O triunfo do nazismo e o habitus nacional alemão.

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Daniel Martins · Belo Horizonte, MG
10/5/2007 · 24 · 2
 

Os seres humanos são, ao mesmo tempo, parte de uma ordem natural e de uma ordem social. A ordem social, apesar de muito diferentes de uma ordem natural, deve sua própria existência a peculiaridade da natureza humana. Essa peculiaridade consiste na mobilidade e maleabilidade especiais pelas quais o controle comportamental humano difere do dos animais. Graças a essas qualidades, aquilo que nos animais é, basicamente, uma parte herdada da natureza, um padrão fixo de controle comportamental em relação a outros seres e coisas, tem que ser produzido em cada ser humano, na companhia de outras pessoas através dela. E graças a essas qualidades entram e ação regularidades e processos automáticos que denominamos sociais, em contraste com as regularidades orgânicas da natureza.

A individualidade que o ser humano acaba por desenvolver não depende apenas de sua constituição natural, mas de todo processo de individualização. A constituição característica da pessoa tem uma influência inerradicável em todo seu destino. O que advém de sua constituição característica depende da estrutura da sociedade. Seu destino é especifico de cada sociedade. Por conseguinte a individualidade de cada adulto também é específica de cada sociedade.

Planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas se entrelaçam de modo amistoso ou hostil. Este tecido básico pode dar origem a mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependência surge uma ordem sui generis, mais irresistível e mais forte do que a vontade e razão das pessoas isoladas que a compõem.

A coexistência de pessoas, emaranhamento de suas intenções e planos, laços mútuos, longe de destruir a individualidade, proporcionam o meio no qual ela pode desenvolver-se (limites e raio de ação). Essa ordem nem é racional, resultante da deliberação de pessoas isoladas, nem irracional, surgida de maneira incompreensível.

Compreender a força irresistível com a qual uma estrutura social orienta-se, impelida por suas tensões, para uma mudança específica permite compreender como surgem mudanças na mentalidade humana, na modelação do maleável aparato psicológico.

Segundo Norbert Elias, ao descrever o processo civilizador, (o processo propõe eliminar tudo o que era ainda bárbaro ou irracional e devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação interna) a mudança psicológica que a civilização implica sujeita-se a uma ordem e direção específicas, embora não tivessem sido planejadas por pessoas isoladas, nem produzidas por medidas razoáveis, propositais. A civilização não é razoável, nem racional, como também não é irracional. É posta em e mantida em movimento cegamente pela dinâmica autônoma de redes de relacionamento, por mudanças específicas na maneira como as pessoas se vêem obrigadas a conviver.

As funções sociais, sob pressão da competição, tornam-se cada vez mais diferenciadas e crescem em número e no número de pessoas das quais o indivíduo dependem suas ações.

O indivíduo se vê compelido a regular a conduta de maneira mais diferenciada, uniforme e estável, instilado no indivíduo desde seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo, uma auto-compulsão. O esforço para comportar-se corretamente dentro da teia de ações ficou tão grande que um cego aparelho automático de auto-controle foi firmemente estabelecido, para prevenir transgressões mediante medos arraigados.

Criam-se espaços sociais pacificados, formas de violência não-física. O indivíduo passa a se sentir protegido contra a irrupção de violência física e forçado a reprimir qualquer impulso emocional para atacar fisicamente.

A autoridade passa a ser a legítima detentora do monopólio da violência. A ameaça física se despersonaliza, não depende dos afetos momentâneos, submete-se a leis rigorosas.

Entretanto o processo civilizador não é sinônimo de história-progresso, pois está sujeito a regressões. Acredito que estamos vivendo neste momento, não só no Brasil, mas em todo o mundo, uma espécie de surto descivilizador. Enquanto não retomarmos a noção de indivíduo, (até mesmo no sentido kantiano do termo) que a algum tempo parece perdida e/ou deturpada, nenhuma medida na área da segurança pública será capaz de sanar o problema da violência. A vida emocional do indivíduo é moldada sob pressão da tradição institucionalizada e da situação vigente.

