“O Estado não é mais o motor de nossa história nem tábua de salvação. Na democracia quem salva a nação não é o governo, é a sociedade.”
Fernando Collor de Mello
O pensamento que norteou o ex-presidente Fernando Collor de Mello em sua afirmação relatada acima, instruindo-o a declarar que o Estado já não era mais tábua de salvação e tampouco motor da história, era bastante comum no contexto vivido, o fim do século XX.
Segundo Nogueira (1998, p. 123), “com a posse de Fernando Collor de Mello na Presidência da República em março de 1990, a questão do Estado, em suas múltiplas dimensões, foi levada a posição de destaque absoluto [...]”. O mérito dessa discussão pode ser atribuído, entre outros, a alguns fatores como a ainda forte presença de espectros do regime anterior, o que fazia com que a idéia de um Estado interventor fosse temida. Consideremos ainda que o país caminhava a passos largos para a experiência do capitalismo mundial e, por conseqüência, com sua ideologia, o neoliberalismo. Com esse terreno já preparado, entra em cena uma equipe de governo que usa a cartilha desse modelo para guiar as suas ações.
A intensificação desse discurso fez com que a questão do Estado e sua atuação se tornassem plataforma para as eleições presidenciais de 1989,
Como não poderia deixar de ser, a polêmica ganhou cores fortes no decorrer da campanha presidencial de 1989, quando o neoliberalismo veio a público proclamar que o Estado simbolizava o atraso indesejável e que a construção da modernidade por todos almejada dependia da negação do Estado. Uma de suas máximas preferidas ganharia as páginas dos jornais: “menos governo, menos miséria”. (NOGUEIRA, 1998, p.124).
O Estado a esta altura já era apresentado como um entrave ao desenvolvimento. Assim como o empresariado emergente, o país não poderia ficar a mercê de um agente regulador que bloqueava o progresso social.
A atmosfera de modernidade, os ventos do neoliberalismo, do sonho de liberdade se contrastavam já na época com a realidade social brasileira, representada por uma desigualdade social gritante, como relata Weffort,
[...] Quais são as perspectivas de consolidação da democracia política em um país mergulhado na crise e apresentando um quadro de extraordinária desigualdade social? Que tipo de democracia temos em vista? Como encarar as propostas para um pacto social ou as previsões de um futuro social-democrático para o Brasil? (WEFFORT, 1992, p.12).
Mesmo considerando alguns avanços democráticos, a desigualdade social brasileira constituiu-se em um entrave à consolidação da democracia. Weffort (1992, p.17) observa que “a despeito dos avanços democráticos contidos na nova Constituição, permanece sem solução a questão fundamental da separação entre liberdade política e igualdade social [...]”. Ainda segundo Weffort (1992, p.21) “[...] a ordem política inaugurada no Brasil em 1988-89 reflete um processo de transição no qual essas duas dimensões da democratização tiveram um crescimento extremamente desigual. O aumento da liberalização foi muito maior do que o da participação”.
Essa relação apontada em Weffort coloca a igualdade social como fator condicionante da democracia social. O autor reitera que
Esta é a direção a ser seguida por nossa luta pela cidadania, a fim de alcançarmos uma nova inter-relação entre a democracia política e democracia social, ou, para retomarmos nossos termos originais, entre a “defesa da liberdade política” e a “defesa da igualdade social”. Estamos entrando em um período de intenso conflito social, sob um regime político que se tornará cada vez mais democrático apenas na medida em que aumentarem a organização e a participação populares. (WEFFORT, 1992, p.33).
