Os seres humanos são, ao mesmo tempo, parte de uma ordem natural e de uma ordem social. A ordem social, apesar de muito diferentes de uma ordem natural, deve sua própria existência a peculiaridade da natureza humana. Essa peculiaridade consiste na mobilidade e maleabilidade especiais pelas quais o controle comportamental humano difere do dos animais. Graças a essas qualidades, aquilo que nos animais é, basicamente, uma parte herdada da natureza, um padrão fixo de controle comportamental em relação a outros seres e coisas, tem que ser produzido em cada ser humano, na companhia de outras pessoas através dela. E graças a essas qualidades entram e ação regularidades e processos automáticos que denominamos sociais, em contraste com as regularidades orgânicas da natureza.
A individualidade que o ser humano acaba por desenvolver não depende apenas de sua constituição natural, mas de todo processo de individualização. A constituição caracterÃstica da pessoa tem uma influência inerradicável em todo seu destino. O que advém de sua constituição caracterÃstica depende da estrutura da sociedade. Seu destino é especifico de cada sociedade. Por conseguinte a individualidade de cada adulto também é especÃfica de cada sociedade.
Planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas se entrelaçam de modo amistoso ou hostil. Este tecido básico pode dar origem a mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependência surge uma ordem sui generis, mais irresistÃvel e mais forte do que a vontade e razão das pessoas isoladas que a compõem.
A coexistência de pessoas, emaranhamento de suas intenções e planos, laços mútuos, longe de destruir a individualidade, proporcionam o meio no qual ela pode desenvolver-se (limites e raio de ação). Essa ordem nem é racional, resultante da deliberação de pessoas isoladas, nem irracional, surgida de maneira incompreensÃvel.
Compreender a força irresistÃvel com a qual uma estrutura social orienta-se, impelida por suas tensões, para uma mudança especÃfica permite compreender como surgem mudanças na mentalidade humana, na modelação do maleável aparato psicológico.
Segundo Norbert Elias, ao descrever o processo civilizador, (o processo propõe eliminar tudo o que era ainda bárbaro ou irracional e devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação interna) a mudança psicológica que a civilização implica sujeita-se a uma ordem e direção especÃficas, embora não tivessem sido planejadas por pessoas isoladas, nem produzidas por medidas razoáveis, propositais. A civilização não é razoável, nem racional, como também não é irracional. É posta em e mantida em movimento cegamente pela dinâmica autônoma de redes de relacionamento, por mudanças especÃficas na maneira como as pessoas se vêem obrigadas a conviver.
As funções sociais, sob pressão da competição, tornam-se cada vez mais diferenciadas e crescem em número e no número de pessoas das quais o indivÃduo dependem suas ações.
O indivÃduo se vê compelido a regular a conduta de maneira mais diferenciada, uniforme e estável, instilado no indivÃduo desde seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo, uma auto-compulsão. O esforço para comportar-se corretamente dentro da teia de ações ficou tão grande que um cego aparelho automático de auto-controle foi firmemente estabelecido, para prevenir transgressões mediante medos arraigados.
Criam-se espaços sociais pacificados, formas de violência não-fÃsica. O indivÃduo passa a se sentir protegido contra a irrupção de violência fÃsica e forçado a reprimir qualquer impulso emocional para atacar fisicamente.
A autoridade passa a ser a legÃtima detentora do monopólio da violência. A ameaça fÃsica se despersonaliza, não depende dos afetos momentâneos, submete-se a leis rigorosas.
Entretanto o processo civilizador não é sinônimo de história-progresso, pois está sujeito a regressões. Acredito que estamos vivendo neste momento, não só no Brasil, mas em todo o mundo, uma espécie de surto descivilizador. Enquanto não retomarmos a noção de indivÃduo, (até mesmo no sentido kantiano do termo) que a algum tempo parece perdida e/ou deturpada, nenhuma medida na área da segurança pública será capaz de sanar o problema da violência. A vida emocional do indivÃduo é moldada sob pressão da tradição institucionalizada e da situação vigente.
