Crônica realista: Santa Casa de Misericórdia de Sa

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Túlio Damascena · Sabará, MG
28/10/2006 · 9 · 0
 


Minha primeira experiência como paciente interno de um hospital se deu por uma broncopneumonia, foram nove dias de internação. Os números (contra a matemática não há argumento) foram mais ou menos esses: febre, 39,5; pressão arterial, 9 por 5; injeções 18; soro 3 litros; 25 comprimidos de cefalexina; 25 doses de xarope (carbosísteina); li 02 livros, 03 revistas e 04 jornais; assisti a 03 jogos e 03 filmes; tive um celular furtado e recebi umas 20 visitas. Pois bem, um dos livros que li foi “O Cortiço” de Aluísio Azevedo um naturalista que pregava que “o homem não passa de um animal cujo destino é determinado pelo meio social em que vive. Nessa visão, roubam-lhe o livre arbítrio, deixando-o à mercê de forças que estão além de seu controle” e esse pensamento norteou a minha impressão do hospital, como um todo, com seus doentes, seu quadro de médicos e enfermeiros e as doenças, essas que chegaram até aqueles seres por causa do meio social e só estão ali, porque o meio econômico não permite que ele esteja em um hospital melhor equipado.
Aqui se encontra em forma de crônica naturalista e realista minha impressão da Santa Casa de Misericórdia de Sabará.
As grandes janelas emprestam ao lugar um ar de antigamente, de roto em suas enormes pinturas descascadas e um jardim até certo ponto aprazível, porém com suas lagartas, abelhas e formigas que insistem em incomodar os pacientes.
Os pacientes, em sua maioria, chegam com inúmeros casos, porém se analisarmos com um pouco mais de cuidado e afinco nota-se que o que levou aquela maioria de descendentes da dor até ali, foi o dia-a-dia, a luta pela sobrevivência. Em cada caso uma ponta de amargura; um ser extenuado como um burro de carga e sua cangalha podem ser visto em cada olheira que demonstrava o sofrimento que debilitou seu corpo e deixou espaço para que a doença se instalasse. Seja ela qual for: pressão arterial elevada; pneumonia; dor de ouvido; insônia; barriga d’água, doenças de pele, angina, inchaço nas partes íntimas... Depois de uma inspecionada rápida dos médicos, que tem seu nome no quadro de sua “clientela”, os quase moribundos tinham o sentimento de terem se transformado em ratos de laboratório, pois de tempos em tempos eram cápsulas mal cheirosas, acompanhada de injeções de penicilina, buscopan, dipirona e doses cavalares de calmante, o famoso “sossega leão”. A sensação de serem tratados como um objeto era visível em cada um: é como se o médico estivesse ali para tratar de uma parte e não de um todo, com a distância e o desdém peculiar de quem escolheu exercer a profissão no serviço público.
Os enfermeiros são um braço importante neste tentáculo do polvo que salva vidas: às vezes de bom humor, outra hora, nem bom dia. Eles se dividem na tarefa de cuidar dos leitos, ministrar os medicamentos, seja a hora que for e ainda agüentar a fúria dos pacientes com o desaparecimento dos médicos.
Alguns pacientes se familiarizam tanto que já fazem daquele espaço uma extensão de suas próprias casas. E com o tempo, vê em cada enfermeiro, cada agente da limpeza um membro de sua família, pois a família de verdade, conforme o caso, nem aparece mais e esse paciente vai se tornando um estorvo para a vida dessas formigas/famílias que só se preocupam com o próprio umbigo e em juntar bens numa força incontrolável da ganância.
Um caminho sem volta: às vezes eles chegam até lá e nunca mais voltam: soa tão natural que é assunto por dois dias, mas logo depois volta para uma normalidade fúnebre os corredores do hospital.
A limpeza, a cargo de um grupo que se reveza, é feita de modo superficial. Não é necessário forçar as vistas para ver impregnada em cada canto nódoas de sangue e dor e enquanto tagarelam sobre as mais pueris banalidades e passam o pano que não seca nem limpa e muito menos proporciona uma sensação de limpeza que seria o ideal para um ambiente de recuperação.
A alegria dos doentes se reduz a ficar um tempo maior do lado de fora, mas às 18:00 horas é fechado o portão, o que deixa os fumantes inconsoláveis. Mas como eles estão atentos entopem o cadeado e podem muito bem ficar até mais tarde com o frescor sereno da noite e longe daquele cheiro repugnante de suor, gemidos, um ranço só comparado aos animais mal cheirosos: porcos, pombos, cachorros sarnentos.
Uma alegria estranha toma conta de cada paciente quando o médico (ás vezes sem avaliar precisamente o quadro clínico) lhe concede alta. Uma sensação de abandono, misturada com uma euforia de se ver livre daquele lugar, porém com a tristeza de deixar naquele ambiente os novos amigos que, na maioria das vezes não verão mais e que nem tem perspectiva de mudar de vida, talvez será a última vez que conversam.
Enfim, onde falta conhecimento, qualidade de vida, condições financeiras satisfatórias vão faltar também saúde e o ciclo de dor e luta não cessa, enquanto alguns não suportam e se entregam à morte, outros vão lutando a custa de lágrimas para melhorar de vida e poder gozar uma perspectiva de vida mais longa.

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