancolia, que nada é alem do bolor das lágrimas. Mas Joelma esquecia-se em si, já não refletia sobre o que um dia fora; habituara-se ao inquilino, pensava-o indispensável. Tanto é que, indagada, aos gritos de pleno interesse, sobre a primeira vez no emprego, não esitou:
- Foi é bom.
Joelma vestida, Joelma colonizada.