A idéia de surto descivilizador não é nova, muito menos específica para os dias atuais. Surtos deste tipo vêm acometendo a sociedade ao longo dos tempo. Um exemplo de grandes proporções seria o nazismo e todo o horror que o mesmo praticou, e que é de conhecimento de todos.

Elias considera que para se entender o fenômeno da implantação do movimento nazista e de seu sistema de crenças em toda a sua extensão é necessário, acima de tudo, considerar as características do desenvolvimento da Alemanha, através de um longo processo de desenvolvimento social que se mantém em uma direção constante. Constante, porém não linear. O processo civilizador não segue uma linha reta.

É necessário ampliar o foco cronológico da longa duração, recuando-se consideravelmente no tempo. O autor parte da situação instável das tribos de fala alemã, até a analise das características do Sacro Império Romano-Germânico.

Ao longo do tempo, enquanto muitos Estados vizinhos estavam se transformando em monarquias centralizadas e internamente pacificadas, o Sacro Império manteve uma frágil integração. Este fato deu origem a intermináveis conflitos internos e foi um convite às invasões.

A partir dessa primeira caracterização, Elias traça um quadro de fraqueza da nação germânica, selecionando para tanto alguns exemplos históricos como a guerra dos Trinta Anos.

A novidade introduzida por Elias na análise da história alemã diz respeito à natureza das conseqüências derivadas desse processo histórico para a compreensão da Alemanha como um todo e do fenômeno nazista, em particular. Tais conseqüências se situam na formação de um habitus. A questão central de Elias consiste em entender como a história de uma nação sedimentou-se no habitus de seus membros.

Para Elias, tal como no desenvolvimento de uma pessoa no qual as experiências de um tempo passado continuam a ter efeitos no presente, o mesmo ocorre no desenvolvimento de uma nação. Negar o passado seria o mesmo que ignorar o longo processo civilizador pelo qual uma sociedade já passou. Os destinos de uma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados no habitus de seus membros individuais, e daí decorre que o habitus de uma nação muda com o tempo precisamente porque as fortunas e experiências de uma nação (ou de seus agrupamentos constituintes) continuam mudando e acumulando-se.

É importante ressaltar que, para Elias, habitus não é sinônimo de caráter nacional. Uma clara distinção consiste no fato de que o conceito de caráter nacional tende a corresponder a um dado estrutural abrangente e pouco suscetível a mudanças de uma formação social.

O conceito de habitus implica maior flexibilidade, o que se compatibiliza com os cortes e as descontinuidades da história alemã. “Habitus implica um equilíbrio entre continuidade e mudança.†(1997:9) Como exemplo temos a referência de Elias ao dilema da classe média alemã, no século XIX e no início do século XX, oscilando entre uma tendência idealista-liberal e outra conservadora-nacionalista que termina com a vitória da última. Para o autor, esse fato constitui um testemunho da natureza descontínua do desenvolvimento alemão, uma alteração de habitus que pode ser associada com clareza a uma fase específica do desenvolvimento do Estado.

Quais as relações entre a constituição do habitus e as vicissitudes da história da Alemanha? O autor acentua que o desenrolar do processo histórico alemão, em contraste com países como a França e a Inglaterra, tomou o rumo da fragmentação; disso resultou que o habitus dos membros da sociedade veio a revelar sinais de depressão e de perda de identidade. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a posição secundária dos estados alemães na Europa, trouxe como conseqüência a baixa de auto-estima do povo alemão, acompanhada de um sentimento de humilhação.

Com tais características, o habitus, transmitido de geração em geração, produziu no povo alemão um desejo ardente de unidade, que emergiu recorrentemente na Alemanha em situações de crise. Tendência nacionalista em ascensão. A auto-imagem de que os alemães não eram capazes de conviver sem discórdias e disputas encontrou expressão no sonho de encontrar um soberano ou um líder poderoso, capaz de produzir a unidade e o consenso. O baixo auto-controle dos alemães acarretou a necessidade de uma coação externa mais eficiente.

