Todas as possibilidades

anacris 2010
1
Ana Cris · São Paulo, SP
22/4/2010 · 2 · 0
 

[ memorial ]

Lembrei das mulheres que me atraiam na adolescência: Paula Saldanha e mais tarde, Ilze Scamparini. Estranho, tinha uma queda por jornalistas e por essas figuras femininas saídas dos quadrinhos de Crepax. Bonitas com lânguidos cabelos compridos. Outro dia vi as duas pela televisão, a Paula e a Ilze, programas diferentes, continuam donas de seus cabelos compridos. É, comecei o meu “lesmorialâ€, ou memorial de uma lésbica perdida, poderia chamá-lo “muro das lamentações?â€.

Não vou começar com autopiedade, morro antes. É difícil ser um neófito quando as pessoas supõem que saibamos tudo. Sempre esqueço de devolver a pergunta quando sou atacada com “o que você quer da vida?â€. Como se alguém tivesse certeza do que quer ou do que pode querer. Se bem que parece simples...Vou treinar uma resposta: “O que eu quero da vida? Eu queria, ou melhor, quero, quero, ainda quero, todas as possibilidadesâ€.

Luca já conheceu outra pessoa. A nova do ex, aquela vaca! Estão morando juntos no Morumbi. É um bairro bonito, meio inacessível. Prefiro a Bela Vista com seus acessos e abscessos. Massa! Sempre esbarro com seres que já perderam o sentido da humanidade. Vi uma mulher fazendo xixi a céu aberto, encostada num muro como se estivesse num vaso sanitário imaginário. Uma louca privada pública. Também me deprimo quando desço a Brigadeiro e vejo um senhor maltrapilho parado com olhar alucinado. Na volta encontro ele em outro ponto da rua, sinal de que consegue se mover, mas nunca o pego em movimento. Sempre o vejo parado, como se fosse uma estátua que é carregada por alguém, provavelmente outro louco. Tenho medo de enlouquecer, não sei de onde vem isso, e não poder mais tomar conta de mim.

“Planet Earth is blue and there’s nothing I can doâ€. Escuto Space oddity quando estou entristecida. Gosto de cavar fundo minhas fossas, ficar fora de órbita. Não fumo, mas bebo muito.

Tinha um amigo que gostava de experimentar tudo, álcool, pó, pílula, agulha. Não havia restrições, comedimento ou sensatez em seu dicionário. Um dia comprou um revolver e experimentou uma bala na cabeça. Sempre bom deixar isto para o final da lista.

É cinismo fingir que não ligo, que superei a separação. Todo mundo tem seu papel bem marcado nesta farsa. Se não interpretar o meu, outros cairão. Não teria tanto chão para conter as máscaras que despencariam de uma só vez. Continuísmo é a chave para esta fase do meu drama.

Peguei-me com um pensamento estranho sobre meu ex-marido. Não sei se sinto mais falta dele ou do meu casamento, de andar com aliança, símbolo máximo de um estar contida em algum contexto. É que parecia uma lanterna acesa no fim da estrada, um porto que todo mundo deve se atracar um dia. Quase soltei um: “Pelo menos já tinha me livrado dissoâ€. Tinha a sensação antes de casar que minha vida estava em suspenso. Aguardando a construção de um lar, era quase um dever para mim, formar uma família, ter casa, cachorro...Filhos? Nem sei mais se quero tê-los. Melhor não espalhar meus genes por aí. Adoro o que Machado de Assis escreveu no final do “Memórias póstumas de Brás Cubasâ€: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa misériaâ€. Às vezes me considero um vírus que precisa ser aniquilado. Melhor não me reproduzir.


[ na quitanda ]

A Rita percebeu pelo meu duplo abraço que eu não ia lá muito bem. Arrastou-me para a casa dela, prometeu-me uma torta de banana. O que explica ela só ter escolhido bananas maduras naquela tarde na quitanda. Ela sempre tenta me curar com comida, doces principalmente. Engordam mais que ajudam, porém o carinho compensa.

Enquanto o café coava num filtro de pano, é mineira, dizia-me que tudo iria melhorar. De um modo estranho o que ela falava combinava com o barulho de café caindo no fundo do bule de ágata azul. O sol estava se pondo e da sua janela os raios laranjas delineavam ternamente sua figura. Serviu-me café e torta esfumaçando de quente. Estava precisando tanto dela e nem sabia.

