Eu, Jeca Tatu e as turras da escrita

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Miguens · Rio de Janeiro, RJ
19/2/2009 · 45 · 0
 

Tá bom, eu sei. O meu artigo já vai mais atrasado do que Jeca Tatu...

Acontece que o dia de ontem fez com que eu me lembrasse das letras de minha avó, palavras velhas, aprisionadas em velhas turras da escrita, é que ela tomava à sério flôres e côres que pareciam coisa muito carrancuda aos olhos da minha escrita de menina moderna.

Foi porque ontem quando liguei a televisão estava lá uma mulher com o giz na mão ainda explicando (ou confundindo) um punhado de novas regras gramaticais na TV educativa. Pausei seriamente os olhos na tela, de fato disposta a apreender todas elas, mas a coisa entravou. Essa simples mudança não esconde o que exige de nós: uma grande façanha. Se Sarney gostou Carlos Heitor Cony disse que não está bom, que é besteira, coisa inútil. Sarney é bom de lábia, mas Cony é bom de língua – por isso fico com ele nessa. O que me dividia era uma lembrança esparsa de uma nota sobre ortografia formalizada por Monteiro Lobato no prefácio de Urupês – é obvio que não é difícil discordar dele, mas eu confesso que não gosto. Abri o livro hoje pela manhã para refrescar a memória e ficar de bem com o mestre.

A lei do menor esforço orienta a evolução das línguas. Fato? Honestamente, isso eu não sei. O que eu sei é que a mim me custaria mais falar latim do que português. Quem pensa que isso é uma piada não entendeu o que eu disse: se pensamos em simplificação da grafia pensamos por outro lado em sofisticação dos vocábulos. Urupês suprimiu os acentos e as letras dobradas, mas legou ao dicionário setenta e tantos vocábulos frescos. Para onde vai a língua então? A língua vai para onde quer e sabe o seu próprio caminho – é indomável como as idéias de Jeca Tatu.

Será? Em um mundo melhor sem dúvida seria. Monteiro Lobato viveu a velha reforma ortográfica que impôs à língua tudo aquilo que a nova reforma ortográfica bota abaixo, “(...) a criação de acentos novos, como o grave e o trema, bem como a inútil acentuação de quase todas as palavras, não é desenvolvimento para a frente e sim complicação, involução e, portanto, coisa que só merece pau, pau e mais pauâ€. O que está dado hoje é o oposto, e justamente agora quando já estamos tão apegados a todos esses sinais! Um processo de enxugamento da grafia de determinadas palavras. Sim, para quem não sabe se em “leem†o acento cai no primeiro ou no segundo “e†está aí um grande adianto. É isso. A língua, assim como a economia, não se presta às leis desavisadas. Monteiro Lobato protestava contra o desrespeito das leis à sabedoria. O que eu subscrevo são as minhas dificuldades pessoais. Eu protesto contra o desrespeito das leis ao hábito, é isso. Agora, entendo vovó.

Na mão dos homens errados a almejada simplicidade assume via de disposição bélica, e foi assim que enquanto os franceses acentuavam a vida os ingleses dominavam o mundo. Se a disposição bélica está na língua é porque está no homem. E assim foi e é. Uma língua vai pirambeira abaixo ou céu acima na boca daqueles que a vivenciam – e eu digo vivenciam porque só falar é pouco. O inglês passou o rolo compressor no mundo, não digo o inglês dos livros e do dicionário, falo do inglês de bigode penteado e armado até os dentes, isso porque o único e verdadeiro gentleman é o literato. Não é por acaso a enorme correspondência entre os textos de Faulkner (um gentleman norte-americano) e Monteiro Lobato (um gentleman brasileiro). Jeca Tatu, nascido no Mississipi, ainda é bastante verossímil.

Mas nem só de Mississipi é feito o mundo. E a Austrália? Onde fica? Nunca uma matriz lingüística (com trema) foi destroçada com tanto esmero. Todas as crueldades do globo se prestaram a um serviço único, um projeto nacional: destruir totalmente a matriz lingüística dos aborígines. Embora o êxito estatístico da coisa não tenha sido completo – sobrou cinco por cento da matriz autóctone – o êxito real é categórico. Para isso, muita força foi empregada. As crianças foram levadas para longe de suas comunidades e criadas em meio aos brancos, todas foram travestidas em serviçais. As mães que tentavam resistir à essa separação foram surradas, mortas e jogadas em valas. Anos depois, as crianças (agora adultos) voltavam bem formadas às suas casas, na medida em que essas ainda estavam de pé.

- Mãe, estar de volta aqui é a maior felicidade da minha vida.
- Porque você não fala a nossa língua, minha filha? Tem vergonha? -inquiriu a mãe.
- Eu não falo porque não posso. Não sei como falar a nossa língua. Isso me foi tirado - respondeu a filha.

Toda uma geração de aborígines nascida do estupro e da violência é uma coisa que silêncio nenhum esconde. Qual foi a língua que pariu esses filhos?

O acento é ilógico, muitas vezes inoperante e até desastroso, mas a questão não é essa. A questão é a de sempre: é a arbitrariedade, a irreflexão. As leis têm por bem que prestar submissão ao povo e não a realidade prestar submissão às leis. Em palavras melhores que as minhas encerro assim: “Não há lei humana (... ) a língua é um fenômeno natural, como a oferta e a procura, como o crescimento das crianças, como a senilidade, etc.†Ou melhor, eu gostaria de encerrar assim, mas os editores optaram por encerrar de outra forma, autoritária e triste: “Até a trigésima sexta edição (de Urupês) a ortografia de Monteiro Lobato foi respeitada. A partir da trigésima sétima edição, optou-se por seguir o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesaâ€.


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