A última de Clotilde
Clotilde, para os Ãntimos Clô, é uma mulher escrachada, daquelas que faz e não esconde o jogo, ou que diz, diz, diz e não faz. Mas, como ela diria, se a maioria do povo é assim, por que ela, só ela iria destoar? Uma mulher que se garante bem resolvida, que acha que sabe o que quer e que sabe tudo até. Êita, mulher! Tá sempre com aquele discurso: estou em crise de identidade, porque este paÃs, tá, tá, tá... E como fala, meu Deus! A última dela, vocês não sabem. Pasmem, então! Candidatou-se! É isso mesmo, Deputada Federal! Mas, Clô me diga, indagava-lhe um repórter. Notem que ela já se tornara, há muito, uma figura pública e popular para o repórter se dirigir a ela tão sem formalidades. Mas retomando, ele perguntava-lhe: qual é, afinal, a sua plataforma polÃtica? Como assim, plataforma? Ninguém nesse paÃs tem plataforma, e embora eu seja uma pessoa esclarecida e saiba muito bem como administrar a confiança que os meus eleitores me darão, euzinha, só eu tenho verdades que os outros não têm coragem de falar, mas plataforma, ora me poupe! Então, olhando para câmera da verdade, Clô, nos fale, estão todos do outro lado da telinha, esperando curiosos por sua colocação. Insistia o educado repórter. Bom, então, só posso dizer que sou pelo “dual bootâ€. Espera aÃ, dual o quê? Clô se punha a rir e a dar de ombros. Como pode um repórter de um meio de comunicação tão afamado, não saber do que ela estava falando. Santa ignorância! Metáfora, meu bem! Metáfora! Quer dizer, plataformas duplas, com dono ou sem dono, que acessamos quando nos for conveniente. Ah, sei, retrucava o repórter duvidoso. Pois é carÃssimo... Desatava a falar, só parando quando a tal entrevista era encerrada. Mas ela costuma ser educada, e até ilustre quando lhe é conveniente, embora isso não lhe tire o tom irônico e debochado. Aliás, como sabe ser debochada. Credo! Nisto é competentÃssima. Era lógico, ao menos para ela, que arranjar uma plataforma polÃtica não era lá coisa muito fácil, era preciso muita imaginação. Ela era do povo, e não de partido, afirmava eufórica. Partido é só para maquiar a verdade. E ela? Ela era uma pessoa querida e por isso seria deputada. É assim a polÃtica deste paÃs, dizia ela.
Clô é um personagem controverso, daqueles que veste gravata quando necessário associar-se à imagem masculina. Mas, era só dar uma rodadinha e lá estava ela, de vestido de bolinha em tom rosa, uma delicadeza, pronta para demonstrar doçura e feminilidade. Aliás, dizia ela há tempos em seu programa da tarde, minha cara, se você quer ficar elegante, só use bolinhas se você tiver um corpinho Madona, senão vai ser aquele vexame, redonda, uma bola só. Ria irônica, como só ela. Com esses cuidados todos resolveu que para fazer esta campanha, o estilo guerreira era o mais acertado. Como assim, guerreira? Ah, não pensem que apareceu de armadura, não. Que é isso? Ela era m-o-d-e-r-n-Ã-s-s-i-m-a! É assim: ela ouviu em um programa de televisão, resultados de uma pesquisa feita nos Estados Unidos. Eram mesmo supimpas esses americanos, pensava ela. Vivem a pesquisar tudo na vida, são cientÃficos e sabem das coisas. Bom, mas a pesquisa dizia, que o público feminino tem se espelhado, ultimamente, em mulheres fortes, capazes de resolver suas vidas sozinhas, apaixonadas pelo trabalho, decididas e com aquele tom de incansável. Mãe, trabalhadora, mulher... Sabe como é, uma guerreira! Aà ela pensou: mais da metade dos eleitores são mulheres, precisamos delas para definir o pleito. E aà já viu, foi aquele estudo “cientÃfico†de probabilidades. Então ela resolveu, seria