- Você já conheceu alguém, quero dizer, uma mulher? Ela perguntou com um indisfarçável sorriso e esperou minha resposta com a boca cheia de torta.

- Não, se a pergunta for a respeito de encontros românticos e sim, se for para amizades femininas em geral. Respondi olhando para o fundo da xícara, desapontada com a falta de novidade.

- Sei do que você precisa. Fui desastrada da última vez por lhe apresentar meninas que não escutam as mesmas músicas que você e nem veem os mesmos filmes, mas fiz umas pesquisas...

- Que pesquisas? Interrompi assustada, mas antes pensei em quais atributos procuro nas mulheres. Os mesmos que os dos homens? Talvez só um: senso de humor, o resto são desdobramentos.

- Só estou tentando ajudar.

- Rita, você havia me prometido não ser mais minha alcoviteira. Eu vou sair dessa, no tempo certo. Algumas pessoas se curam mais rápido, eu gosto de curtir as feridas. Não me sinto atraente assim sem defesas.

- Você está sem defesas ou está cavando uma trincheira para se proteger de novo? Sei o que está fazendo, está evitando seu problema.

- Meu problema? Olhei para a janela sem achar resposta.

- Você está com medo de novo, de se envolver. Não adianta vestir essa pele de confusão sexual porque não cola. Conheço suas convicções e perplexidade nunca paralisou você. Acho até que você é a única pessoa que conheço que lida com a complexidade sem ter medo de se sentir perdida. Com você não há constrangimentos em não se saber as respostas porque a sua força motriz é isso: a busca. Acho que o que move você é sua fome de aprender. Quando era pequena você não ligava mais para os brinquedos que já sabia como funcionavam. Queria algo novo, desconhecido. Você demorou tanto para dividir sua vida com alguém. Se o Luca não fosse insistente...Bom, não quero ver você de volta ao ostracismo. Fico assustada com sua capacidade de ficar tanto tempo longe de todos. Como acha que me sinto? Totalmente excluída da sua vida.

Nos olhamos, eu procurando conforto nos olhos da minha amiga e ela tentando adivinhar no que eu estava pensando agora. Terminamos a tarde falando amenidades. Agora já acho que a permanência é melhor que o continuísmo. Este parece manobra política e eu odeio manipulação.


[ sonho com lembranças ]

Passei por uma porta azul sem precisar abri-la e só assim percebi que estava sonhando. Cada quarto onírico dessa casa que havia entrado me levava a um lugar familiar. Lembranças de infância? Era uma criança tão introspectiva que parecia que havia engolido o mundo para não precisar enfrentá-lo. Também tive uma fase maluca onde delirava com bilhetes esquecidos debaixo do meu travesseiro. Minha terapeuta disse-me que era vontade de comunicação. Ainda tenho problemas com telefones, celulares e portas.

No sonho dava essas voltas malucas por acomodações fantásticas enquanto ouvia uma mesma música, não lembro como era, mas não acredito que era mais que um som. Parecia um sonho bipartido porque ao mesmo tempo ouvia a narração da minha infância com a voz da Valéria Grillo, o que era delicioso porque é a voz feminina que mais adoro. Morreria feliz se ela fosse a última pessoa que ouvisse...

Se minha vida fosse uma série de tv seria “Além da imaginaçãoâ€. Quão bizarro é o mundo e qual intensidade deve ter até a reação chegar? O ponto de ruptura é um momento muito calculado nas aulas de resistência dos materiais. É importantíssima sua determinação para a escolha da estrutura certa. O esforço deve ser proporcional ao que aguentamos? Nem eu acredito nisso. A gente pode até tentar evitar esse momento de ruptura, mas às vezes a vida nos traz uma carga pesada demais e o que não se pode mais conter estoura. Meu professor dizia que quando a gente escuta o estalido do concreto se rompendo só há uma coisa a fazer: correr.


[anacris – 20/04/2010]

Sobre a obra

Desdobramentos - parte 1

compartilhe



informações

Autoria
Ana Cristina de Souza
Downloads
392 downloads

comentários feed

+ comentar

Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.

baixar
pdf, 8 Kb

veja também

filtro por estado

busca por tag

revista overmundo

Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!

+conheça agora

overmixter

feed

No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!

+conheça o overmixter

 

Creative Commons

alguns direitos reservados