Quando o fio da vida é rompido após o avançar dos anos, o último suspiro costuma ser suave. A morte não chega de modo abrupto. Ela se aproxima aos poucos, dia a dia, e nos alcança quando estamos prontos para recebê-la, aguardando-a em um universo particular.
Nesses casos, a morte é um processo contÃnuo. Morre-se diariamente, no sepultamento de cada amigo ou no abraço de despedida dado à queles que vão para distante, levando consigo a cumplicidade das momentos vividos em comum. E esses momentos passam a ficar acumulados em nosso peito. É impossÃvel rememorá-los com igual emoção na companhia de outrem.
E cada despedida é também uma interrupção em nossa história, fazendo cessar uma sequência de sorrisos Ãntimos, de olhares que se compreendem, de abraços aconchegantes.
Morre-se lentamente também com a mudança dos valores. Aos poucos, a moral que nos define enquanto pessoa segue seu destino de tornar-se obsoleta, fazendo-nos ultrapassados, exóticos até em nosso próprio seio familiar. Com isso, vêm os conflitos e a sensação de que não evoluÃmos, ficando presos a outro tempo, a um passado que se torna mais distante a cada página virada do calendário. Passamos a ser vistos, então, como seres imóveis no tempo e no espaço, alheios aos acontecimentos e aos sabores da vida, como pedra ou árvore.
Morre-se ainda com a despedida de cada Ãdolo – não propriamente pela comoção da perda, mas pelo elo que se desfaz entre nós e os nossos semelhantes. Cada cantor, ator, escritor que parte, é menos uma referência afetiva que teremos em comum com os mais jovens. Eles acalentarão outras paixões, parte de uma estética que jamais compreenderemos, como eles nunca compreenderão as nossas – ou pior, talvez as novas gerações sequer ouvirão falar dos artistas que nos emocionaram e fizeram nossas cabeças.
Com a passagem delas, as horas, tornamo-nos arcaicos, envoltos por baús, bibelôs e memórias cujo pouco interesse que provocam nas demais pessoas deve-se apenas à afetividade que elas nos devotam.
Foi assim, envolta em seu universo, que dona Conceição, de 87 anos, faleceu serenamente, durante o sono. Ao seu lado, estava uma blusa de crochê que ela não concluiu, mas que sua neta jamais usaria, embora viesse a recebê-la com um sorriso sincero e retribuÃsse o mimo com um abraço bem gostoso. O pequeno universo de dona Conceição era adornado por fotografias amareladas, onde ela se mostrava sempre sisuda, junto a familiares e a amigos há mais de década ausentes desse plano. Também marcava o ambiente objetos pesados, deslocados no tempo, que destoavam da mobÃlia da casa de sua filha, onde ela se acomodou nos últimos anos, desde a morte do marido.
No quarto ao lado, a neta de dona Conceição, Cláudia, de 21 anos, morre lentamente, precocemente, imersa em um universo tão particular quanto o da avó, porém sem a mesma serenidade da matriarca. Entre sons de Itamar Assunção, imagens de Frida Kahlo e palavras de Kafka, Nietzsche e Hilda Hilst, ela se refugia, arcaica, obsoleta, com ideais aparentemente delirantes, incompreensÃveis à queles que a cercam. Um ser deslocado entre os seus, em seu próprio tempo. Está cansada de enxergar a ausência de encantos, a ferrugem nos sorrisos e de permanecer à espera de que o acaso lhe estenda os braços.
Para Renato Russo
Parabéns pela composição.
Me identifiquei com suas palavras:
"...ideais aparentemente delirantes, incompreensÃveis à queles que a cercam..."
Espero poder ler mais de seus escritos aqui overmundo.
At + 1 abrç overmano.
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