Esse período de intenso conflito social e de vigência do regime democrático apontado por Weffort no início da década de 1990, é retomado por Santos e Avritzer (2003). Os autores discutem que
[...] a democracia assumiu um lugar central no campo político durante o século XX. Se continuará a ocupar esse lugar no século em que agora entramos, é uma questão em aberto. O século XX foi efetivamente um século de intensa disputa em torno da questão democrática. Essa disputa, travada ao final de cada uma das guerras mundiais e ao longo do período da guerra fria, envolveu dois debates principais: na primeira metade do século o debate centrou-se em torno da desejabilidade da democracia [...] Um segundo debate permeou a discussão em torno da democracia no pós-Segunda Guerra Mundial: trata-se do debate acerca das condições estruturais da democracia[...] (SANTOS;AVRITZER, p.39-40).
O primeiro debate apontado acima traz à luz a reflexão sobre a desejabilidade da democracia, o que tornou o discurso quase consensual. A democracia é apontada como valor e a sua busca “justifica” qualquer ato. O segundo debate refere-se às condições estruturais da democracia. Considerando a visão positiva que se tem da mesma, eis que surge a necessidade de pensar condições para sua implementação. Essas condições vão além de estruturas, passam a compor o cotidiano do indivíduo. Quando isso não acontece, identificamos o que Avritzer (1996, p.136) chama de "hiato entre a existência formal de instituições e a incorporação da democracia às práticas cotidianas dos agentes políticos".
Feito um panorama acerca do debate entre a democracia e suas condições, pretende-se discorrer um pouco mais sobre a necessidade de uma Reforma Democrática do Estado, tendo em vista alguns acontecimentos das últimas décadas do século XX.
A CRISE DO ESTADO E O NEOLIBERALISMO NA DÉCADA DE 90
A década de 90 assistiu uma rápida tomada de posição por parte do neoliberalismo. O Estado caracterizado por sua ineficiência e atraso, como já tratamos, é colocado à prova a todo o momento. O discurso da liberdade neoliberal argumentava contra a intervenção e a regulação estatal,
[...] O cerne do argumento dos neoliberais contra a intervenção e a regulação social ancorava-se no pressuposto de que o novo igualitarismo, promovido pelo Estado de Bem-Estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. (ZORZAL, 1996, p.9)
O neoliberalismo elegeria os temas ligados a “questão social” como responsáveis por essa ineficiência estatal. Opera como se o próprio Estado fosse responsável pela sua crise, daí a necessidade de impossibilitá-lo na busca da reestruturação do mercado.
[...] as atividades e os setores essenciais seriam sempre os mais atingidos pela distorção privatista do Estado, pela sua ineficiência e pelo descalabro das finanças públicas. Educação, ciência e tecnologia, saúde, previdência, habitação, toda uma gama de temas decisivos para o alcance de um patamar aceitável de bem-estar e de uma melhor posição em termos de desenvolvimento [...] A propaganda neoliberal elegeria justamente aqueles temas decisivos da área social como responsáveis pelo déficit público e pelo excessivo gasto estatal [...]. (NOGUEIRA, 1998, p.150)
Utilizando-se da acumulada insatisfação social com o Estado, o neoliberalismo corrobora para a agitação social com slogans que reafirmam a necessidade do controle do Estado pela sociedade. Claramente, esse ataque ao Estado dizia respeito ao seu isolamento em relação ao mercado. O “Big Market” regula suas próprias ações. No entanto, os defensores do argumento neoliberal desconsideram que o mercado moderno é caracterizado pelo monopólio, pelo cartel o que inviabiliza as possibilidades de regulação por meio da concorrência. Desgastada por profundas crises: econômica, social, de representatividade e legitimidade, a sociedade brasileira recebe o ideário neoliberal relegando o Estado à posição de instrumento indesejado.
