Finalmente ela me deu uma boa oportunidade de dar o tiro. Pensei em como seriam as coisas caso eu falhasse. Poderia condenar toda nossa operação. Prendi a respiração e criei coragem: acertei, acertei! Quando vi, eu estava gritando feito louco no meio do mato. Acertei!!! Nem eu acreditava no que tinha feito. Após um dia inteiro de perseguição, de expectativa, tinha finalmente acertado o alvo. Os mosquitos rondando minha orelha o tempo todo já estavam me deixando meio maluco. Numa fração de segundos lembrei o quanto investimos nesta missão. Não podÃamos falhar novamente. Assim que ela sentiu o projétil, olhou para nós e soltou um grito. Em seguida saiu pulando na copa das árvores e desapareceu... Acertei, acertei! Saà correndo pelo meio do mato tentando seguÃ-la... Após algum tempo, caà na real e chamei o restante do grupo: “ela deve estar caÃda em algum lugar, precisamos de todos para aumentar a chance de encontrá-laâ€.
A matinha era pequena, alguns hectares apenas, mas densa e com poucas trilhas; e para piorar ainda mais, um muriqui caÃdo passa despercebido a poucos metros de distância. A tensão tomou conta de todo mundo até o momento em que o Brás gritou: Achei! Ela está aqui. Corremos para onde ele estava. Com um misto de alegria, expectativa e aflição, cheguei ao lugar e vi aquela criaturinha desfalecida imersa no capim. - Ainda está viva? Era o que querÃamos saber. Peguei-a nos braços com muito cuidado para não feri-la ainda mais e vi que ela estava aparentemente bem, muito bem. Respiração compassada, pulso bom, coração ritmado. Eu ainda não tinha sentido nada parecido. Uma vida tão frágil e tão perfeita. Meus olhos se encheram de lágrimas, fiquei com vergonha de transbordar. Olhei para o lado e vi o Fabiano chorando como criança...
Este fato ocorreu durante um dia de trabalho no Ibama. Tive a sorte de fazer parte de um grupo extremamente competente que realizou a primeira translocação de muriqui (Brachyteles hypoxanthus) em Minas Gerais, uma das poucas que ocorreram no Brasil. Esperança (só agora, muito tempo após o acontecido, resolvi chamá-la Esperança) encontrava-se isolada num fragmentozinho de mata atlântica no municÃpio de Pedra Bonita. Achamos que ela era muito importante para passar a vida inteira sozinha, isolada, enfeitando uma fazenda e resolvemos resgatá-la. Sua população no mundo, considerando as perspectivas mais otimistas, não ultrapassa os mil indivÃduos. Até o mico-leão-dourado está em melhor situação.
Cinco anos antes de eu começar a trabalhar no Ibama, batizei de uma criança linda, chamada David. Naquela época, minha rotina se resumia a escola e casa, com algumas paradas estratégicas nuns botecos, principalmente os da Biologia e Veterinária, para aliviar o estresse. Até este momento o Ibama só existia em sonho. Um sonho distante, quase inalcançável. Estávamos na era pré-concursos e nem estagiários entravam. De vez em quando, ao descer a Raja, olhada discretamente para a placa de alumÃnio, para o prédio imponente e me resignava. Nenhuma chance. - Serei um grande professor, então! Conformava-me. Ainda não sabia por que eu gostava do Ibama, nem nunca tinha entrado no prédio, nem sabia o que acontecia lá. Talvez este fosse o segredo do meu encanto, porque se tivesse conhecido o Cetas (Centro de Triagem de Animais Silvestres) que existia naquela época, com certeza, meu castelo desmoronaria.
Sabemos que um muriqui raramente sai das copas das árvores, mas Esperança foi muito audaz, atravessou algumas centenas de metros por cercas e pastagens para mudar de matinha. O que ela queria, ainda não sabemos, mas isto quase selou negativamente seu destino. Todos já imaginávamos que ela tivesse sido capturada ou caçada. Se a persistência do Fabiano fosse menor, talvez hoje ela não existisse. Ela teve a sorte de ter sido encontrada novamente e, naquele momento, com ela no colo, lembrei de colocar as luvas e enxugar os olhos. Tirei cuidadosamente o dardo de seu corpo e a levamos até a base da operação. Após os cuidados básicos, ela ficou bem. Hoje, percebo que ela tinha quase o mesmo tamanho que o David ao ser batizado, quase tão frágil e vulnerável. Esperança com alguns anos e David com alguns meses.
Por sorte ou destino, meu sonho se realizou: entrei no Ibama, de forma meio inesperada, apesar de ser por concurso. Quando comecei a trabalhar, não sabia de nada, mas vi que esta Instituição precisava de mim, e de todos os que entraram. Nossos bravos colegas que construÃram de forma belÃssima o Ibama precisavam de reforço, de sangue novo, de ajuda. Infelizmente, vários servidores, entre novos e antigos, ainda não perceberam, mas é uma honra imensa dedicar nosso trabalho à garantia de uma vida melhor para a sociedade brasileira. E é esta vontade, de construir uma nação melhor é que deve balizar todos os nossos atos.
Hoje, sinto uma responsabilidade imensa com ambos. Esperança precisa de mim agora. David precisa da Esperança para viver. As vidas dos dois estão completamente interligadas como também estão a de todos os homens e animais. Para ambos, o Ibama representa uma garantia de futuro, de existência.
Atualmente, Esperança está muito bem. Já se adaptou ao grupo da Mata do Sossego e, se tudo der certo, terá um filhote ainda este ano. David também está ótimo, vai completar 10 anos em junho. É inteligente e articulado. Quem não vai muito bem é o Ibama. Querem inicialmente fragmentá-lo, para num futuro muito próximo extingui-lo. “É em defesa de uma gestão ambiental melhor, pois o Ibama é muito caro e pesado†dizem uns e outros. Já a Marina Silva: “Se der errado eu assumo a culpaâ€.
O que Marina não sabe é que de nada adianta ela “assumirâ€, pois as conseqüências dos seus atos podem não ser sentidas por esta geração. Alguém pode me responder que falta está fazendo a Ararinha-azul? Seria egoÃsmo extremo da nossa sociedade concordar com a fragilização da gestão ambiental brasileira da forma como está ocorrendo. O futuro que Dilma e Lula vislumbram, infelizmente, não passa de meses ou poucos anos. Fica restrito ao mandato atual e, quem sabe, o próximo. Já na Marina, depositávamos grande confiança. Sustentava sozinha uma bandeira muito pesada. Mas ao que parece, após perder para transgênicos, transposição do São Francisco, e agora bagres, ela sucumbiu.
Agora cabe a nós, cidadãos, a resistência. Todos os dias somos responsáveis pela vida no planeta, do muriqui e do David, do mogno e do buriti, do Madeira e do Mucuri, do jaú e do lambari. Cada ação nossa reflete na qualidade de vida da sociedade. O Ibama tem muitos problemas que precisam ser sanados urgentemente, mas em hipótese alguma aceitaremos que cortem nossa perna por causa de uma unha encravada.
Daniel Vilela
Analista Ambiental
IBAMA/MG
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