Vidas submersas

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Flávio Herculano · Palmas, TO
27/3/2014 · 0 · 0
 

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Todos os dias, ao entardecer, ele seguia um ritual. Tirava a velha bicicleta do fundo do quintal, montava sobre ela com certa dificuldade, em decorrência da idade já um pouco avançada, e seguia pelas ruas de terra de sua quadra. Engolia resignado a poeira deixada pelos carros que cruzavam seu caminho. Quando o pneu furava, dava um jeito, atrasava-se. Mas não deixava de seguir seu rumo.

Depois, percorria as avenidas largas da cidade, que ele viu, uma a uma, serem abertas pela força dos tratores. Ao longo dos anos, viu aquelas avenidas ganharem asfalto e prédios modernos. Viu um fluxo cada vez maior de carros transitando pelo chão preto. Viu muita gente fazer fortuna, e também muita gente desafortunada. Mas viu tudo sentindo-se a distância, como um filho enjeitado pela cidade.


Porém, nem sempre fora assim. Para ele, nos primeiros anos, Palmas significava um horizonte a mais. Uma cidade que se avistava ao longe, em terras que se estendiam para muito além da sua pequena roça. Um lugar que ofertava a possibilidade de contato com as benesses trazidas pelo progresso, mas que não o afastava da vida pacata que sempre levara. Sentado à porta da casa onde morava desde criança, gostava de ver aquela cidade crescer, recebendo gente de todo o país.


Foi algum tempo depois de criada a nova cidade que sua vida mudou, em decorrência de um acontecimento inesperado que, literalmente, tirou-lhe o chão, afastando-o de seu povoado. Ele passou a ter saudade de sua casinha, da paisagem familiar, quase imutável ao longo de décadas. Saudade de lidar com a terra e dela tirar seu sustento. Saudade do lugar onde viveu a meninice, cresceu, casou, criou os filhos e viu nascerem os primeiros netos. Onde viu envelhecerem seus pais e os enterrou. E onde, antes, seus pais tinham visto envelhecer seus avós e haviam enterrado-os.


Essas memórias lhe remoíam todos os dias, ao entardecer, quando percorria de bicicleta as ruas de terra de sua quadra e as avenidas asfaltadas de cidade, cruzando esquinas e descendo ladeiras até chegar à margem do lago da usina hidrelétrica. Na ribanceira do lago, ele se acocorava para mirar demoradamente o horizonte, na direção onde estava submerso o povoado de Canela: onde estava afogada grande parte da sua história, os seus melhores anos.


Crônica dedicada às famílias do Canela, reassentadas na 508 Norte, que ainda hoje têm que lutar pelo mínimo de infraestrutura, para ter sua quadra asfaltada. Dedicada também a todos os tocantinenses que, apesar das hidrelétricas instaladas no Estado, a grandes custos sociais e ambientais, têm que pagar a tarifa de energia mais alta do país.

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Flávio Herculano
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