Segundo Elias, todos os indivíduos vivem em sociedade regidas por coações. Entre estas, estão as coações externas, exercidas pelo Estado, outras instituições e mutuamente entre os indivíduos, e as coações internas, ou auto-controle. Estas formas de coação se completam, na medida em que a existência mais fraca de uma delas implica em uma necessidade maior da outra. Estas coações guiam o comportamento e a conduta do indivíduo, de modo a adequar e integrar o mesmo à sociedade à qual pertence. A necessidade de uma coação externa mais eficiente transformou-se em necessidade de encontrar um líder. A figura deste líder se torna uma espécie de símbolo que une a todos. É a representação da nação. A união de todos perante o líder leva o indivíduo a trocar sua identidade “eu†por uma identidade “nósâ€, nacional. O sentimento de inferioridade na hierarquia dos Estados europeus teve sua contrapartida na ênfase exagerada posta na interiorização do sentimento de grandeza e do poder da nação alemã.

Se o nazismo trouxe consigo configurações terrivelmente originais, como o anti-semitismo, se assentou também em outras de que a história alemã era portadora: o desejo de unidade, a valorização da violência, a crença no "homem forte", o desprezo pela democracia. Estes fatores facilitaram, em grande medida, a ascensão ao poder de um movimento nacionalista extremista, antidemocrático e anti-semita, além do triunfo de Hitler.

Hitler triunfou porque foi capaz de apelar às massas e mobilizá-las, em uma situação de crise econômica e social, enquanto os Freikorps permaneceram vinculados à tradição da elite. Apresentando-se como um homem do povo e um simples cabo do Exército, Hitler construiu sua imagem simbólica de representante da "raça alemã", oferecendo um mundo de glória e dominação para todos os setores da sociedade dispostos a segui-lo.

Elias não nega que muitos alemães recusaram o nazismo. Porém, põe ênfase na aceitação ou no entusiasmo pelo nazismo. No fundo, diz Elias, nenhuma oposição ou revolta era possível porque a consciência, o autocontrole da grande massa permaneceu, em grande medida, dependente do Estado, quaisquer que fossem seus representantes. As técnicas intensivas de educação e de propaganda, postas em prática pelos nazistas no sentido de garantir a lealdade absoluta da população, serviram apenas para reforçar as características de uma estrutura de personalidade que criou nos indivíduos uma disposição a se submeter lealmente às exigências do Furer, cuja imagem foi internalizada pelo povo como parte de sua consciência.

Este habitus nacional alemão poderia criar possibilidades de re-emergência do nazismo na Alemanha? Elias não lida diretamente com a questão, mas afirma que, no plano político, a interiorização de um regime parlamentar multipartidário, por parte do povo alemão, é tarefa para alguns séculos, pois um regime dessa natureza, baseado na mediação e no compromisso, choca-se com os valores autoritários e guerreiros, cristalizados ao longo da história da Alemanha.

Toda a exposição sobre os motivos que levaram ao triunfo do nazismo na Alemanha serve como exemplo de como uma conduta que viola a noção mais básica de indivíduo pode conseguir êxito em meio a uma sociedade envolvida na dinâmica do processo civilizador. Se transportarmos essa noção para a sociedade brasileira veremos que ocorre nesse momento uma situação análoga no que diz respeito a esta perda da noção do indivíduo. Arrastar uma criança pelas ruas ou incendiar um ônibus repleto de pessoas não deixa muito a desejar em relação as práticas instituídas pelos nazistas.

Referências bibliográficas:

ELIAS, Norbert. O Processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1993
_____________. Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1997

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Egeu Laus
 

Prezado Daniel,
Como no seu texto não há correlações visíveis com a cultura brasileira (de qualquer maneira), tenho dúvidas se ele se adequa aos objetivos do Overmundo. Sugiro você dar uma lida na primeira resposta do Participe aqui.
Abraço!

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 9/5/2007 12:03
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Daniloserra
 

Gostei muito do artigo. Bem interessante. Abs.

Daniloserra · Guarapari, ES 11/5/2007 10:40
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