uma guerreira! Desde então começou a batalha com o espelho: espelho, espelho meu, existe alguém mais guerreira do que eu? É lógico que o espelho respondia que não, a não ser... Ele pensava para ver se dizia, afinal ela era muito temperamental, e se resolvesse quebrá-lo por inteiro, coitado!E na bucha colocava, a Condolessa que ainda não morreu! Quê!? Ele a deixava indignada, mas como, aquela? Ela lá era guerreira. Aquilo era empacotada demais, sisuda demais, cinza! Ela não, ela vinha das classes populares. Como?! O espelho retrucava. Sim, das classes populares, quer dizer, ao menos o seu pai não era tão rico assim e precisou casar-se com sua mãe, de famÃlia melhor... Bem, ao menos ela era uma figura popular, trabalhadora e carismática, não tinha ela um programa dirigido à s famÃlias da classe D e E na televisão? O que a tornava uma legÃtima representante dessa camada da população. Ah, irritava-se! Aquela lá e eu aqui, poupe-me dessa comparação! Resolvido aquele embate, olhava cismada para o espelho e esquecia-o, voltando a encarnar o seu personagem. Mas o impressionante é que mal apareceu no programa eleitoral, seu nome já era cotado como um dos mais votados. Imaginem a situação! E nem se sabe, se apenas as mulheres a fizeram deputada, eu cá tenho minhas dúvidas. Bom, mas após as eleições, já eleita, um canal de televisão foi à sua procura, para saber dela como se sentia em ser uma das candidatas mais votadas ao pleito de deputado federal em seu Estado, e ela, mal falando de tão emocionada, dizia, quero que o povo saiba, você que me colocou aqui, que eu farei muito por você, a começar pela classe trabalhadora, todo o meu salário vai para ela. Sim, para você trabalhador! Simbolicamente, eu digo. A sua excelência vai distribuir o seu salário, é isso? O repórter perguntava animado. Claro, carÃssimo, e eu não vou pagar os salários de meus empregados domésticos? Essa ajuda de custo, sim porque é muito pouco isso que vocês chamam de salário, diga-se de passagem, você não acha, caro eleitor? Dizia comovida olhando para a câmera. Este dinheiro mal vai dar para pagar aos meus colaboradores do lar, por isso lhes digo, não se preocupem tudo vai dar certo, afinal não estou sozinha, votando em mim, vocês meus caros e minhas caras eleitoras, votaram também em mais dois candidatos (pelo menos) do partido o qual tive que me ligar.Então, mesmo que eu não esteja lá, sei que os meninos que estiveram comigo neste palco, ops! quer dizer, no palanque, vão assegurar as polÃticas para o povo. Porque nós, que somos pessoas esclarecidas, que tivemos mais oportunidades na vida, temos que partilhar, sermos solidários, e nós, só nós sabemos o que é melhor para esse povo que não têm estudo, que vive juntando migalha. O nosso paÃs é de tupiniquins, tudo que fizermos, qualquer coisa tá de bom tamanho, afinal, virava e olhava para lente da câmera e com uma expressão inteiramente irônica repetia seu mote: existe polÃtico sério neste paÃs? Dava de ombros, e nisso o letreiro do jornal começava a subir na tela.
Clotilde é assim. Um tanto avexada, cheia de más intenções que não esconde, e por que precisaria? Assim será o seu mandato e o povo a escolheu para isso. Para deboche da Câmara tão desacreditada, assim mesmo, igualzinho, como só ela sabe ser. O que será de nós, você se pergunta agora. Bom, vamos ver se levamos mais a sério esse pleito, porque Clotilde não dá mesmo para levar a sério, né?
“Qualquer semelhança com a coincidência é mera realidadeâ€
Fátima Oliveira – (08/10) um domingo após o pleito de 2006
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