Todos os dias, ao entardecer, ele seguia um ritual. Tirava a velha bicicleta do fundo do quintal, montava sobre ela com certa dificuldade, em decorrência da idade já um pouco avançada, e seguia pelas ruas de terra de sua quadra. Engolia resignado a poeira deixada pelos carros que cruzavam seu caminho. Quando o pneu furava, dava um jeito, atrasava-se. Mas não deixava de seguir seu rumo.
Depois, percorria as avenidas largas da cidade, que ele viu, uma a uma, serem abertas pela força dos tratores. Ao longo dos anos, viu aquelas avenidas ganharem asfalto e prédios modernos. Viu um fluxo cada vez maior de carros transitando pelo chão preto. Viu muita gente fazer fortuna, e também muita gente desafortunada. Mas viu tudo sentindo-se a distância, como um filho enjeitado pela cidade.
Porém, nem sempre fora assim. Para ele, nos primeiros anos, Palmas significava um horizonte a mais. Uma cidade que se avistava ao longe, em terras que se estendiam para muito além da sua pequena roça. Um lugar que ofertava a possibilidade de contato com as benesses trazidas pelo progresso, mas que não o afastava da vida pacata que sempre levara. Sentado à porta da casa onde morava desde criança, gostava de ver aquela cidade crescer, recebendo gente de todo o paÃs.
Foi algum tempo depois de criada a nova cidade que sua vida mudou, em decorrência de um acontecimento inesperado que, literalmente, tirou-lhe o chão, afastando-o de seu povoado. Ele passou a ter saudade de sua casinha, da paisagem familiar, quase imutável ao longo de décadas. Saudade de lidar com a terra e dela tirar seu sustento. Saudade do lugar onde viveu a meninice, cresceu, casou, criou os filhos e viu nascerem os primeiros netos. Onde viu envelhecerem seus pais e os enterrou. E onde, antes, seus pais tinham visto envelhecer seus avós e haviam enterrado-os.
Essas memórias lhe remoÃam todos os dias, ao entardecer, quando percorria de bicicleta as ruas de terra de sua quadra e as avenidas asfaltadas de cidade, cruzando esquinas e descendo ladeiras até chegar à margem do lago da usina hidrelétrica. Na ribanceira do lago, ele se acocorava para mirar demoradamente o horizonte, na direção onde estava submerso o povoado de Canela: onde estava afogada grande parte da sua história, os seus melhores anos.
Crônica dedicada à s famÃlias do Canela, reassentadas na 508 Norte, que ainda hoje têm que lutar pelo mÃnimo de infraestrutura, para ter sua quadra asfaltada. Dedicada também a todos os tocantinenses que, apesar das hidrelétricas instaladas no Estado, a grandes custos sociais e ambientais, têm que pagar a tarifa de energia mais alta do paÃs.
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