Em defesa da teoria

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Vitor Pordeus · Rio de Janeiro, RJ
10/5/2008 · 40 · 2
 

Sim, é verdade, sou um teórico. Um teórico num mundo de práticos, onde todos têm que ser pragmáticos, produtivos, eficazes, rápidos. Um mundo onde quase tudo se transformou em linhas de produção de Ford, onde temos que construir ao máximo com o mínimo de tempo. Ah, sim, também sou preguiçoso, odeio trabalho técnico, vai ver que é por isso que sou um teórico, gosto de ficar pensando, fingindo que estou trabalhando. Eu também amo ler, amo os livros, essas obras de arte completas, inteiras, perenes, fiéis para sempre. O livro é o acontecimento estético todo, é o corpo completo da arte. É o livro, e somente o livro, que é capaz de fechar o ciclo, de morder o próprio rabo, é a obra última. Também amo escrever, o ato maior de liberdade, de propor com as asas e o peito aberto, sem medo, sem amarras, na confiança de ser acolhido, de ser entendido, de mover. Por isso tudo eu sou um teórico, isso certamente não me impede de ser prático, ou melhor, isso deveria me fazer um prático mais consciente,"nada mais prático que uma boa teoria". Entretanto, por algum motivo que me escapa entre os dedos, aqueles que são acusados de serem teóricos, imediatamente, são olhados com desconfiança, com desdém, às vezes com insegurança e até com ódio."Ah, você é um filósofo!", o que devia ser um elogio, soa como crítica. "Isso é filosófico demais, um blá, blá, blá!", insisto em me perguntar se não devia ser filosófico demais mesmo, o que não é filosófico nesse mundo afinal? Ou você realmente acredita que haja mesmo uma realidade objetiva, transcendente à nós? Que o que nós estamos fazendo é decodificar o mundo a nossa volta, ou até que a ciência seja objetiva? Nunca reparou que não há diferença entre ilusão e percepção? Que nós construimos, criamos a cada instante, tudo que nos cerca? Que nós seres humanos existimos somente dentro da linguagem, e que é na linguagem que distinguimos o mundo? Sai outro dia em uma revista americana científica um trabalho mostrando que os indivíduos com amnésia tinham enormes dificuldades em imaginar situações cotidianas, como uma briga com a namorada em um bar, ou o encontro com um parente em uma esquina, discutiam os pesquisadores:"Utilizamos os mesmos circuitos neuronais para lembrar e imaginar, ou seja imaginamos o passado e lembramos do futuro. Imaginar o passado e lembrar o futuro, como isso não faz o menor sentido, quando pensamos como fazemos para pensar, não é? Num mundo de tanta incompreensão, onde estamos tão distantes um dos outros, quando literalmente falamos, falamos e não nos entendemos, cada um entende rigorosamente o que quer de acordo com suas emoções, preconceitos, cultura, história. Tudo, tudo a nossa volta é construido, a cada instante, dessa maneira. Inclusive teorias científicas, viu? É por isso tudo que eu sou um teórico, e na minha peregrinação teórica, logo de cara, já vi que uma boa parte do que estamos montados, furou, está equivocado. Uma quantidade enorme do que fazemos em nome do discurso privilegiado da ciência não tem qualquer relação com a mesma, e que talvez, se fossemos um pouco mais teóricos, mais filosóficos, poderiamos pensar pela primeira vez as assunções que fizemos, examinar de perto e de verdade, qual é a origem do que estamos construindo, legislando, escrevendo, publicando, falando na televisão, pesquisando e medicando. Delirando um pouco mais, se todos pudessemos refletir nossas condutas, no melhor estilo teórico e filosófico, quem sabe mandaríamos o trem parar, e mudar radicalmente o modo como exploramos a natureza, como tratamos nossos vizinhos, como cuidamos de nossos pacientes, de como produzimos ciência e tecnlogia, de como estamos criando esse mundo amargo, faminto, poluído, doente. Veríamos assustados o nosso imenso poder tecnológico, o nosso maravilhoso poder de realização, nosso pragmatismo sem limites, nossa melhor eficácia e produtividade, nossa bomba atômica, nosso homem na lua, nossas cidades maravilhosas com seus shopping centers e nos daríamos conta de que isso serviu muito pouco para gerar aquilo que é o mais significativo de nossa própria existência, que a maior parte de nós está passando fome, sem acesso à nada, sem remédio, com uma desproporção enorme de nossos filhos morrendo logo após nascerem no mundo inteiro, sem água limpa, sem nunca ter aprendido a ler e a escrever. Acho que por isso tudo, eu sou um teórico.

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Ize
 

Olá Vitor
não tenho tempo para me estender agora, mas acho que há algumas incoerências neste texto sobre o papel soberano da teoria. Só pra exemplificar, o fato de nos constituirmos seres humanos na linguagem, como vc defende e eu concordo plenamente, já inviabiliza o que vc defende como sendo o papel da teoria.
No que se refere ao papel da teoria nas pesquisas em ciências humanas e sociais, se fossemos acatar isso que vc defende estaríamos voltando à tendência positivista que aprisiona a empiria na teoria, não permitindo avançar um passo em relação à transformação. Tenho aprendido cada vez mais que precisamos demais de teoria, mas como hipótese e não pairando soberana sobre nossos objetos que, nas ciências humanas e sociais são sujeitos, que se constituem na linguagem.
Abrçs

Ize · Rio de Janeiro, RJ 12/5/2008 10:52
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Vitor Pordeus
 

OI Ize,
entendo seu ponto de vista, acho que precisamos mesmo é trocar, pois no que refere ao papel da teoria na biologia e na medicina, que são os meus pontos de partida, precisamos de fundamentalmente de desenvolvimento teórico-filosófico... um resgate do que foi a filosofia natural, completamente esmagada pelo pensamento tecnocrático-tecnológico que domina estes setores do pensamento humano. Esse texto decorreu do tratamento que a "teoria" de um modo geral é tratada na sociedade industrial-eletrônica.
Obrogado por comentar.
Um abraço,
Vitor

Vitor Pordeus · Rio de Janeiro, RJ 13/5/2008 01:19
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