[...] A crise por que passava o Estado era forte e de vastas proporções. Pareciam então comprometidas as possibilidades de um surto endógeno de auto-renovação. Havia um claro consenso em gestação, apoiado na idéia de que o Estado hipertrofiara-se, funcionava mal, perdera a capacidade de coordenação e precisava ser reformado em suas bases, em sua cultura organizacional, em seus procedimentos. (NOGUEIRA, 1998, p. 155)
A reforma do Estado a partir de atores internos não era vista como possível, pois os “males” apontados eram de razão cultural, já incorporados na formação do mesmo. A reforma deveria seguir o caminho da desprivatização do Estado, de maneira colocá-lo a serviço da sociedade, democratizando seu acesso por parte dos cidadãos, como afirma Nogueira (1998, p.156) “[...] um novo padrão de relacionamento Estado/sociedade, em suma, a recuperação da esfera pública enquanto tal [...]”. Uma proposta de reforma com esses objetivos era algo impensável na década de 90, dado as turbulências, não apenas dos dois anos do mandato de Fernando Collor de Mello, mas de todo o jogo de forças políticas. Definitivamente, a reforma viria se a ela fossem somadas iniciativas para além dos próprios mandatos, que passassem pelo fortalecimento das instituições democráticas do país.
A REFORMA DEMOCRÁTICA DO ESTADO: QUAL REFORMA?
Vencedor do plebiscito de abril de 1993, o presidencialismo brasileiro sofria pelo desgaste de suas ações. Em meados da década de 90 a reforma do Estado tomava o rumo da reforma do presidencialismo. Desajustado pela dificuldade de encaminhamento de uma reforma política propriamente dita, sofria com a desarticulação entre o poder Executivo e o Legislativo e crises de ordem federativa.
Problemas de governabilidade eram, como são em sua devida escala até hoje, comuns pela dificuldade de condução de uma sociedade altamente marcada pela desigualdade e por conflitos. Compreendida como um amplo processo de reestruturação ou estruturação do próprio presidencialismo a reforma do Estado, segundo Nogueira (1998, p.165) “[...]entrou nos anos 90 com uma pauta bem definida, estruturada por quatro movimentos principais”.
Modernizar as instituições básicas da política. Essa medida tinha como justificativa a valorização da representatividade, do sentido da ação política. Estabelecer regras que funcionem é importante para que o estrato social passe a dar crédito ao discurso que é proferido. O incentivo a vida partidária pode ser alcançado se a imagem de seriedade, de organização e mesmo de objetividade for bem “vendida”.
Transformar a estrutura organizacional e o funcionamento do Executivo. Essa demanda arbitra sobre a necessidade de ampliar o controle da Presidência sobre as questões da administração pública. Sua execução deveria acontecer concomitantemente com o fortalecimento do Judiciário. Na atualidade, percebemos que o critério de fortalecimento do Judiciário ganhou muito mais espaço do que a própria ampliação do controle por parte da Presidência.
Compensar o forte desequilíbrio federativo inerente à constituição histórica da República presidencial no Brasil. A constituição de 1988 garantiu uma margem de liberdade aos municípios e estados da República Federativa, porém não legislou com a mesma competência para distribuir encargos e responsabilidades, concentrando-os quase que exclusivamente nas mãos da União. Essa correlação de forças fez, e em certos casos ainda faz, com que qualquer iniciativa de reforma dependa muito da maneira como as mesmas estão colocadas em determinados momentos.
Reestruturar em profundidade e modernizar a Administração Pública. Apresentava-se como essencial uma reestruturação da maneira como era conduzida a Administração Pública, no entanto, uma reestruturação que avançasse para além do simples corte de gastos e cargos. Era, como ainda é, necessário que se mudasse a própria maneira como o poder Executivo se relacionava com a sociedade para o alcance de um novo ideário da função pública, tanto da parte dos beneficiários como dos gestores. A correlação de forças, nesse caso, deve buscar uma possível harmonia entre os interesses e necessidades das duas partes. Buscar também a participação e valorização do funcionário público comprometido e conscientemente engajado, o que Nogueira (1998, p.170) chama de “burocracia ilustrada”.
A reforma do Estado surge no Brasil como um processo amplo e complexo, onde estão envolvidos diversos níveis a serem reformados numa relação de sobreposição. A alternativa nesse caso, como afirma Nogueira (1998, p.170) é “[...] o ataque simultâneo a todos eles – através de uma sucessão de reformas graduais e articuladas, espalhadas num tempo difícil de determinar [...]”.
