Ponto cego

anacris 2010
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Ana Cris · São Paulo, SP
21/3/2010 · 1 · 0
 

[ Ponto cego ]

Frustrada. Sinto-me assim hoje e daqui a pouco encontrarei Luca de novo. Vamos fazer a divisão de todas as nossas coisas e ainda não decidimos como dividir o cachorro. Tenho a sensação de que deixei alguma coisa passar sem perceber, como se estivesse escondida num ponto cego da minha visão. Essa coisa manteve-se oculta por tanto tempo, se bem que nem sei o quê e nem quanto tempo escondeu-se. Quando comecei a criar meus projetos tinha muitas vezes a ilusão de que havia feito algo novo e na volta para casa via tudo que desenhara passar diante de meus olhos, um beiral aqui, uma janela dali, a cor de um carro, a vibração de uma vitrine. Frustrada, ficava frustrada e refazia tudo. Porque tem uma idade, uma fase da vida em que só o que importa é a novidade. Na faculdade não era diferente. “Arquitetura como invençãoâ€, um professor disse-me isso uma vez.

Chegou! Saímos. Nossos advogados conversaram. Mal nos olhamos. Divórcio amigável é mais rápido, insosso. Nosso cachorro vai morar comigo, fiz questão, pura vingança, Bob gosta mais dele do que de mim. Fiquei com vontade de dizer para ele que descobri que nunca estive apaixonada por ela, que ainda o amava. Não deu tempo, também não quis perder a viagem. Assinamos.

Liberdade é uma roupa estranha de se vestir. Brigamos por ela em algumas instâncias, porém em outras é quase um fardo. Tanto investimento afetivo, lenços de papel, pílulas, preservativos, motéis, casamento, presentes. Espólio ainda em vida. Todo um rearranjo familiar é despendido com a separação de dois entes queridos. Todo mundo vira ex.

O fim, se não for morte, é uma nova chance. Pensando assim encerrei carreira, adiei a pós, as especializações vou protelar até quando puder deixar todo o resto de fora. Postergar pode ser sabedoria ou covardia. Que merda! Até respirar anda difícil, profundamente, respirar fundo. Ser profundo, todo mundo tem um fundo, de sabedoria, de moral, e eu virei esse espelho d’água. Preciso fazer um balanço honesto do que pretendo. Colocar ‘is’ nos meus pontos. Porque o ponto sem o ‘í’ é final ou reticências ou dois pontos, é um símbolo versátil, e o ‘i’ sem o ponto é só um ‘ele’ nanico, nem dá para usar no falo nem na vala. Tenho grana para me virar por um ano, com a venda do apartamento quitarei umas dívidas e o aluguel e comida estarão garantidos por um tempo. Será minha grande fuga da zona de conforto. Não deveria procurar o contrário? Espero que essa instabilidade seja oportuna. Disseram-me que será meu ano sabático, achei bonito, deixei que falassem assim. Vou tentar fazer coisas boas, nem lembro mais quais eram meus talentos. Minha mãe conversou comigo sobre uma passagem bíblica outro dia, parece muita chateação para uma libertária, mas já fui católica:

"Pois como será o homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens. A um deu cinco talentos, a outro dois e a outro um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e então partiu. O que recebera cinco talentos saiu imediatamente a negociar com eles e ganhou outros cinco. Do mesmo modo o que recebera dois, ganhou outros dois. Mas o que recebera um, saindo abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor."


[ Zapeando ]

“Governador chora com possibilidade de perder ‘royalties’ do petróleo.â€

“Avó desesperada acorrenta o neto na cama para não vê-lo se drogar novamente.â€

“Mais uma vítima das enchentes de São Paulo é sugada para dentro do bueiro.â€

““Marido esfaqueia ex-mulher após vê-la flertando com a melhor amiga.â€â€


Tremi nas aspas, tudo bem que esta última manchete foi delírio meu, mas meu coração disparou assim mesmo. Arritmia é uma das minhas palavras preferidas, de qualquer maneira gosto de sentir o coração confuso.


[ Outra quarta-feira na quitanda ]

- Meu, o que você vai fazer com tantas pitangas? Disse à Rita ao me espantar com a voluptuosidade do seu cesto.

Ela ria enquanto apoiava suas frutas entre outras tantas na cestinha. Deu-me aquele abraço longo e disparou autoritária:

- Você vai passar este final de semana comigo na praia. Convidei umas amigas e tem gente do seu time. Estou tão empolgada.

- Ah não! Time? Por que não estou feliz com o convite? Preciso me acostumar logo, ninguém sai por aí perguntando se uma pessoa é heterossexual. Por que tenho tanto medo que me perguntem se sou lésbica? Ultimamente ando na defensiva.

- Vai ser bom, não gosto de pensar em você sozinha naquela pocilga que alugou. Não me ofendi.

- Tudo bem, você me liga dizendo os detalhes? Vou pôr o meu melhor sorriso para sair. Dei uma prévia.

Rita ria e dizia que eu era linda, para não me preocupar com nada e começou a ser hiperbólica para levantar minha estima, constrangimento inevitável. Na verdade não sou bonita, já passei da fase de achar beleza a única saída. Somos de matizes diferentes, os seres humanos, eu pertenço à dos ‘nem’. Nem feia nem bonita, nem gorda nem magra, nem alta nem baixa, nem popular nem erudita, nem são paulina e nem corintiana. Andava perigosamente na média, não na mediocridade. Como não sou amarga, as pessoas evitam dizer-me feia. É gentil. Na saída da quitanda uma maçã rolou até meu pé, pulei, resolvi não chutá-la para baixo da bancada desta vez. Melhor ficar visível.

As pitangas eram para geléia extra. Muita geléia.

[anacris- 19/03/2010]

Sobre a obra

Assunções e desvelos - final.

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Ana Cristina de Souza
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