A vida de andarengo, desconsiderados alguns efeitos indesejados, proporciona privilégios os quais um cotidiano arraigado a um único lugar dificulta.
E, assim sendo, o viajante contumaz, alijado de qualquer rotina além daquelas dos aeroportos, rodoviárias e postos de combustÃvel, quando não está em serviço, tem a agenda livre para experimentar o que as circunstâncias, o poder aquisitivo e o desejo lhe indicam.
Foi deste jeito que, no intervalo de uma semana, em Curitiba, uma das cidades brasileiras em que muitos trabalhadores flutuantes estabelecem seu meio de vida, o andarilho atento pôde desfrutar de dois momentos Ãmpares de paixão e prazer.
E, no Brasil, se pode classificar assim, de modo majoritário, se não consensual, entre outras, duas manifestações da criatividade humana: o futebol e a música.
Na quarta-feira, 8 de junho, foi jogada na capital do Paraná a última partida de uma das competições nacionais de futebol; na terça-feira seguinte, 14, foi tocado um concerto para fagote solo com a série de 14 valsas de um grande compositor brasileiro do século XX.
No primeiro evento, um público quinhentas (500) vezes maior; no segundo, um preço de entrada dezesseis (16) vezes menor, considerados os valores cobrados pela cadeira superior e plateia inteiras, respectivamente.
Para o leitor de latitudes menos afastadas do zero equatorial é interessante ressaltar que, nesta época do ano, as temperaturas é que estão próximas a zero no sul do paÃs. Portanto, segue-se fácil a identificação de mais um caráter do público presente ao futebol numa semana e à música noutra: além de apaixonados, valentes. Mas há fundadas suspeitas de que apenas um único expectador esteve presente aos dois momentos consagrados à bola e ao fagote. E ele era um andarengo.
EspÃrito livre, compromissos nenhum, obrigações sociais adiadas até o fim de semana, ele esteve lá, alternando-se entre a esfera e o cilindro, entre o estrépito e o murmúrio, entre o popular e o erudito, entre torcedores de todos os jeitos e fagotistas e amantes de música 'clássica'.
Sem ter qualquer porquê na cabeça replena de por quês, até hoje tentando compreender números tão dÃspares e aparentemente contraditórios, o andarengo concebeu uma certeza provisória a compartilhar: é uma prerrogativa extraordinária fruir a vida assim, num intervalo tão curto, em momentos tão diversos e tão igualmente apaixonados e prazerosos.
Crônica.
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