Afinal por onde passa e para onde vai a reforma do Estado?
Um aspecto relevante para a reforma é a qualificação dos recursos humanos responsáveis no aparelho estatal. Investir em profissionais que desempenhem de maneira consciente as suas funções enquanto gestores ou técnicos corrobora sem dúvida para que a mudança aconteça. São necessários profissionais da articulação, que congreguem em si atribuições que o façam saber ler o desejo da sociedade e interpretá-lo à luz das possibilidades democráticas do Estado.
[...] Pois o fundamental hoje é impulsionar a radical conversão da postura e da mentalidade do servidor público. [...] Profissionais que entendam a importância do espaço público nesses tempos tão mercantis, que não se deixem arrastar pelas promessas abstratas da neutralidade axiológica ou do fim do Estado, que saibam manter a função pública como atividade de tipo especial, vocacionada para o bem-estar comum e a justiça social. (NOGUEIRA, 1998, p.211).
Entretanto, não há como eleger os recursos humanos e a necessidade de qualificá-los como o único fator para a reforma democrática do Estado. Seria atribuir um valor demasiadamente exagerado a ação dos mesmos, assim como reduzir a solução do problema há uma via de mão única, do poder público para a sociedade. A reforma não se reduz apenas a uma Reforma Administrativa, como já foi dito anteriormente.
Há ainda a atribuição de pensarmos a reforma por um viés mais político e menos técnico, na medida em que o maior auxílio para a reforma poderia ser a vontade política, um novo plano de atuação que vise a real transformação. Supomos que um plano assim poderia reverter em algum ganho, porém, cabe analisar se o mesmo seria eleitoral, se com esse discurso angaria-se votos, o que infelizmente faz parte da lógica das forças políticas brasileiras, mas não só.
O problema descrito acima poderia não existir se optássemos por uma alternativa de educação para a reforma democrática do Estado. Apesar de seu caráter hipotético podemos imaginar que um processo de formação do indivíduo que contemple desde sua socialização mais primária o entendimento das questões referentes ao Estado e da coisa pública em geral o habilite a construir estruturas de poder e a se relacionar com as mesmas de maneira mais democrática. É uma possibilidade de reforma que leva em consideração uma transformação cultural, por isso mais custosa e gradual, que tal começar agora?
Nogueira (1998, p.211), recorre a ação da sociedade em articulação com o Estado para propor a reforma, “[...] qualquer reforma do Estado digna do nome não pode se reduzir ao plano da administração, do funcionalismo público ou dos ajustes fiscais, tributários e previdenciários: seu nervo, a rigor, está “fora” do Estado [...]”. Para ele a reforma nesses moldes não passa de um prolongamento da reforma da própria sociedade que passa a fazer com que o Estado trabalhe para ela.
E então? Qual reforma? Vislumbro que a possibilidade de reforma democrática do Estado pode ser cogitada se pensarmos em um plano de ação que contemple todos os fatores da reforma apontados até aqui, que leve em consideração o exemplo histórico, a dinâmica da sociedade e a relação de forças instauradas no país. Uma reforma comprometida com a liberdade, sem perder de vista o fortalecimento estatal, ainda que essas duas variáveis historicamente tenham andado separadas. É mister implementar um pouco mais do que é formulado. A discussão sobre as possibilidades da reforma já acumulam alguma reflexão, entretanto, a ação é ainda muito tímida. Reflitamos sobre a necessidade de erguermos a bandeira de uma militância em prol da reforma democrática do Estado. Considerando toda essa efervescência, somos constrangidos a pensar que falamos de reformas, não no singular da palavra para que não nos percamos na multiplicidade de fatores. Retornamos a pergunta da seguinte maneira: e então? Quais reformas?
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