A idéia de surto descivilizador não é nova, muito menos especÃfica para os dias atuais. Surtos deste tipo vêm acometendo a sociedade ao longo dos tempo. Um exemplo de grandes proporções seria o nazismo e todo o horror que o mesmo praticou, e que é de conhecimento de todos.
Elias considera que para se entender o fenômeno da implantação do movimento nazista e de seu sistema de crenças em toda a sua extensão é necessário, acima de tudo, considerar as caracterÃsticas do desenvolvimento da Alemanha, através de um longo processo de desenvolvimento social que se mantém em uma direção constante. Constante, porém não linear. O processo civilizador não segue uma linha reta.
É necessário ampliar o foco cronológico da longa duração, recuando-se consideravelmente no tempo. O autor parte da situação instável das tribos de fala alemã, até a analise das caracterÃsticas do Sacro Império Romano-Germânico.
Ao longo do tempo, enquanto muitos Estados vizinhos estavam se transformando em monarquias centralizadas e internamente pacificadas, o Sacro Império manteve uma frágil integração. Este fato deu origem a intermináveis conflitos internos e foi um convite às invasões.
A partir dessa primeira caracterização, Elias traça um quadro de fraqueza da nação germânica, selecionando para tanto alguns exemplos históricos como a guerra dos Trinta Anos.
A novidade introduzida por Elias na análise da história alemã diz respeito à natureza das conseqüências derivadas desse processo histórico para a compreensão da Alemanha como um todo e do fenômeno nazista, em particular. Tais conseqüências se situam na formação de um habitus. A questão central de Elias consiste em entender como a história de uma nação sedimentou-se no habitus de seus membros.
Para Elias, tal como no desenvolvimento de uma pessoa no qual as experiências de um tempo passado continuam a ter efeitos no presente, o mesmo ocorre no desenvolvimento de uma nação. Negar o passado seria o mesmo que ignorar o longo processo civilizador pelo qual uma sociedade já passou. Os destinos de uma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados no habitus de seus membros individuais, e daà decorre que o habitus de uma nação muda com o tempo precisamente porque as fortunas e experiências de uma nação (ou de seus agrupamentos constituintes) continuam mudando e acumulando-se.
É importante ressaltar que, para Elias, habitus não é sinônimo de caráter nacional. Uma clara distinção consiste no fato de que o conceito de caráter nacional tende a corresponder a um dado estrutural abrangente e pouco suscetÃvel a mudanças de uma formação social.
O conceito de habitus implica maior flexibilidade, o que se compatibiliza com os cortes e as descontinuidades da história alemã. “Habitus implica um equilÃbrio entre continuidade e mudança.†(1997:9) Como exemplo temos a referência de Elias ao dilema da classe média alemã, no século XIX e no inÃcio do século XX, oscilando entre uma tendência idealista-liberal e outra conservadora-nacionalista que termina com a vitória da última. Para o autor, esse fato constitui um testemunho da natureza descontÃnua do desenvolvimento alemão, uma alteração de habitus que pode ser associada com clareza a uma fase especÃfica do desenvolvimento do Estado.
Quais as relações entre a constituição do habitus e as vicissitudes da história da Alemanha? O autor acentua que o desenrolar do processo histórico alemão, em contraste com paÃses como a França e a Inglaterra, tomou o rumo da fragmentação; disso resultou que o habitus dos membros da sociedade veio a revelar sinais de depressão e de perda de identidade. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a posição secundária dos estados alemães na Europa, trouxe como conseqüência a baixa de auto-estima do povo alemão, acompanhada de um sentimento de humilhação.
Com tais caracterÃsticas, o habitus, transmitido de geração em geração, produziu no povo alemão um desejo ardente de unidade, que emergiu recorrentemente na Alemanha em situações de crise. Tendência nacionalista em ascensão. A auto-imagem de que os alemães não eram capazes de conviver sem discórdias e disputas encontrou expressão no sonho de encontrar um soberano ou um lÃder poderoso, capaz de produzir a unidade e o consenso. O baixo auto-controle dos alemães acarretou a necessidade de uma coação externa mais eficiente.
Segundo Elias, todos os indivÃduos vivem em sociedade regidas por coações. Entre estas, estão as coações externas, exercidas pelo Estado, outras instituições e mutuamente entre os indivÃduos, e as coações internas, ou auto-controle. Estas formas de coação se completam, na medida em que a existência mais fraca de uma delas implica em uma necessidade maior da outra. Estas coações guiam o comportamento e a conduta do indivÃduo, de modo a adequar e integrar o mesmo à sociedade à qual pertence. A necessidade de uma coação externa mais eficiente transformou-se em necessidade de encontrar um lÃder. A figura deste lÃder se torna uma espécie de sÃmbolo que une a todos. É a representação da nação. A união de todos perante o lÃder leva o indivÃduo a trocar sua identidade “eu†por uma identidade “nósâ€, nacional. O sentimento de inferioridade na hierarquia dos Estados europeus teve sua contrapartida na ênfase exagerada posta na interiorização do sentimento de grandeza e do poder da nação alemã.
Se o nazismo trouxe consigo configurações terrivelmente originais, como o anti-semitismo, se assentou também em outras de que a história alemã era portadora: o desejo de unidade, a valorização da violência, a crença no "homem forte", o desprezo pela democracia. Estes fatores facilitaram, em grande medida, a ascensão ao poder de um movimento nacionalista extremista, antidemocrático e anti-semita, além do triunfo de Hitler.
Hitler triunfou porque foi capaz de apelar às massas e mobilizá-las, em uma situação de crise econômica e social, enquanto os Freikorps permaneceram vinculados à tradição da elite. Apresentando-se como um homem do povo e um simples cabo do Exército, Hitler construiu sua imagem simbólica de representante da "raça alemã", oferecendo um mundo de glória e dominação para todos os setores da sociedade dispostos a segui-lo.
Elias não nega que muitos alemães recusaram o nazismo. Porém, põe ênfase na aceitação ou no entusiasmo pelo nazismo. No fundo, diz Elias, nenhuma oposição ou revolta era possÃvel porque a consciência, o autocontrole da grande massa permaneceu, em grande medida, dependente do Estado, quaisquer que fossem seus representantes. As técnicas intensivas de educação e de propaganda, postas em prática pelos nazistas no sentido de garantir a lealdade absoluta da população, serviram apenas para reforçar as caracterÃsticas de uma estrutura de personalidade que criou nos indivÃduos uma disposição a se submeter lealmente à s exigências do Furer, cuja imagem foi internalizada pelo povo como parte de sua consciência.
Este habitus nacional alemão poderia criar possibilidades de re-emergência do nazismo na Alemanha? Elias não lida diretamente com a questão, mas afirma que, no plano polÃtico, a interiorização de um regime parlamentar multipartidário, por parte do povo alemão, é tarefa para alguns séculos, pois um regime dessa natureza, baseado na mediação e no compromisso, choca-se com os valores autoritários e guerreiros, cristalizados ao longo da história da Alemanha.
Toda a exposição sobre os motivos que levaram ao triunfo do nazismo na Alemanha serve como exemplo de como uma conduta que viola a noção mais básica de indivÃduo pode conseguir êxito em meio a uma sociedade envolvida na dinâmica do processo civilizador. Se transportarmos essa noção para a sociedade brasileira veremos que ocorre nesse momento uma situação análoga no que diz respeito a esta perda da noção do indivÃduo. Arrastar uma criança pelas ruas ou incendiar um ônibus repleto de pessoas não deixa muito a desejar em relação as práticas instituÃdas pelos nazistas.
Referências bibliográficas:
ELIAS, Norbert. O Processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1993
_____________. Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1997
Prezado Daniel,
Como no seu texto não há correlações visÃveis com a cultura brasileira (de qualquer maneira), tenho dúvidas se ele se adequa aos objetivos do Overmundo. Sugiro você dar uma lida na primeira resposta do Participe aqui.
Abraço!
Gostei muito do artigo. Bem interessante. Abs.
Daniloserra · Guarapari, ES 11/5/2007 10:40Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!